A sala de aula na era de sua reprodutibilidade digital
Obviamente, já existe a neuroarquitetura. Como não poderia deixar de ser, a técnica de produção do espaço será uma das primeiras capturadas para atuar na disseminação de conceitos e consensos ultraneoliberais travestidos de moda pós-moderna, “preparando terreno” para a naturalização dos procedimentos necessários à manutenção dos ganhos do capital e que serão avassaladores para a reprodução da classe trabalhadora. Desde a reificação do fordismo/taylorismo no espaço através do desenvolvimento do urbanismo modernista, passando pelo combate antimarxista travado a partir dos anos 70 através da estética contextual-mercantil do pós-modernismo original, a arquitetura segue seu perfil (definido pela modernidade colonial renascentista) de modelador privilegiado dos espaços de hegemonia da classe hegemônica. A naturalização do homeoffice, imposta a partir da “janela de oportunidades empresarial” aberta pela mortal Covid-19, já havia sido adiantada desde o uso flexível e humanizado de contêineres, até a criação de “conceitos” de co-working, co-living e até mesmo de cloffice. Do mesmo modo, a arquitetura se adianta no diálogo com a neurociência, desenvolvendo um novo nicho de mercado para profissionais liberais do campo do projeto de interiores: a neuroarquitetura. Sua premissa é estabelecer a relação da percepção espacial do sistema nervoso com o desenho de espaços que procuram, ao mesmo tempo, o “bem viver” do cidadão e o aumento da produtividade corporativa por aplicação de cores, texturas, sombras e disposição de mobiliários, etc, etc… Uma espécie de feng shui neoliberal. Mas a arquitetura representa apenas uma faceta sutil e anedótica, ainda que ameaçadora, de uma onda que ganha cada vez mais bolsos e mentes, porque o coração já não há!
Para além da morfologia espacial, a neurociência atua diretamente na estratégia de mercantilização das próprias mercadorias, e o campo do neuromarketing merece atenção em uma sociedade em que o consumo, pelo menos a sua ética, impõe-se como a principal mediação social aparente. A mercantilização da vida contemporânea tem produzido a tiranização de diversas áreas do saber pelo gerencialismo, criando uma centralidade do marketing na construção das linguagens, sociabilidades, aprendizagens, espacialidades, etc. Esta centralidade encontra, hoje, na neurociência, um traço complementar que reúne ao mesmo tempo complexidade científica, behaviorismo e uma impressão de verdade legitimada pelo mercado. O neuromarketing surge como um positivismo cool que condensa empreendedorismo e cientificismo legitimado pelo senso comum do progresso digital. O encontro deste rebotalho neoliberal com o campo da educação mercantilizada precisa ser encarado de maneira urgente e detida!
1 – Do ne(ur)oliberalismo ao ne(ur)ofacismo:
Em uma matéria de abril[1], o Universidade à Esquerda destacou o caso do uso das headbands como uma das pontas tecnológicas de inovação das empresas educacionais brasileiras. Trata-se de uma testeira digital que captura estímulos cerebrais, o chamado neuromonitoramento, de estudantes a fim de aprimorar o uso de técnicas de apresentação das “videoaulas” na direção de capturar, cada vez mais, a atenção do consumidor-estudante. Segundo a matéria: “A headband foi desenvolvida pela startup BrainCo, fundada no Harvard Innovation Lab, em conjunto com o MIT Media Lab. A Somos Educação firmou parceria com a BrainCo e tem exclusividade para o uso das ferramentas da startup no Brasil”. A Somos Educação é pioneira na utilização destas geringonças, fruto de uma estratégia de Science in Learning organizada pelo conglomerado.
