Professora Associada do curso de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE)/UFF. Estuda, pesquisa e desenvolve projetos de extensão nas áreas de direito à cidade, favelas, movimentos sociais, educação popular e educação superior. Militante do movimento docente do ensino superior público.
Desafios da universidade pública, hoje
10 de junho, 2022 Atualizado: 07:42
Tem dias que bate um desânimo. Transformar esse desânimo em luta não é tarefa fácil, mas é absolutamente necessário. Assim como fazer do luto, a luta! É também necessário desvelar o que, desse momento de transição que vivemos, está sendo enraizado e absorvido como um ‘novo normal’ nas instituições públicas de ensino superior.
A rigor, o que se apresenta não é de fato novo, apenas aparece como tal. Essa forma nova é apropriada por aqueles e aquelas que sempre defenderam o velho (conservador, retrógrado, mercadorizado, violento…) e, paradoxalmente, é também abarcada por muitos daqueles e daquelas que até ‘ontem’, defendiam outro projeto de universidade, contra-hegemônico à ordem do capital.
Paradoxo que nos coloca como o primeiro desafio de hoje, reconhecer que o projeto contra o qual lutamos há mais de 30 anos, identificado por estudiosos e pelo movimento docente como o projeto do capital para a educação, conduzido por organismos internacionais como Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), está sendo absorvido por parte considerável da comunidade acadêmica. A apropriação e a construção do projeto do capital pelos representantes nacionais da burguesia, assim como pelo governo de extrema direita e por grande parte dos gestores das universidades, não é novidade, ao contrário, faz parte de sua estruturação na particularidade brasileira. A novidade é a ampliada absorção desse projeto por parte da comunidade acadêmica, até então localizada no campo progressista e de defesa da universidade pública, gratuita, laica e socialmente referenciada.
O projeto de educação mercadoria e aligeirada, que segundo o BM é uma educação terciária para o conjunto da América Latina, aparece hoje com novos contornos. Essa concepção de educação, pressionada pelas modificações do mundo do trabalho uberizado e a imposição da chamada indústria 4.0 – nova forma de gestão do trabalho –, acelera a incorporação, no âmbito do trabalho público, da mesma lógica aplicada à iniciativa privada.
É necessário reconhecer que a incorporação desse projeto avançou, e que a pandemia foi e ainda está sendo a mola propulsora, o ‘balão de ensaio’ deste avanço. Sob múltiplas justificativas, muitas das quais legítimas, no momento do retorno presencial do trabalho nas universidades, acompanhamos de forma acelerada a defesa de continuidade do ensino e trabalho remoto em suas múltiplas possibilidades. Como já era apontado desde o início da pandemia, o governo federal, interessado em esvaziar as instituições públicas, fazer a contrarreforma administrativa – barrada temporariamente pelas mobilizações dos servidores públicos –, refuncionalizar o Estado, invisibilizar trabalhadores e economizar com políticas públicas para melhor ‘abastecer’ a iniciativa privada, se aproveita do ensaio que foi o período pandêmico para implementar um ‘novo normal’ com o trabalho mediado por tecnologia e em domicílio.
Para o governo e os gestores das universidades, o teletrabalho é uma forma de economizar; de reduzir a demanda por mais estrutura para a universidade; de invisibilizar a instituição pública diante dos usuários; de fechar as portas das instituições que deveriam estar cada vez mais abertas, reduzindo horários de atendimento externo; e de reduzir o trabalho da universidade, em especial dos técnicos-administrativos, à burocracia. O governo estabelece essa política da mesma forma como conduz o país, sob a ameaça e o autoritarismo, uma vez que anunciou para o início de junho o fim do trabalho remoto que havia sido regulamentado pela instrução normativa nº 90 do início da pandemia.
No caso do ensino remoto, amplamente debatido no Brasil há mais de trinta anos e exaustivamente problematizado durante a pandemia, a lógica segue a mesma, refuncionalizar a educação. A movimentação atual associa-se à antecedente aprovação dos 40% do ensino à distância para os cursos de graduação através da portaria nº 2.117 de 2019, que revogou a portaria nº 1.428 de 2018; à contrarreforma do ensino médio, instituída pela Lei nº 13.415 de 2017 e ao avanço do ensino domiciliar, aprovado na Câmara Federal em maio deste ano. Também merece destaque o fato do teletrabalho contribuir para o adoecimento e para dificultar a interação social, com rebatimentos para a organização dos trabalhadores, tema que deveria ser amplamente problematizado pelos movimentos em defesa da educação pública, laica e gratuita.
A estratégia de aproveitar o período da pandemia, em que a educação superior pública ficou, excepcionalmente, na forma remota, como um ensaio para a incorporação e naturalização dessa forma de trabalho, deve ser compreendida no bojo das demais contrarreformas e retrocessos em curso. Esse parece ser o segundo grande desafio do momento, analisar cada ação e particularidade tendo como referência o contexto geral e sua inserção em um projeto político do capital, que hoje está sendo comandado pela extrema-direita.
