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Eblin Farage é nova colunista do UàE

Eblin Farage

Professora Associada do curso de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE)/UFF. Estuda, pesquisa e desenvolve projetos de extensão nas áreas de direito à cidade, favelas, movimentos sociais, educação popular e educação superior. Militante do movimento docente do ensino superior público.

Desafios atuais à organização sindical no ensino superior público: ousar sonhar e coragem para lutar!

11 de abril, 2023 20:33

Busca-se trazer reflexões sobre os desafios vivenciados no último período pelo ensino superior público, considerando a conjuntura brasileira, os processos de refuncionalização da educação, os retrocessos societários diante da ascensão da extrema-direita, as transformações no mundo do trabalho e a consequente reconfiguração do mercado de trabalho, as fissuras na organização da classe trabalhadora e a pandemia. A partir desses elementos pretende-se tecer algumas considerações sobre os desafios postos ao movimento sindical classista, em especial ao movimento docente organizado no âmbito da Associação Nacional dos Docente Ensino Superior – ANDES-SN, que em 2022 completou 42 anos.

Compreender os desafios postos na atualidade para o ensino superior público pressupõe considerar os processos históricos da particularidade brasileira: um país colonizado, escravocrata e patriarcal, que conservou como marcas estruturantes, o racismo, o machismo e o conservadorismo. Marcas que, apesar de camufladas, não foram eliminadas de nossa sociabilidade e acabam reacendendo sob novos contornos e ações. Na esteira de caracterizar as continuidades e rupturas com essas marcas, apresentaremos algumas reflexões para instigar-nos a pensar os desafios atuais da organização sindical do ensino superior no ANDES-SN.

Em um período de retrocessos sociais e civilizatórios, impulsionados pela crise estrutural do capitalismo e por sua face ultraneoliberal, novos elementos passam a compor a conjuntura, no Brasil e em diferentes partes do mundo, com a ascensão da extrema direita. Assim, a realidade, marcada pelo aprofundamento de graves e históricas desigualdades sociais, entrelaça-se com elementos de retrocesso social no âmbito da dimensão cultural da sociabilidade, o que acaba por marcar, não apenas econômica, política e socialmente a realidade brasileira, mas, em especial, ideologicamente.

As reflexões apresentadas, muito mais que análises teóricas, são fruto de uma militância coletiva e, portanto, representam aprendizados com acertos e erros individuais e coletivos, que maturam e possibilitam ampliar e aprofundar análises, vislumbrando desafios que nos impulsionem a reconstruir o presente e o futuro.  É com essa objetividade e certeza, de quem quer fazer história e compreende que para avançar não podemos considerar apenas nossos desejos e vontades, mas as relações sociais estabelecidas e a necessidade de reconstrução das mesmas, que apresentamos algumas inquietações para (re)pensar o movimento docente hoje.

As determinações estruturais e as incidências no ensino superior público:

Muito já se refletiu sobre o projeto do capital para a educação no mundo e na América Latina. Reflexões complexas e pertinentes foram apresentadas por inúmeros pesquisadores, sobretudo por estudiosos, que, como afirmava Florestan Fernandes, estavam comprometidos com uma pesquisa militante, dos quais são exemplos Lima (2007), Sguissardi (2008), Leher (2019), Fernandes (2020), e tantos outros. Reflexões estruturantes que têm por eixo condutor a conhecida disputa entre público e privado e que revelam a disputa de projetos societários antagônicos, entre os que defendem a educação como direito social e os que a consideram mercadoria. Na dicotomia entre público e privado, entre capital e trabalho, assentam-se todas as demais divergências e diferenças que as análises sobre a educação inspiram e instigam quando o desígnio é a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.

A primeira grande questão estrutural que nos demanda reflexão, parece ser o questionamento sobre a possibilidade ou não de construirmos um projeto de educação superior público gratuito, laico, antiracista, antisexista, anticapacitista, antlgbtfóbico, gratuito e socialmente referenciado.  Como afirma Mészáros (2005, p. 25), a “incorrigível lógica do capital”, impõe limites reais a uma reformulação significativa do sistema educacional. Por outro lado, em uma perspectiva gramsciniana, faz-se necessário gestar o germe do novo ainda na sociabilidade do capital.