Esta estratégia é definida pela empresa como “uma iniciativa da SOMOS Educação que une tecnologia e neurociência para compreender os aspectos que ditam a aprendizagem e, então, propor soluções baseadas em evidências cientificas”[2]. Mas o nicho, chamado internacionalmente de science of learning, é amplo e deriva de um entendimento sobre como as máquinas desenvolvem sua aprendizagem (inteligência artificial, etc) para então construir novas habilidades de ensino para humanos[3]. Este setor revela a existência de uma “realidade distópica“ altamente dinâmica que recebe investimentos variados de fundações como a Edutopia que é financiada pelo diretor e produtor de cinema George Lucas[4].
Adentrando um pouco mais no emaranhado da neuroaprendizagem a partir do caso da Somos, duas questões surgem como pontos de destaque. A primeira é a participação da universidade pública no desenvolvimento de ferramentas para o aprimoramento mercantil. Conforme aponta a matéria citada, a gigante da educação firmou contrato com a empresa Forebrain[5] para acompanhar os estudos da headband. Ela é oriunda da incubadora de empresas da UFRJ, conforme matéria da época da instalação da startup no Parque Tecnológico[6] do campus do Fundão:
Billy Nascimento, formado em Biomedicina pela UFRJ e fundador da Forebrain, [afima que] ”o neuromarketing estuda como as propagandas, os anúncios e os estímulos visuais e sonoros influenciam nosso comportamento. Durante a minha graduação, comecei a estudar essa parte da neurociência e vi que estavam surgindo muitas empresas de neuromarketing na Inglaterra e nos Estados Unidos. Foi, então, que surgiu a ideia de criar uma empresa que aplicasse a neurociência ao mercado aqui no Brasil”[7]
Não deve ser diminuído o papel destas startups na reconfiguração do tripé da universidade cada vez mais ancorado no gerencialismo, empreendedorismo e inovação, a tal ponto de estimular a criação de empresas que determinarão, posteriormente, técnicas e tecnologias agressivamente privatizantes para o próprio setor educacional. Da mesma maneira, chama a atenção o fato de uma empresa de marketing estar coordenando um estudo sobre ensino-aprendizagem, o que é coerente com a prática cada vez mais disseminada de tiranização da administração, marketing e afins sobre todas as áreas do saber. Cada vez mais o sonho de americanismo das universidades públicas ganha forma na UFRJ, considerada a maior federal do país e que possui, em seu campus principal, uma paisagem da precarização pública reforçada pelos revestimentos brilhantes dos edifícios empresariais do Parque Tecnológico. O projeto, obviamente, é manter centros de excelência market-friendly às custas do sucateamento de todo o resto, reforçando, como tenho afirmado, o que Milton Santos define como a perversão das ciências[8].
A segunda questão a ser destacada é a maneira como estas técnicas produzem novas formas de privatização da educação. Uma delas ataca um elemento central para a manutenção do tempo público de ensino aprendizagem: o seu espaço. A pulverização do ensino originou a sala de aula portátil que se configura na forma de notificação de celular das novas formas de produção de EaD: a educação com um app. Um dos integrantes do Science in Learning mencionado na matéria do UàE, Ricardo Prado Schneider, é líder de desenvolvimento do Plurall[9], tecnologia propagandeada como a primeira plataforma multimarcas digital de educação do Brasil – utilizada pelas unidades da Somos.
A Plurall é um app gerenciador de EaD, uma plataforma que coordena as atuações fragmentadas de estudantes e docentes em seus pseudo encontros “assíncronos”. O app inclui o fornecimento de métricas de desempenho estudantil articulada ao envio de atividades que são automaticamente corrigidas pelo sistema a partir do formato de múltipla escolha. Além da oferta de livros digitais, o app pode funcionar offline e, sobretudo, onde o estudante estiver. No site, há um depoimento atribuído a um “aluno do PH” que comemora: “Plurall, eu te amo. Eu acabei de fazer lição numa pizzaria!”
