Jornal socialista e independente

Cláudio Ribeiro

Cláudio Rezende Ribeiro é professor da FAU-UFRJ (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) onde atua com ensino de urbanismo, meio ambiente e história da cidade na graduação e no Programa de Pós-graduação em Urbanismo – PROURB/FAU/UFRJ. É pesquisador do Laboratório de Direito e Urbanismo e participa do coletivo PERIFAU. Foi presidente de seção sindical do Andes-SN na UFRJ, a Adufrj-ssind de 2013 a 2015, e integrou a a diretoria nacional deste sindicato de 2016 a 2018. Defende uma universidade pública, gratuita, laica, de qualidade e socialmente referenciada. Acredita que a cidade só se realiza no conflito.

A coragem é uma construção coletiva! Sobre a violência eleitoral e seu combate

12 de outubro, 2022 18:43

Sobre a ordem eleitoral

Na rua onde moro existe um cruzamento movimentado que oferece certo risco de acidentes, incluindo atropelamentos. Havia ali uma placa, presa num poste há uns quinze metros da esquina, onde se lia algo mais ou menos assim: respeite o sinal! O sinal, conforme desenhado na placa, era o semáforo instalado no tal cruzamento. Eu costumava chamar aquela placa de materialização da ideologia. Desde que ela foi instalada eu achei curiosa a capacidade dos símbolos institucionais se reproduzirem a fim de reforçarem uma ideia de um poder que, de modo concreto, não existe como tal. Afinal, se o semáforo já não era respeitado, como a solução para este problema poderia ser a colocação de mais um sinal que garantisse a obediência do outro? Pelo óbvio, aquela placa não estava lá para dar uma força à difícil tarefa do semáforo em organizar os podres poderes. Ela estava lá como um reforço à ideia de que placas, instruções, regras, etc, deveriam ser obedecidas. Ela era uma encarnação da eficácia do ordenamento: nós sabemos que aqui vocês avançam os sinais vermelhos e perdem os verdes, e, agora, vocês sabem que a gente sabe. Estamos de olho! Isso nunca impediu que ninguém furasse o sinal, pelo óbvio, mas mostrava que as pessoas, ali, eram desobedientes (o que poderia criar um certo orgulho em quem respeitava o semáforo, na medida em que, com uma obediência só, agora obedecia duas sinalizações ao mesmo tempo).

As eleições burguesas funcionam mais ou menos da mesma maneira… O comportamento do eleitorado é cada vez mais homogêneo, seja ele militante ou não; aliás, cada vez mais estes dois tipos se assemelham a tal ponto que “militante” já tem sido chamado de “voluntário” por determinadas forças políticas ditas de esquerda… O comportamento homogêneo absorve a campanha tal qual ela se apresenta: horário gratuito, páginas de internet, redes sociais, notícias na televisão e pesquisas eleitorais. Assim, numa crescente espetacularização da política, fazer campanha se tornou seguir determinadas regras que, curiosamente, foram construídas por um congresso que, em tese, queremos derrubar. Esta flagrante contradição é deixada de lado, e a obediência às regras eleitorais se torna a única e mais adequada forma de “competir” para um cargo: eleições se tornaram uma subespécie de meritocracia, uma ilusão construída no mito da igualdade de condições.

Mas o que ocorre quando as pesquisas, as notícias, as redes sociais e as páginas de internet não resultam naquilo que era esperado? Qual a reação diante de uma disfunção? É aí que a ordem cumpre seu papel ideológico: ao invés de compreender que o semáforo não está mais adiantando para muita coisa, as forças da esquerda eleitoral adotam a solução de colocar uma placa para lembrar que a ordem precisa ser seguida, retomada. E assim, depois de um primeiro turno com uma tática, digamos, arriscada (para não fazer um balanço mais rigoroso agora) que acabou gerando um recuo de parte de militância para o segundo turno (imagino como devem ter reagido as/os voluntárias/os após a não vitória no primeiro turno), a tendência que aparentemente se cria é: agora vamos seguir acompanhando as pesquisas e as negociações da cúpula que serão atualizadas a cada programa político; vamos acompanhar as redes sociais (que disseminam poder verticalizado) e vamos torcer para dar certo… No caso atual, se “dar certo” significa um resultado da ordem estabelecida, vale lembrar, teremos notícias péssimas no segundo turno, pois a ordem (estabelecida hoje de forma hegemônica) prevalecerá. E, quem diria, ela não liga para placas… Aliás, vale relatar aqui que a tal placa já foi arrancada da minha rua há tempos e o semáforo não funciona direito, dentre outras coisas, porque cabos são roubados diariamente para serem vendidos em troca de comida ou outras formas de alimentação da alma.

O desencanto eleitoral

É bom lembrar que a ordem já foi rompida. Mas pela ultra direita. E, naquele momento, um inicialmente combativo “Fora Temer!” se domesticou para uma reivindicação eleitoral que garantiu ao mesmo tempo a conclusão do mandato do golpista impopular das ênclises com direito à transmissão da faixa presidencial para o genocida imbroxável. Não podemos perder de novo.