Nossos pensamentos e ações devem ser pautados por esse conflito entre posições teóricas que de forma alguma são antagônicas, ao contrário, explicitam contradições da realidade com a qual precisamos nos defrontar. A educação pública superior que almejamos – como direito social para todos, como elemento de construção de uma consciência crítica, pautada na leitura da totalidade da vida real -, não é compatível com a sociabilidade capitalista, mas ao mesmo tempo o novo necessariamente nasce nas entranhas do velho. É, portanto, gestar o novo ante as dificuldades de um modo de produção capitalista, é um dos nossos desafios. Como afirma Mészáros (2005, p. 25), “[…] uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social […]”, tão pouco a sociedade mudará sem ter nos processos educativos um vetor importante.  

Pensar nossa realidade educacional e os desafios postos ao movimento docente hoje pressupõe compreender os reflexos da particularidade brasileira na sociabilidade desumanizadora e negacionista impulsionada nos anos recentes. Uma particularidade que inclui, além da crise estrutural do capital no mundo e no Brasil, a denominada crise do socialismo real, que traz em seu bojo consequências importantes para a organização da classe trabalhadora.

Dessas duas crises essenciais reverberam um conjunto de outras crises, que se espraiam pela sociabilidade, impondo um processo cultural eivado de dimensão ideológica, no sentido compreendido por Marx (2007), uma visão limitada e parcial do real. Ao mesmo tempo, compreender os desafios postos para a construção da emancipação humana, nos termos apontados pelo autor, exige refletir sobre os limites estruturais do capitalismo para uma democracia plena e a compreensão de que, se buscamos a emancipação humana e não só a política, é necessário compreender as lutas imediatas (táticas), dentro da ordem, e as lutas mediatas (estratégicas) para a classe trabalhadora que busque, de forma definitiva, superar sua condição estrutural de subalternidade, o que só será possível com a superação do capitalismo.

Assim reconhecer as múltiplas dimensões da educação, seja na leitura das palavras ou do mundo, como afirmava Paulo Freire, ou seu potencial nos processos de transformação da cultura, compreendida como dimensão ampla e sociabilidade, como apontava Gramsci (2000), são essenciais para identificar as disputas entre o público e o privado. Uma disputa que camufla a real disputa, qual seja, o antagonismo entre uma educação alienadora, que legitima o status quo e difunde como geral a ideologia particular da burguesia, contra a qual se posicionava Marx, e uma educação que, como apontava Gramsci (2000, p. 49), torna a pessoa “capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou controlar quem dirige”.

Essa disputa de projetos ocorre calcada na particularidade brasileira, um país escravocrata, um dos últimos do mundo a abolir a escravidão e, ainda assim, quando o fez, não emancipou de fato os negros e negras, mas ao contrário, deixou-os a sua própria “sorte”. Como afirma Moura (2020, p. 19) “(…) a relevância numérica de escravos no Brasil e, de outro, sua distribuição abrangente, atingindo todo o território nacional, determinaram a especificidade do escravismo brasileiro em relação aos demais países (…)”, o que nos autoriza a analisar a escravidão como uma questão estruturante do país e, portanto, também o conseguinte racismo, que impacta o sistema educacional brasileiro. Portanto, reconhecer o enegrecimento das universidades públicas, após a política de cotas, é um elemento de alteração no status quo, que deve ser perseguido pelos que defendem a educação como bem social.

Outro desafio do tempo presente é compreender que a educação, na ótica do capital, não pode ser resumida a uma mercadoria, e deve ser desvelada em sua função ideológica, porque hoje, talvez mais do que ontem, sob o signo da ‘democracia’, o Estado precisa dominar os processos educativos formais de maneira a operar o senso comum. Seja pela adaptação e a busca de consensos, ou pela exclusão de amplos segmentos da classe trabalhadora de processos produtivos formais que são excluídos sobre a justificativa de que não tem formação adequada para o mercado de trabalho modernizado.

Vários são os elementos contemporâneos que de forma estruturante esvaziam os processos de ensino aprendizagem e relegam a educação formal a uma condição subalternizada e refuncionalizada diante das transformações do mundo do trabalho e das novas exigências tecnológicas de sociabilidade. Uma refuncionalização que passa também pela gradativa redução do investimento público em educação e da ampliação do sistema privado de ensino.