Em um texto anterior desta coluna eu havia me dedicado à politização da distância do ensino remoto-digital. A pulverização do espaço de ensino aliada a uma sensação de proximidade e individualidade da experiência educacional ofertada pelos sistemas digitais é um dos produtores de consenso que facilitam a aceitação da EaD. Também é uma das chaves da viabilização da privatização do ensino ao conseguir substituir de modo dissimulado o espaço e tempo públicos das experiências presenciais, que precisam ser coletivas, simultâneas e conflituosas, por uma prática imediata e individualista mais próxima da hegemonia neoliberal. Mas a combinação da questão da distância com a neurociência eleva o patamar do problema a ser enfrentado ou, dito de outra forma, evidencia de maneira mais explícita o sentido do ensino que o capital deseja.
A fala do criador da Plurall a respeito dos objetivos que a neuroaprendizagem deve conquistar com o uso das técnicas de calibragem de “captação de atenção” via headbands é reveladora: “O que a gente faz hoje é teatro filmado, e teatro filmado não é cinema”. De forma proposital ou não, ao defender a migração do ensino remoto de uma categoria da arte para outra, acabou por expor um fato que precisa ser melhor compreendido: a substituição da sala de aula, ou de qualquer espaço presencial de aprendizagem por um aplicativo ou plataforma digital traz consequências de forma e conteúdo que não podem ser diminuídas, mas que exigem um entendimento em diálogo com outros campos do saber. O lugar da arte no capitalismo é um deles. O desejo de transformar a educação em cinema guarda semelhanças com um fato histórico que chama a atenção: o uso eficiente de produções cinematográficas pelos regimes fascistas como uma técnica para construir seus consensos. A educação na era da neuroaprendizagem em uma sociedade espetacular pode se tornar uma arma muito perigosa contra a qual o mero negacionismo não pode ser a forma de combate.
2 – O neofascismo de Bolsonaro e a facada da burguesia: teatro filmado ou cinema?
Para garantir a vitória de Bolsonaro em 2018 foi necessário transferi-lo dos teatros filmados e colocá-lo no cinema. A popularidade do candidato era grande, a estrutura das redes sociais e fake news, obviamente, já estavam funcionando em pleno vapor – e seriam decisivas – mas foi necessário recorrer a uma arma segura, a edição das imagens, para não permitir erros na escolha que a grande burguesia havia feito, com apoio mais ou menos declarado da maioria das frações que compõem a classe proprietária. Um mês antes do primeiro turno, ao perceber que seus candidatos preferenciais, sobretudo Alckmin, não decolariam mais, os setores da classe dominante que estavam conduzindo o golpe desde 2016 tomaram mais uma decisão que envolvia vários pequenos golpes. Era preciso, ao mesmo tempo, retirar seus candidatos do caminho, diminuindo ainda mais o número de votos que eles estavam conseguindo para transferi-los para o “mito” genocida e tentar forçar uma vitória no primeiro turno (ou uma vantagem quase irreversível, enfraquecendo os adversários).
Para garantir a transferência de votos de liberais da “social democracia” em Bolsonaro, e não em Haddad, era preciso que essa não se tornasse uma escolha difícil. A operação deveria ocorrer em mão dupla: de um lado seria necessário queimar Alckmin[10], do outro, lapidar Jair para se tornar uma mercadoria menos indigesta. A primeira ação deliberada representa um dos fatos menos comentados da política recente brasileira, mas que tem um significado profundo para o entendimento da importância que teve, para a burguesia, o governo Temer. Decidiu-se, talvez um caso inédito, realizar uma transferência de impopularidade. A baixa aprovação de Temer era estratégica para seu governo, pois somente alguém com tamanha rejeição, mas sem pretensões de reeleição, poderia ser capaz de colocar em curso ações impopulares como as contrarreforma da previdência (barrada pela greve geral de 2017) e trabalhista (autorizada pelo recuo cutista de 2017). Mas a pequenez de Temer mostrou ser maior do que se imaginava, e numa espécie de aumento absoluto de mais-favor, esticaram o uso de suas mesóclises na gravação de dois vídeos (que não foram divulgados pelo Planalto, mas pelas redes sociais de Temer nos dias 5 e 6 de setembro, há um mês das eleições) que expunham o fato de Alckmin, e do PSDB, ter participado do governo Temer: “O PSDB, Geraldo, apoiou o meu governo. Não faça como aqueles que falseiam, que mentem para conseguir votos influenciado(sic) pelo marqueteiro. Seja realista, conte exatamente a verdade”[11]. Assim, a aproximação de Temer a Alckmin, transferindo impopularidade, manteria o PSDB no baixo patamar que se encontrava, abrindo espaço para a promoção de Bolsonaro.