Assim, reconhecer que o ministro da Economia Paulo Guedes e o presidente da República Jair Bolsonaro, ambos parte do projeto ultraneoliberal da extrema-direita, não estão propondo nada que seja benéfico para os servidores e instituições públicas é fundamental para apurar as análises sobre qualquer ação ou legislação, como o decreto nº 11.072 de 17 de maio de 2022, que regulamenta o Programa de Gestão de Desempenho (PGD), que trata do trabalho remoto na administração pública. Por exemplo, observemos a afirmação de Caio Paes de Andrade[i], secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, de que a experiência do trabalho remoto foi positiva e contribuiu para a redução dos custos para o poder público. A análise dessa fala, dentro do contexto atual, deixa explícito que a intenção do governo não é dar qualidade de vida aos servidores, ao contrário, é justamente invisibilizar o trabalhador e reduzir custos. Redução de custos para o governo, não para os trabalhadores, pois, os servidores técnico-administrativos, no caso das universidades federais, não vão receber quaisquer subsídios para estruturar em sua residência o teletrabalho. Não havendo subsídios para garantir as condições de trabalho, como luz, acesso à internet e equipamentos, qual a relação a ser estabelecida entre servidores e chefias? É possível cobrar metas sem garantir condições de trabalho? Inaugura-se, ou intensifica-se, a era da flexibilização do trabalho, da ‘indústria 4.0’ e da ‘reestruturação produtiva’ no serviço público federal. A pandemia, e as consequentes organizações do trabalho remoto, foi o grande balão de ensaio que hoje permite a refuncionalização do serviço público, e pior, com a adesão de parte dos trabalhadores.
O terceiro desafio é identificar os nexos entre os projetos de refuncionalização da educação pública superior, e projetos como o Reuni Digital, enviado como projeto para o Congresso Nacional em maio de 2022; a proposta de avanço da PEC 206/2019 que trata da possibilidade de cobrança de mensalidade nas universidades públicas, colocada na pauta da Comissão de Justiça e Cidadania(CCJ) da Câmera dos deputados, tendo como relator o reconhecido e assumido parlamentar conservador e de extrema direita Kim Kataguiri (União/SP); a aprovação da educação domiciliar na Câmara Federal; o avanço sistemático das intervenções nas universidades federais no que se refere a nomeação do(a)s reitore(a)s, que hoje já somam 23 instituições; o bloqueio de 14,5% das verbas para as universidades federais realizado no final de maio, em um orçamento que já é o menor dos últimos treze anos; e o avanço devastador do ‘bolsonarismo’, que espalha ódio e conservadorismo com a negação da ciência e a legitimação da sociabilidade violenta.
O quarto desafio imediato é reconhecer que o ensino remoto emergencial deixou defasagens profundas no processo de ensino aprendizagem dos estudantes e impactou a sociabilidade coletiva própria da vida universitária, que inclui, por exemplo, as relações do movimento estudantil, atividades extraclasse, convívio com diversos estudantes do mesmo curso e de outros cursos. Esses impactos acabam por gerar uma certa imaturidade dos estudantes para acompanhar a sociabilidade universitária, expresso, entre outras coisas, na tentativa reiterada de reproduzir a lógica construída e aprendida no ensino médio no ensino superior. Esse reconhecimento é importante, inclusive, para a compreensão dos inúmeros casos de stress e crises nervosas que os estudantes têm demonstrado ao se depararem com o cotidiano de estudos intensos, avaliações sem consulta, necessidade de escrita, atenção a aulas expositivas e até uma certa resistência ao retorno presencial das atividades.
O reconhecimento dessas configurações e interesses, por parte de docentes e discentes, deve impulsionar a construção de estratégias coletivas que não punam os estudantes, mas que, ao contrário, ofereçam suporte às suas múltiplas necessidades, cobrando das instituições de ensino atendimento especializado e estruturação para o acolhimento das demandas, o que exige maior investimento financeiro e não corte de verbas. Só assim será possível evitar os casos de adoecimento mental, físico e até de suicídio, que nesses poucos meses de retorno presencial têm impactado nossa realidade.
Também no âmbito dos desafios imediatos, nos importa reconhecer que o conjunto da comunidade acadêmica, docentes, técnicos-administrativos, estudantes e trabalhadores terceirizados, parecem viver uma certa apatia diante da realidade. Com facilidade muitas universidades aboliram o uso das máscaras, desconsiderando os riscos apontados pela ciência de ampliação da contaminação; poucas garantiram estrutura para o retorno seguro presencial – que deveria incluir além de álcool, água e sabonete, também microfones para que os professores não desgastassem a voz ao dar aulas com máscara –; e a mobilização para a construção da greve do funcionalismo público foi pífia na maior parte dos lugares.