A educação superior privada tem avançado no país. Não apenas como uma mercadoria, vendável e rentável, exposta em qualquer esquina, e em qualquer modalidade (presencial ou à distância), mas também como um mecanismo de massificação de uma educação que, na maior parte das instituições de ensino privada, pode ser traduzida como um escolão de terceiro grau. Será essa a educação terciária apontada pelo Banco Mundial como a mais adequada para a América Latina? Uma educação que se restringe à transmissão de alguns conhecimentos, já diminutos e resumidos, que não necessita de pesquisa e extensão como componentes fundamentais para a formação dos discentes, e que não investe na produção do conhecimento – pesquisas –, como base para a melhoria das condições de vida da população?

A busca de formas para refuncionalizar a educação pública superior é tão estruturante para o projeto da extrema direita que permeia o conjunto de ações e projetos elaborados como alternativa para o país. Daí o desafio de ter um movimento sindical que seja ao mesmo tempo autônomo, combativo, classista e que incorpore as pautas que hoje motivam a luta de classe, como as questões de raça e gênero. Assim como, se coloca como desafio o impulso a um real movimento de reorganização da classe trabalhadora, tendo como horizonte, o por vir, de superação da ordem do capital.

Desafios ao movimento docente hoje

Diante da conjuntura interna e externa, da crise estrutural do capitalismo e do chamado socialismo real, os desafios do movimento docente ampliam-se. A antiga disputa entre público e privado, que revela a disputa de projetos societários distintos, como sinalizado anteriormente, ganha novos contornos na particularidade brasileira contemporânea. Daí o desafio de compreender, como afirma Abramides (2019, p. 68), que a “[…] totalidade das relações sociais supõe uma articulação entre economia, política, cultura e ideologia, no conjunto da base material da vida social que expressa determinações da sociabilidade humana […]”. A articulação dessas dimensões pressupõe eivar a luta sindical e a organização do movimento docente com as múltiplas determinações que estruturam a vida social, evitando análises da educação como se esse setor pairasse sobre as relações sociais. Portanto, um dos desafios centrais do movimento docente, ontem e hoje, é considerar que as dinâmicas educacionais são expressão das relações sociais em curso, portanto, da luta de classes e das disputas entre os distintos projetos societários.

Essa que parece ser uma constatação óbvia, pelo menos no campo da teoria crítica, ao se materializar nas relações sindicais reais, ganha distintas conotações e colorações. O reconhecimento dessas múltiplas determinações deve nos levar a perceber, inclusive os limites reais de um sindicato e sua diferença funcional com partidos, movimentos sociais e governos. Um sindicato é um órgão de classe que representa uma categoria e, portanto, tem pautas coorporativas, mesmo quando dialoga com pautas gerais por conta de sua dimensão classista. Assim, reconhecer que a entidade sindical é apenas um sujeito no processo de luta política, parece ser fundamental para não superestimar a ação sindical. Da mesma forma, não podemos superestimar a ação da educação, entendendo-a descolada das relações sociais. Portanto, essa é uma compreensão de dupla finalidade, primeiro, reconhecer o lugar e o papel da educação embricada nas relações sociais; e, segundo, reconhecer o movimento sindical como apenas um sujeito, mesmo que muito importante, tão somente um sujeito coletivo.

Ao reconhecer o lugar da educação e, como sinalizado anteriormente, sua mercadorização nas relações capitalistas, explicita-se no horizonte a compreensão de que o seu lugar de sujeito social coletivo exige a articulação com outros sujeitos sociais coletivos, pois a luta em defesa de uma educação pública, socialmente referenciada e democrática, não pode ser tarefa exclusiva das comunidades acadêmicas ou de quem dela se beneficia diretamente. A educação, compreendida como bem social, deve ser uma reivindicação do conjunto da sociedade, inclusive dos segmentos da classe trabalhadora que, por ora, ainda não acessam os bancos escolares e universitários, mas que compreendem que, ainda assim, são beneficiados com a produção do conhecimento, da ciência e da tecnologia como forma de melhorar sua condição de vida. Essa compreensão exige de um movimento sindical classista a ampla articulação em defesa da educação e da melhoria das condições de vida, bem como estender a luta e a abrangência de direitos para a maior parte da classe trabalhadora ainda sob a ordem do capital. Sem, contudo, perder do horizonte a superação desta ordem, estruturalmente exploradora e desigual, o que pressupõe uma organização entre vários segmentos da classe trabalhadora, envolvendo entidades, movimentos coletivos das mais variadas formas e matizes, desde que marcados pelo anticapitalismo e anti-imperialismo como bandeira central.