Mas, para isso, seria necessário repaginar o Messias. A facada aconteceu no mesmo dia da divulgação do segundo vídeo de Temer. Não entraremos aqui em uma polêmica sobre a facada ter sido encomendada ou não pela campanha como uma encenação fake, mas o último ato de teatro filmado, provavelmente aconteceria naquele momento, se não fosse a facada, outro argumento seria utilizado. O fato é que o candidato sai de cena e entra, em seu lugar, um Bolsonaro 100% editado, controlado em imagens, com suas falas gravadas em programas de rádio, TV e redes sociais. Bolsonaro é inserido na era de sua reprodutibilidade técnica. Repetindo o que candidatos anteriores já haviam feito, o mito não compareceu nem mais a debates. Não há dúvidas de que suas falas de improviso, aqueles grunhidos esquisitos, encontram eco em parte da sociedade brasileira, ganhando votos e apoios em camisas da seleção. Entretanto, era necessário que sua zona de influência extrapolasse os 30% do chamado “gado” e, para isso, nada como a técnica cinematográfica, nada como o abuso do uso edição das imagens. O fascismo soube extrair ganhos deste procedimento desde seu nascedouro.
Assim, a partir de roteiros, montagens, inúmeras tomadas, edições, era possível construir um candidato mais palatável, uma farsa tão consumível como cerveja de milho. Ora, uma sociedade que consegue sentir prazer na tortura disfarçada de “prova” de reality show é totalmente capaz de saborear um candidato notoriamente fascista filtrado pela linha de montagem do audiovisual. Como afirma Benjamin[12]: “[a humanidade] se transforma em espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo.” (p.196)
Este exemplo, que ajuda a entender uma das facetas que garantiram a ascensão de um governo neofascista, pode ser útil para compreendermos outras formas de utilização das técnicas cinematográficas que podem ser capazes de aprofundar as condições de transformação do governo em um regime neofascista: retornemos à neuroaprendizagem.
3 – Quando o neuromarketing encontra a espetacularização da educação
O cinema, obviamente, não é essencialmente fascista. Não há neutralidade técnica, assim, seu uso e produção estará sempre em disputa. A pergunta que deve ser realizada neste momento é: qual a relação entre o cinema, ou melhor, entre a produção audiovisual e a conversão da educação num instrumento de imposição de consenso neofascista? Esta ameaça está presente, principalmente, quando investigações de comportamentos de consumo, como o neuromarketing, se tornam úteis para o aperfeiçoamento das “aulas” à distância que, assim, tornam-se cada vez mais alienantes, mercantis, espetacularizadas enfim.
A disseminação do Ensino Remoto imposta pelo combate à pandemia de Covid-19, oportunizado pelos grandes conglomerados educacionais, exige uma aceleração da crítica sobre as formas de adaptação da nova mercadoria educacional tecnológica. O entendimento destas mudanças, obviamente, não deve ser tributário de contribuições exclusivas do campo da educação, na medida em que as alterações recentes reúnem técnicas de diversas áreas, desde a conquista de territórios e implementação de infraestruturas, passando pelo marketing, tecnologia digital e a própria arte. A pedagogia, cada vez mais, é expropriada de sua centralidade no debate educacional, o que representa, ao mesmo, tempo uma tática e uma conquista do combate travado contra a educação promotora de autonomia, crítica e humanização social. Devemos, portanto, reunir forças críticas em torno de interpretações que alimentem e reforcem a necessidade de retomada do debate pedagógico como central.