Longe de avaliar táticas equivocadas diante das dificuldades dos últimos quatro anos, é preciso, neste momento, construir formas de combate que, somadas, consigam derrotar a confirmação, pelo viés da ordem, da desordem neofacista que está se construindo: uma espécie de ultra ordem!

Para que a derrota seja superada, precisamos identificar como ela tem sido construída. Suspeito que, em parte, a responsabilidade venha do tratamento diligente que a esquerda tem dado às eleições, como se elas fossem um sinal a ser obedecido. Ora, o que estamos vivenciando hoje é um exemplo do rebaixamento que a política eleitoral burguesa conseguiu alcançar depois de se decantar, eleição após eleição, desde a Constituição de 88. O modelo adotado, com o tempo, tem rebaixado as pautas em disputa e, sem dúvida, construiu um consenso sobre a política econômica, deixando as disputas evidentes em um campo da moralidade, da tradição, do carisma, etc… Cada vez mais a hegemonia burguesa se consolida de maneira desavergonhada: quando precisam acelerar reformas, dão um golpe, e quando precisam retomar a condução de certas pautas (como um mínimo de crédito internacional), resfriam o golpe dado e recolocam na “disputa” as soluções conciliatórias existentes em seu cardápio: e elas que lutem para agradar ao agro, aos bancos, às indústrias… Assim, chegamos a um segundo turno em que temos quatro homens disputando a eleição: dois representantes do centrão (Lula e Alckmin), e dois da ultra direita (Bolsonaro e seu milico de plantão da vez).

A que ponto chegamos! A chapa de Lula se tornou a recolocação da placa que diz: o semáforo precisa ser obedecido! E vamos fazer de tudo para a recolocação da placa, é claro. Mesmo que o semáforo esteja apagado ali na frente. Agora, é preciso destacar que isso não pode fazer com que acreditemos, de fato, na mensagem que a placa carrega. E, longe de debater aqui o programa da chapa de Lula, pelo óbvio, pois há muitas contradições, o que deve ser compreendido é: o que precisamos fazer para que esta chapa seja colocada no poder? É bom lembrar que o fato da placa ter sido arrancada hoje, pode significar a colocação de uma outra placa pior, amanhã! E, afinal estamos longe de conseguirmos derrubar o poste…

Segundo turno: a violência objetiva e o seu combate

A questão que me parece mais fundamental é deixar de acreditar no ciclo eleitoral como tempo organizador de nossas ações políticas. Ao rompermos com essa perspectiva temporal, também romperemos com nossa perspectiva espacial de luta, e começaremos a reocupar vazios deixados nos últimos anos. Isso significa que nossa perspectiva de luta não pode ser pensada em ciclos de quatro anos, mas, a partir de um tempo contínuo de reivindicações e organização crescentes. É um erro acreditar que uma ação pensada em longo prazo não seja eficaz, ao mesmo tempo, para organizar a vitória eleitoral. Muito pelo contrário, a crença na ordem é que nos conduz a ações que nos tem levado à dupla derrota eleitoral e organizacional.

Um dos exemplos mais contundentes desta argumentação é uma fala frequente que afirma que “não aguentaremos mais quatro anos deste governo”. Obviamente que não aguentaremos. Mas, se pensarmos bem, não devíamos ter aguentado nem um dia sequer! Mas não tínhamos força nem organização para tal. Por isso precisamos começar a organizar uma luta mais robusta e continuada para enfrentar o próximo ciclo que, mesmo com Lula (que é o melhor cenário possível), será muito complexo – e as eleições podem ser um ótimo momento para um reinício da reorganização da classe!

A tática que rompe com o tempo eleitoral pode, contraditoriamente, ajudar a construir a vitória nas urnas. Isso significa admitir que as urnas não são um ponto de partida e de chegada na política, o que nos leva a compreender que a vitória dos votos não pode ser construída de forma exclusiva dentro do limitado campo eleitoral. É nas ruas que se conquista a vitória das urnas! A crença desesperada no tudo ou nada eleitoral gera uma reação comportada, incapaz de errar e, portanto, incapaz de tentar algo novo, de arriscar. Mas precisamos nos arriscar! Se não tentarmos algo diferente do que tem sido feito nas últimas eleições…sabemos o resultado. É preciso ousadia!

Ousadia, entretanto, não significa a invenção de algo novo, nunca pensado, milagroso… Muito pelo contrário, é visitando a história que encontramos o que precisa ser feito: a retomada de formas de organização coletiva de base que prezam a política, a solidariedade, o encontro, mais do que a insistência obediente em uma campanha impessoal, digital, espetacular e pensada de cima para baixo pela arrogância de quem não reconhece os erros que cometeu!