Nesse processo de reconhecimento de lutas que caminham conjuntamente, outro desafio central para o movimento sindical é o reconhecimento e o tratamento de uma relação que deve ser simbiótica entre classe-raça-gênero, sem hierarquias e sem identitarismos. No caso do movimento docente do ensino superior público, organizado no ANDES-SN, implica em reconhecer que a maior parte da categoria é branca e que, na particularidade de um país escravocrata como o Brasil, essa conformação constitui estruturalmente um privilégio. Um racismo estrutural que marca a própria composição universitária pública, no âmbito dos discentes, mas, hoje, acima de tudo, dos docentes, que em sua maioria são brancos. Nossa categoria não é majoritariamente de homens, mas isso não elimina o machismo estrutural presente em nossas instituições de ensino e também na estrutura sindical. Reconhecer essa estrutura deve impelir o movimento sindical a ser, no âmbito das ideias, reflexões e produções, e acima de tudo das ações, antirracista e antimachista.

Para Oliveira (2021, p. 56), “[…] a luta antirracista tem um forte componente anticolonial, porque o racismo está diretamente ligado à constituição estrutural do sistema-mundo do capital. As relações raciais daí decorrentes são a expressão da luta anticolonial e da luta de classes […]”. E, segundo Angela Davis (2018, p.99):

“[…] O feminismo envolve muito mais do que a igualdade de gênero. E envolve muito mais do que gênero. O feminismo deve envolver a consciência em relação ao capitalismo (…). Ele deve envolver uma consciência em relação ao capitalismo, ao racismo, ao colonialismo, às pós-colonialidades, às capacidades físicas, a mais gêneros do que imaginamos, a mais sexualidades do que pensamos poder nomear […]”

Assim, sem querer, como afirma Haider (2019, p. 36), reforçar a ideia “[…] de Espírito Santo da Identidade, que ganha três formas divinas consubstanciadas […]”, é necessário reconhecer que classe, raça e gênero “[…] nomeiam relações sociais inteiramente diferentes […]” (idem), apesar de absolutamente vinculadas e, em algumas particularidades sociais, serem até simbióticas. Este reconhecimento coloca-nos o desafio de reafirmar a identidade e não o identitarismo liberal, que busca a sujeição de sujeitos identitários ao poder estabelecido, ou seja, à relação capitalista. Superar dicotomias, hierarquias e fragmentações identitárias, colocando como horizonte a superação da relação social, econômica, racial e de gênero que marca nossa história, é tarefa do movimento sindical e, sobretudo, de educadores e educadoras.

Esses são temas e debates que, se não forem tratados com a camaradagem necessária a uma perspectiva educativa e revolucionária, tendem a fracionar o movimento sindical. Situação que já se faz presente na conjuntura. Divisões eivadas de desrespeitos, de intolerâncias e de agressões, que mais se aproximam do campo político da extrema-direita, que tanto criticamos, do que do campo política que julgamos construir, o da esquerda socialista. Daí o desafio de compreender que esses são debates que acabam por marcar de forma agudizada gerações mais recentes, e que por vezes, se chocam, gerando conflitos. Essas situações têm evidenciado outro elemento contemporâneo que parece ser um desafio dos dias de hoje para o movimento sindical, a forma como se tratam as diferenças políticas e a problematização quanto a se essas diferenças têm ou não espaço na estrutura sindical.

Nunca vivenciamos em nossa história um período de tantos fracionamentos. São mais de 14 centrais sindicais registradas (de todas as matizes políticas e teóricas), inúmeras e infindáveis correntes sindicais e partidárias organizadas nos movimentos, dezenas de partidos políticos. Será que existem tantos projetos em disputa? Para além das diferenças políticas, de concepção teórica, de táticas e estratégias, parece ser importante considerar que o fracionamento exacerbado que vivemos hoje no âmbito das organizações da classe trabalhadora guarda algum tipo de relação com a intolerância e a dificuldade de lidar e aceitar as diferenças no campo da esquerda socialista. Se a incapacidade de dialogar no movimento de uma mesma organização é uma realidade, como buscar o diálogo com outras instituições para enfrentarmos os retrocessos atuais?