Uma das formas de garantir esta resistência da pedagogia é denunciar falsas apropriações sobre o sentido da educação que determinados campos criam em nome de uma pseudo-aprendizagem, como aqueles que estão amparados em tecnologias de produção de imagem, publicidade e propaganda apoiados pelo neuromarketing.
Daí a necessidade de desmascarar o discurso que compara as aulas de ensino remoto como “teatros filmados” que deveriam ser aperfeiçoados como “cinema”, no sentido de garantir uma atenção maior de seus espectadores e, consequentemente, garantir uma melhor aprendizagem. A ameaça deste discurso é velada, mas trai seu disfarce no elogio do progresso, na reivindicação de um aperfeiçoamento da produção de cenas ancoradas no consumo. Reside nestas concepções um projeto político que é facilmente identificável por quem estuda de maneira crítica a trajetória das artes dentro do capitalismo: não há nenhuma relação entre o aperfeiçoamento reivindicado pelas empresas educacionais e a melhoria da aprendizagem, o que existe é um flerte ameaçador de aprofundamento do fascismo através de doutrinação mercantil!
Quem faz este aviso, que se torna cada vez mais contemporâneo, é Walter Benjamin em seu conhecidíssimo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Ele parte de um problema concreto, o surgimento da técnica de reprodução mecânica de imagens, inicialmente através da fotografia, como uma ruptura industrial no campo das representações e valorações artísticas. O impacto técnico, similar ao surgimento das máquinas a vapor na produção têxtil, quando a quantidade se torna qualidade, trará complicações, contradições e transformações no campo das artes, inclusive alterando o estatuto laboral da classe artística. Benjamin, em um exercício dialético formidável, evidenciará determinações que colocam o campo das artes em uma encruzilhada entre a conservação e o progresso, demonstrando a necessidade de saber politizar a transformação em jogo na medida em que a técnica é apropriada, de maneira muito eficiente, pelo fascismo. É um grito de urgência contra a tentativa de conservação das bases tradicionais da produção das artes para alertar sobre os riscos da entrega cega e total das consequências do progresso para os fascistas. Benjamin cria uma ponte histórica entre passado e futuro a fim de alertar sobre os rumos que a sociedade capitalista percorria segundo sua produção de arte.
A constatação mais incômoda de uma primeira leitura deste problema é perceber que, talvez, as aulas presenciais podem ser consideradas como um mero capricho conservador diante de uma avassaladora e inexorável migração digital e que, portanto, é preciso disputar o audiovisual educacional sob o risco de deixar a hegemonia do campo nas mãos fascistas. Mas o que percebemos hoje é diferente. Existe uma farsa na mudança reivindicada pelos arautos da neuroaprendizagem. Diferentemente da invenção da fotografia, as tecnologias de ensino remoto não foram inventadas agora, elas existem há tempos e já demonstraram seu fracasso em relação ao ensino presencial inúmeras vezes. Não foi a invenção desta técnica que atropelou o ensino presencial, muito pelo contrário, ela fracassou enquanto aprendizagem em vários e conhecidos aspectos, apenas ganhando adesão onde não há opção. A fotografia mudou a arte por sua sedução, o ensino remoto se torna hegemônico apesar de sua repulsa!
A condição sanitária que enfrentamos abriu uma brecha política para a imposição da técnica digital de mediação da aprendizagem, e, para legitimar esta implementação, antes que seu fracasso se torne notório, é preciso reinventar a técnica, dando-lhe um tom inacabado no presente: o teatro filmado, que surge, assim, como uma transição para o cinema. O ensino remoto atual, portanto, torna-se uma promessa de algo melhor.