Assim, é importante considerar que a baixa mobilização se coloca como um quinto elemento para nossa análise. Por óbvio, a desmobilização não está relacionada a um único aspecto, e também não deve ser atribuída a uma dimensão individual. É necessário identificar que guarda relação com o próprio processo de adoecimento docente diante de dois anos de trabalho remoto; com a compreensão de que é necessário se reconectar presencialmente à comunidade acadêmica, em especial com os discentes e que é necessário se reorganizar para mobilizar. Expressão da necessidade de reorganizar é o movimento estudantil que depois de dois anos de educação mediada por tecnologia, também sofreram impacto organizativo. Muitos veteranos se formaram, alguns não tiveram condições de retornar presencialmente e os calouros estão ainda se localizando no universo da organização coletiva universitária. No caso dos docentes é necessário identificar que o híbrido tem aparecido como alternativa e sido incorporado. Apesar do retorno das atividades de ensino presencial, o que não inclui 100% dos docentes, pois muitos ainda se encontram no trabalho remoto, também há que se reconhecer que algumas atividades como reuniões, bancas e até mesmo palestras continuam a ser realizadas de forma remota. O momento do encontro no café, de esbarrar no corredor, de olhar nos olhos em reuniões e debates, ainda não se estabeleceu plenamente, entre outros motivos, pela própria cautela que o momento da pandemia ainda exige, sem possibilitar aglomerações, mas também pela dificuldade de retorno pleno às atividades presenciais diante da ausência de estrutura e do hábito introduzido ao longo dos dois últimos anos de atividades mediadas por tecnologia. Considerando a ampliação do contágio, mesmo que a taxa de letalidade continue caindo, nos mostra que a pandemia não acabou e que alguns cuidados ainda são necessários. Algumas universidades que já haviam liberado o uso de máscara nos espaços fechados, diante da contaminação, retornaram à exigência.
Por fim destaca-se, que ainda no aspecto relativo à mobilização, parece que uma parte da comunidade acadêmica, avalia que a forma única de enfrentar o desmonte promovido pelo governo Bolsonaro são as urnas. Um equívoco que cobrará seu preço com o tempo. Muito mais ajudaríamos no desgaste desse governo e de seu projeto genocida e militarizado, se estivéssemos mobilizados e mais organizados. Nem mesmo o novo bloqueio de recursos em detrimento das universidades e ciência parece ter ‘empolgado’ a comunidade acadêmica. Mas os efeitos do desfinanciamento vão se fazer sentir em breve e, quem sabe, aquilo que os defensores das urnas menos querem, aconteça em pleno processo eleitoral, uma greve da educação federal. Como demonstra o gráfico abaixo, que não considera o último bloqueio do mês de maio de 2022, já vivíamos o menor orçamento dos últimos 13 anos, o que possivelmente inviabilize as atividades no segundo semestre de 2022.
Gráfico 1 – Execução Orçamentária das Universidades Federais
por Grupo de Natureza da Despesa – Brasil – 2008-2021
Fonte: Câmara dos Deputados Federais (2008-2021). Valores corrigidos pelo IPCA para preços de janeiro de 2022. Elaboração Emerson Duarte.
Esses são desafios de curto prazo, pois se projeta um cenário ainda pior para as universidades públicas no segundo semestre de 2022. Imediatamente temos um conjunto de debates, de âmbito político e pedagógico, que precisamos tratar. Assim como precisamos assumir que a pandemia impossibilitou que milhares de jovens retornassem ou mesmo ingressassem no ensino superior público, como demonstra o Censo da Educação Superior de 2020[ii], publicizado em fevereiro de 2022. O censo indica, como esperado, que a educação a distância (EaD) cresceu 30% (independente do ensino remoto emergencial (ERE) que não se caracteriza como EaD), enquanto o crescimento do ensino presencial foi de apenas 1,3%. Do montante de vagas ofertadas no ensino superior, 95,6% foram em instituições privadas em 2020, ficando essas com 86% dos ingressantes enquanto as instituições públicas ficaram com 14%.
O cenário é devastador, mas não necessariamente desanimador, já que ler a realidade em sua totalidade e com suas contradições, faz parte da possibilidade de melhor enfrentá-la e também superá-la. Enfrentar os retrocessos, o projeto ultraneoliberal, Bolsonaro e o bolsonarismo, é, sem dúvida, nossa tarefa imediata e também em curto e médio prazo. Se permanecerá como uma tarefa de longo prazo, isso depende não apenas das condições objetivas, mas também das condições subjetivas, que passam necessariamente pela capacidade de organização da classe trabalhadora e de seus movimentos representativos. Mobilizar é nosso desafio de hoje!