Então um novo desafio se coloca, o de dialogar com organizações, movimentos e entidades, na busca de construir não apenas a resistência aos retrocessos imediatos e a luta por direitos sociais, mas, também, com o olhar no horizonte, construir um projeto estratégico para a classe trabalhadora que seja capaz de tirar-nos da escolha do possível dentro da ordem, ou do “menos pior”. Um projeto que, partindo da análise de totalidade e da impossibilidade de construção de uma organização social justa e igualitária no âmbito do capitalismo, nos impulsione a construção de uma nova ordem societária, o que não é tarefa de uma categoria, mas de uma classe.

Para além dos elementos mais estruturantes que permeiam os debates e os desafios de reorganização do conjunto da classe trabalhadora, é importante marcar os desafios internos ao movimento docente no âmbito da educação superior no Brasil. Nessa perspectiva, além de um reconhecimento dos processos macroeconômicos e políticos que impactam em uma refuncionalização do Estado, a partir do horizonte ultraneoliberal, vivemos, no Brasil, a particularidade de um avanço conservador, que retirou das catacumbas da particularidade brasileira e da ditadura empresarial militar (1964-1985), o autoritarismo, o ódio, a intolerância e o extermínio como método político.

Essa é uma realidade que nos impõe um repensar a universidade pública. Vivemos uma disputa célere e desigual com o objetivo de deslegitimar o instituído e o que foi conquistado pela classe trabalhadora, o direito ao ensino público. Também as universidades públicas estão sendo o alvo da extrema direita na busca de um consenso, baseado em fake news, que estabelece esse espaço como o de produtor de valores que seriam antissociais, antifamília, antidemocrático. Argumentos que não se sustentam quando confrontados com a verdade, pois ao analisarmos as instituições públicas de ensino, com facilidade identificamos que: i) as instituições de ensino são múltiplas e não são ‘dominadas’ por uma única leitura política e teórica, ao contrário, as universidades se preservam como o espaço da diversidade e da multiplicidade, em que o contraditório deve, não apenas ser aceito, como reivindicado; ii) não existe uma uniformidade de pensamento, o que demonstra que a ideia de imposição do ‘pensamento único’, de fato, é uma reivindicação da extrema-direita conservadora, uma vez que o campo mais progressista rechaça a simples ideia de cerceamento de posições; iii) as relações trabalhistas precarizadas se fazem presentes no interior das instituições públicas de ensino. Nas universidades estaduais, por exemplo, pela absoluta ausência de um plano de carreira único, e, mesmo entre estaduais de um mesmo estado, a profunda desigualdade nas conquistas. No âmbito das federais, pela desigualdade interna provocada pelas contrarreformas na carreira docente, que leva professores que cumprem a mesma função terem direitos profundamente desiguais, até mesmo para aposentadoria. Em todas as instituições públicas, as contrarreformas marcam profunda desigualdade entre trabalhadores de uma mesma função, assim como a presença de trabalhadores terceirizados sinalizam a mais profunda precarização presente no interior dessas instituições; iv) o conservadorismo da sociedade também se espraia no interior das instituições públicas de ensino superior. O apoio e/ou indiferença às intervenções realizadas pelo governo federal na nomeação de reitores(as) é uma de suas principais expressões; v) a democracia interna das instituições é frágil, não sendo homogêneo e nem hegemônico a ocorrência de relações horizontalizadas e de construção coletiva; e vi) apesar da ampliação na entrada de estudantes de origem popular no ensino superior público, em grande medida provocado pelas cotas, as instituições de ensino ainda são restritas e para poucos, o que tende a elitizá-las.