Apesar desta farsa, ou exatamente devido a ela, o texto de Benjamin permanece como apoio necessário para desvelar a falácia deste procedimento. Faremos aqui um exercício de interpretação a respeito da implementação de um ar cinematográfico à “sala de aula”, indicando como ele servirá, de maneira imediata, ao reforço do fascismo tal qual denunciado acertadamente pelo filósofo alemão na década de 1930. Desta maneira, torna-se evidente que a reivindicação pela permanência do ensino presencial não é mera retórica conservadora, mas necessidade urgente de reconstrução de uma educação para a classe trabalhadora.
Comecemos com o objetivo anunciado pelos empresários, isto é, conseguir construir as aulas de modo a captar a atenção de estudantes o máximo de tempo possível, utilizando, para isso, uma composição de diferentes técnicas de sedução, fazendo com que a aula se torne quase um catálogo de malabarismos midiáticos. Para alcançar uma exposição com tamanha eficácia, isto é, uma representação que “prenda a atenção” de diferentes estudantes o máximo de tempo possível em qualquer aula que seja, obviamente, é necessário conformar, também, um perfil pasteurizado da plateia.
Reside nesta concepção um afastamento crítico do corpo estudantil que é garantido sobretudo pelo fato de que atividades assíncronas não produzem diálogo. Importante perceber que não é o espectador quem define a sequência em que o cinema é assistido. Portanto, nesta relação de consumo educativo audiovisual espetacular, a plateia precisa ser atraída, agradada, reconhecendo-se naquilo que assiste e, por isso, a necessidade das headbands.
Este jogo produz um curto circuito de alienação que, partindo da necessidade de não participação estudantil no processo da aprendizagem desembarca na outra ponta do não-diálogo. Assim, ao docente, para agradar a uma plateia sedenta por encantamento, caberá proporcionar uma experiência confortável que, por sua vez, é orientada a partir daquilo que já atrai seu público. Não há criação de repertório crítico, apenas reprodução do senso comum de discentes. Aliena o estudante de sua curiosidade e expropria o saber docente de uma única vez.
Docentes cineastas deverão lidar com a chamada perfectibilidade, construindo diferentes maneiras de abordagem que entretenham de forma total seus consumidores durante o maior de tempo possível de sua aula. Para alcançar tal perfeição, sua carga de trabalho, inclusive, será muito maior na medida em que precisará realizar diversos materiais brutos, diversas aulas que serão depois editadas em um conteúdo mais palatável. A edição é condição necessária de realização do cinema. Provavelmente caberá ao docente também fazer a edição, pelo óbvio.
Ao mesmo tempo, o cinema se torna um teste. O docente, durante todo o processo de filmagem, encenações, repetições, aperfeiçoamentos, será testado na direção de aperfeiçoar o controle de seus gestos, impulsionar sua atuação, submetendo-se à forma, à técnica de filmagem, e não mais construindo um diálogo entre forma e conteúdo como ocorre nas aulas presenciais. Mas quem fará sua testagem não serão agentes de direção de cinema, mas relatórios paramétricos extraídos das testeiras digitais organizadas pelo neuromarketing. Para agradar a um público padronizado, padroniza-se também o docente segundo o desejo técnico não pedagógico, mas imagético.
Este processo de adaptação cinematográfica, aparentemente, destruiria a aura da aula presencial. A destruição da aura, no campo das artes, arranca a obra da tradição, abrindo espaço para uma ruptura da arte como parasita de outras realizações humanas, isto é, dando-lhe autonomia. A arte deixa de ser adjetivada (religiosa, palaciana, ritualística) para se tornar substantivo. Ora, trata-se de uma das condições para sua mercantilização, na medida em que sua autonomia será realizada através de seu valor de exposição, do consumo de massas. A ruptura da aura, portanto, joga a arte na disputa histórica da luta de classes em sua forma capitalista, com um status de autonomia, de mercadoria e como realização técnico-política.