Não se trata de reivindicação vazia ancorada em um otimismo idealista. A primeira semana do segundo turno, para quem ainda não compreendeu, tem sido uma demonstração de como será o segundo mandato do fascista tropical: perseguição ostensiva a manifestações políticas têm ocorrido em vários lugares (impedimento de panfletagens, intimidação pela polícia, etc); aceleração das reformas (Lira já anunciou a retomada da reforma administrativa antes do resultado do executivo, surfando na onda parlamentar que lhe foi favorável) e o MEC impôs (para depois simular um recuo parcial) mais um corte no orçamento das instituições de ensino e pesquisa públicas federais. Não é impensável a realização, por parte de forças milicianas, de mais chacinas em nome da retomada e controle de certos territórios, operando como uma versão brutal do midiático e sorridente “vira voto”. E, enquanto isso, o candidato Bolsonaro surge cada vez mais instagramável, domesticado, cínico e violento.

A violência, como insiste Žižek[1], possui um duplo caráter: o objetivo, que é cotidiano, naturalizado (e ideológico), não identificado como tal; e um caráter subjetivo que surge em contraste com a objetividade, sendo, portanto, percebido e nomeado como violência. Chico Buarque nos lembra que “Não brilharia a estrela, oh bela/Sem noite por detrás”[2]. O fato da violência subjetiva ser percebida, e mesmo nomeada como tal, não faz dela a única e absoluta forma de violência. Assim, se quisermos combater a violência e seu crescimento, é preciso expor também sua face objetiva e reconhecer a existência desta espécie de grau zero da percepção. Sem compreender a violência acumulada na vivência cotidiana, na ordem, etc, não seremos capazes, sobretudo, de perceber quando seus limites se ampliam, ocultando novas violências sob o manto da normalidade.

O que estamos assistindo nos últimos quatro anos, mas de maneira acelerada neste início de segundo turno, é um aumento substancial da violência objetiva, incorporando o que antes era lido como uma face subjetiva e que se naturaliza de forma veloz. Assim, ver um candidato agredir uma jornalista ao vivo;  presenciar um falso padre participar de um debate eleitoral ao cargo máximo do executivo nacional de maneira jocosa e irresponsável; ou até mesmo temer sair de camisa vermelha na rua… Tudo isso está se tornando normal, elevando o fator objetivo da violência e, consequentemente, autorizando o caráter subjetivo a elevar sua carga de brutalidade a fim de ser percebida: alguém já se esqueceu do que ocorreu com Genivaldo Santos, ou com o indigenista Bruno Ferreira, ou com Marielle Franco? E precisamos nos perguntar desde já: diante de uma violência objetiva como, por exemplo, não poder falar de política em sala de aula por conta do medo, qual seria a violência perceptível, subjetiva, que surgirá: a delação e exoneração de docentes que enfrentam este medo? Diante da normalização da intimidação de panfletagens na rua (seja pela polícia, seja por militantes bolsominions), qual será o próximo passo da violência, a prisão de quem panfleta?

Urna são ganhas nas ruas!

Como combater este fenômeno antes que ele se torne reconhecido pela ordem? Assumindo a realidade de que ele já existe! Estamos diante de uma disputa eleitoral, mas a realidade é maior do que isso, e nos impõe estratégias de combate à escalada da violência objetiva da qual, inclusive, faz parte a forma de realização de eleições que não permitem a participação da esquerda nos debates e no fundo eleitoral, mas permite campanhas baseadas em lorotas e mentiras explícitas, etc, etc.

Para combater o que se formou, o que inclui garantir a vitória da chapa encabeçada por Lula, é preciso reforçar nossos laços solidários de organização. Somente a partir de uma expressão subjetiva de nossa solidariedade, isto é, da nossa capacidade de representar a solidariedade de maneira concreta e sensível, é que poderemos retomar os rumos de disputa. Para isso, temos que recomeçar a tomar as ruas.

É necessária a realização de uma ação coletiva de fôlego, uma manifestação popular vigorosa para que as pessoas percebam o peso e a força da solidariedade e se sintam, de novo, à vontade de ir às ruas de vermelho! Não é a vitória nas eleições que vai devolver essa coragem, mas ao contrário, é a reconstrução de uma combatividade imediata que garantirá a expressão dessa coragem nas urnas! E, para que isso ocorra, é preciso que todas e todos, rapidamente, se aproximem de seus e suas colegas de trabalho, de bairro, de escola, de universidade, de igreja, e comecem a se organizar. Não podemos ficar observando a nossa derrota de forma espetacular! A coragem é uma construção solidária que amedronta o individualismo fascista. Vamos juntos para as ruas, pois é lá que são ganhas as urnas… e a tarefa agora é essa!


[1]     ŽIŽEK, Slavoj. Violência. São Paulo:Boitempo, 2014.

[2]     A bela e a fera, canção de Chico Buarque.

As opiniões expressas nas colunas são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.

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