Considerando esses e tantos outros elementos de diversidade presentes nas instituições de ensino públicas, a organização do movimento docente coloca-se como desafio, de forma ampla e contundente. E, nesse ponto, identifica-se outra fragilidade na organização sindical, a baixa sindicalização dos professores. Mesmo sendo o ANDES-SN um dos maiores sindicatos da educação superior da América Latina com ampla base sindicalizada, cerca de 70 mil professores, quando analisado o quantitativo de docentes da ativa hoje nas instituições públicas de ensino, cerca de 171.330 (BRASIL, 2022, p. 30), identificamos o hiato existente. Ao analisarmos os docentes sindicalizados nas seções sindicais do ANDES-SN, em que há elevado número de professores aposentados, o hiato torna-se ainda maior. Pois revela que entre os professores da ativa o sindicato possui baixo volume de sindicalização se comparado aos desafios que precisa enfrentar. Os motivos para a reduzida sindicalização entre docentes da ativa são múltiplas e não cabem nos limites desse texto, mas vale registrar, que esse é um desafio central a ser enfrentado pelo Sindicato Nacional, qual seja, o de ampliar a sindicalização entre os docentes da ativa como uma tarefa central para as lutas que se fazem necessárias travar em defesa da educação pública e gratuita.

Também há que se considerar, como aspecto desafiador para a organização do movimento docente, que o debate sobre a educação pública superior, necessariamente deve articular a luta pela educação pública básica- que hoje, entre outros elementos, passe pela defesa intransigente da revogação do Novo Ensino Médio-, assim como não deve se limitar às lutas corporativas de uma só categoria, mas sim, de forma simbiótica, reorganizar os trabalhos da educação no mesmo projeto, envolvendo educação básica e superior, docentes e técnicos, para em torno de um só projeto de educação para o Brasil dialogar com a população.

A defesa de uma educação popular, pautada de fato no tripé ensino-pesquisa-extensão, que faça sentido na vida real do conjunto da população, também se constitui como um dos desafios de hoje, pois vai na contramão do projeto privatista e de mercadorização da educação que avançou na última década.

Vivemos um tempo de desesperança, que parece nos levar a crer que não vale a pena se organizar nem mesmo lutar por mudanças e alterações na sociabilidade. Esse talvez seja o maior ganho do projeto neoliberal, criar consensos de que nada vale a pena e de que a conjuntura é inevitável. Consensos que empurram a classe trabalhadora à luta exclusiva pela sobrevivência dentro da ordem, sem o horizonte de que uma outra sociabilidade é possível. Ante a desesperança é necessário esperançar, como dizia Paulo Freire; ante a retirada de direitos é necessário reorganizar para não nos limitarmos ao possível dentro da ordem, ao menos pior; ante o ódio é necessário reafirmar o amor como relação revolucionária; ante a extrema-direita é necessário reorganizar a esquerda e não se satisfazer com a conciliação do inconciliável. Como dizia Bertold Brecht, “o pior analfabeto é o analfabeto político (…) Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas” (poema O Analfabeto Político). O sucesso radical do projeto de educação pública que almejamos e devemos construir depende da reconstrução da esperança em outra sociabilidade e da luta classista para além da ordem, por isso o nosso principal desafio é politizar a vida para reconstruir sonhos e esperançar, sem adesismo e sem sectarismo.


Bibliografia:

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DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Editora Boitempo, 2018.

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GRAMSCI, Antonio. Caderno do Cárcere – Os intelectuais, o princípio educativo, jornalismo. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, Volume 2, 2000.

HAIDER, Asad. A Armadilha da identidade – raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Editora Veneta, 2019.

IASI, Mauro. Direito e Emancipação Humana. Revista do Curso de Direito – Faculdade Metodista. São Paulo, 2005, pág 170-192. Disponível: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/RFD/article/view/477. Acesso: 02 de agosto de 2022.

LEHER, Roberto. Autoritarismo contra a Universidade– o desafio de popularizar a defesa da educação pública. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2019.

LIMA, Kátia Regina. Contra- reforma na educação superior: de FHC a Lula. Editora Xamã, São Paulo, 2007.

MOURA, Clóvis. Quilombos, resistência ao escravismo. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2020.

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OLIVEIRA, Dennis de. Racismo Estrutural– uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo: Editora Dandara, 2021.

SGUISSARDI, Valdemar. Modelo de expansão da educação superior no Brasil: predomínio privado/mercantil e desafios para a regulação e a formação universitária. Educação e Sociedade, Campinas, v. 29, n. 105, p. 991-1022, set./dez. 2008.

As opiniões expressas nas colunas são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.

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