Mas o que significaria a destruição da aura da aula? Talvez este seja um debate dos mais delicados. Afinal, é possível manter a aura depois que ela se rompeu? Não seria a procura pela manutenção do ensino presencial uma forma inócua de luta diante do avassalador progresso? Não seria mais importante, portanto, jogar-se na disputa do progresso imagético para destituir-lhe de seu potencial fascistizante? A resposta não é simples. Mas defendo que a luta deverá ser pela restituição do caráter presencial simultâneo de ensino-aprendizagem, o que não significa a manutenção de uma condição conservadora e ritualística da sala de aula.
A perda da aura tem relação com a materialidade da obra de arte. É a sua reprodutibilidade técnica que a retira da condição de coisa única. No caso de uma aula, a reprodutibilidade técnica realiza-se hoje, sobretudo, a partir da desmaterialização da sala de aula, que se torna ambiente digital, propenso a interferências, inclusive, da neurociência. Para a obra de arte, como já foi dito, esta ruptura da aura foi muito importante para constituir uma nova disputa do que deve ser uma arte de massas, deslocando-a do reino do culto, fosse ele mágico ou religioso, deslocando a qualidade da obra de arte para o lugar da realização da quantidade. Entretanto, o campo educacional, de certa forma, já havia rompido com seu caráter ritualístico de outra forma. Não foi a partir da materialidade de sua realização (seu espaço) que essa ruptura foi feita, mas a partir de seu conteúdo. O campo da educação construiu sua disputa política contra a tradição, configurando sua autonomia e exprimindo sua politização a partir de seu conteúdo e não de sua forma.
A luta pela construção dialógica em sala de aula, a ruptura do autoritarismo docente, do culto ritualístico do conteúdo trabalhado em aula se deu através de inúmeras reformas educacionais ao longo da vida educacional dentro do capitalismo. O caráter único da aula presencial experimentado de maneira crítica, portanto, não pode ser confundido com um valor ritualístico ou de culto como ocorria com a arte. Portanto, o sentido de realização única de uma aula presencial situado em uma pedagogia crítica exige uma relação coletiva, e não uma fruição individualizada. O valor processual de construção de saberes demanda uma coletividade que rompe ao mesmo tempo com a aura e com a valorização de uma cultura de massas pasteurizada. Portanto, reivindicar a manutenção das aulas presenciais não se trata de uma luta inglória pela manutenção de uma materialidade que, inevitavelmente, será dissolvida pelo progresso. A luta pela manutenção presencial significa a reivindicação de um caráter temporal de simultaneidade, o único capaz de produzir diálogo. Isto significa, inclusive, o retorno da pedagogia à centralidade educacional. O deslocamento da educação para a área das artes de massa, e do entretenimento, é que gera uma confusão capaz de suscitar a ideia de que a aula possuía um caráter aurático inevitavelmente perdido: esta é a armadilha!
Instrumento de reforço do consenso neoliberal, a aula-cinema ancorada no consumo orientado pelo neuromarketing torna-se valor de exposição cujo hábito seria moldado pela ótica, pela forma, pela técnica, pelo teste, sem conteúdo além do consumo. A digitalização da sala de aula significa um treinamento estético embrulhado como se educação fosse. Seu resultado será, portanto, um encontro desastroso entre uma plateia adestrada que encontra em seu adestrador suas próprias vontades reforçadas, a comunidade educacional vai se tornar uma máquina de repetição de si mesma.
Foi exatamente esta a forma de utilização do cinema pelo fascismo, a sociedade se enxergava na tela como um esplendor, uma perfeição. Enxergava, entretanto, um espelho editado, simulando uma perfeição de si mesma, grandiosa e bela; uma promoção de narcisismo coletivo que a história demonstrou onde pode chegar. A neuroaprendizagem digital, potencializada por sua aproximação cinematográfica, será produtora de uma expressão de massas que se espelhará no consumo como realização, isto é, mantendo as relações de propriedade e exploração. No limite, apaga as relações conflituosas da educação, produzindo a falsa segurança do consenso neoliberal apoiado pelo mercado e representando um espelho distorcidamente perfeito da sociedade. A neuroaprendizagem digital retirará o convívio entre diferenças de seu espaço, deslocando os conflitos da esfera da política e jogando-os no campo do confronto, da competição. E a sociedade brasileira poderá aprofundar ainda mais sua brutalidade, violência e capacidade de extermínio em nome da manutenção de seu espelho de narciso-colonial, na direção de reforço das condições de implementação de um regime neofascista:
“Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Este ponto é a guerra. A guerra e somente a guerra permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa, preservando as relações de produção existentes.”(p.195).
Não há tempo para tergiversar. Quando a educação mercantil se apoia no neuromarketing, quando o neoliberalismo se impõe enquanto totalidade apoiado no combate à pandemia, quando uma nova geração de políticos aprimora a implementação do neofascismo a partir de formas gerencialistas mais eficientes que os gritos cada vez mais assustados (e ameaçadores) do capitão-cloroquina, enfim, quando até mesmo as eleições, partidos e as centrais sindicais já foram privatizadas, “o comunismo deve responder com a politização”…da própria política!
[1] Esta coluna estabelece um diálogo com a incômoda matéria “Headband”: a tiara neuronal para medir o engajamento do estudante”. Recomendo fortemente a leitura da mesma que está disponível no hiperlink acima.
[2] Extraído da página da Somos Educação: “Tecnologia e a Somos Educação”. A empresa oferece a possibilidade de conhecer melhor o sistema em um webinário, que conta, inclusive, com a participação de docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ambos disponíveis nos hiperlinks acima.
[3] Sobre science of learning pela universidade Jonh Hopkins.
[4] Sobre a fundação Edutopia, no hiperlink. Estávamos na torcida para que eles desenvolvessem alguma aprendizagem jedi, mas não parece ser este o foco da fundação que está mais para império contra ataca.
[5] Aqui os cases que a empresa apresenta como destaque de sua atuação. Disponível no hiperlink ao lado.
[6] Praticamente vizinho ao duplamente incendiado (2016 e 2021) Edifício Jorge Moreira Machado, marco da arquitetura modernista brasileira e que abriga a Reitoria, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a Decania do Centro de Letras e Artes e, até antes do primeiro incêndio, a Escola de Belas Artes (que segue sem um espaço definitivo para seu funcionamento) e o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (que foi deslocado para o prédio da Faculdade de Letras desde 2016). O Parque Tecnológico da UFRJ, por sua vez, recebe empresas internacionais de petróleo e gás (como a Halliburton), a Ambev, a L’Oréal, Dell, Siemens, etc, garantindo ao setor privado o conforto e a economia de utilização do espaço público a seu favor, dispondo de farta oferta de cérebros de obra pagos em reais.
[7] Disponível na matéria do Olhar Vital – UFRJ. No hiperlink ao lado.
[8] Em texto anterior desta coluna eu já trouxe este conceito de Milton Santos. Integro o Coletivo Perifau (do PROURB/FAU/UFRJ) que tem produzido pequenos curtas de animação sobre alguns conceitos do geógrafo baiano e um deles foi dedicado especificamente à perversão das ciências.
[9] Se você ainda não conhecia esta aberração, cuidado com o gatilho: plurall.net
[10] Obviamente que isso era bater em cachorro morto. Mas as pesquisas em setembro davam 9% para Alckmin e ele terminou o primeiro turno com apenas metade dos votos, dobrando sua meta de fracasso com 4,76%. O cachorro apanhou.
[11] Para quem nunca asssitiu a esses vídeos, é imperdível. Neste link você encontra o segundo deles.
[12] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. p 165-196.
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