Opinião
ANS e o lucro de 50% dos planos privados de saúde
Com o contexto pandêmico, os reajustes nos planos de saúde foram adiados ano passado. Mas apenas adiados: agora em 2021 o reajuste chega na conta de milhares de brasileiros com seu valor dobrado. A partir de julho, os planos privados de saúde coletivos virão com reajuste médio de 16%, um valor duas vezes maior que a inflação (8,06% no período).
Segundo a Folha de São Paulo, o lucro líquido dos planos de saúde cresceu quase 50% em 2020, com uma receita de R$ 217 bilhões, gozando de uma boa saúde financeira por conta da queda de consultas, cirurgias e outros procedimentos eletivos durante a pandemia.
Mesmo com tamanho lucro, a maioria das operadoras alega que o caixa é “ilusório”, uma vez que as demandas teriam sido apenas adiadas por conta da pandemia e que a maioria dos segurados acumulou cirurgias eletivas, encarecendo o atendimento futuramente.
O aumento no valor dos planos fez ressurgir a discussão da necessidade de uma maior regulação dos contratos coletivos de saúde, feitos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi implantada desde os anos 2000, a qual teria que exercer função regulatória com eficiência normativa e independência política, assumindo o formato de autarquias sob regime especial.
O debate sobre a regulação dos índices aplicados para os aumentos anuais de planos individuais e coletivos toca na questão da necessidade da agência regular os planos coletivos. Isto para que a exista uma mediação das conturbadas e tensas relações entre as operadoras de planos de saúde, prestadores de serviços e beneficiários.
Enquanto não há regulação para planos coletivos, o reajuste calculado pela ANS para os planos individuais é próximo a zero, ou até negativo. Os planos individuais representam um total de cerca de 20% dos usuários de planos de saúde em contraposição com os planos coletivos (empresariais e por adesão), que somam 80% dos usuários. O reajuste leva em conta critérios contratuais, além do índice de sinistralidade e de variação do custo médico hospitalar.
Os representantes da Agência informaram que há 669 operadoras e 17.692 planos, com 48,1 milhões beneficiários. Destes, 93% são regulamentados e 6,8% não regulamentados; 68% são coletivos empresariais, 19% são individuais familiares, 13% coletivos por adesão; 95% com cobertura ambulatorial e hospitalar e 4% ambulatorial.
Para além da discussão sobre a expansão da regulamentação da ANS, cabe pensar em alguns elementos históricos sobre a saúde em nosso país e em quais condições elas se encontram.
A saúde “suplementar” e a brecha para as iniciativas privadas¹
A saúde suplementar possui financiamento privado de prestadores de assistência, credenciados por planos e seguros de saúde ou por cooperativas médicas, mas com subsídios públicos referentes à dedução dos gastos em seguros de saúde no imposto de renda devido.
Desde 1950 o setor de saúde suplementar existe, com os sistemas assistenciais fornecidos pelas empresas estatais e multinacionais. É possível observar que desde a década de 1960 há uma persistência favorável às empresas de planos e seguros de saúde de forma contraditória à lógica do público universal. Foi nessa década que se consolidou a assistência, onde boa parte dos trabalhadores já tinham planos de saúde e inseridos dentro do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).
Em 1970, foi criado o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), da qual fazia parte o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS), que privilegia ainda mais a compra de serviços do setor privado, provocando uma capitalização crescente deste setor.
Com a conjuntura internacional nas décadas de 1980 e 1990 de crise fiscal dos Estados e disseminação de políticas neoliberais, marcada por crises políticas, econômicas e sociais, há uma abertura cada vez maior dos mercados de serviços para empreendedores privados e privatização de empresas estatais. O setor suplementar foi mantido e ampliado, apesar do crescimento do movimento sanitário brasileiro, que culminou com a criação do SUS. A opção por um modelo inspirado nos sistemas nacionais de saúde de acesso universal e integral se deu dentro de um contexto onde o setor privado já estava robusto por conta de sua prestação de serviços tanto no campo da prestação de serviços como no asseguramento privado.
A regulação do setor de saúde suplementar surge após mais de 30 anos de operações sem controle governamental, que surge para corrigir e atenuar as falhas do mercado, como as exclusões de atendimento e as mensalidades abusivas, e somente após a promulgação da Lei nº 9.656/98, o setor de saúde suplementar ganhou a sustentação legal para que se iniciassem as ações de regulamentação.
Desde o início de sua atuação em 2000, a implantação da ANS fez valer um viés de estrita regulação econômica sobre as operadoras de planos e seguros de saúde. E embora a ANS esteja na esfera do Ministério da Saúde, a sua atuação se refere ao ressarcimento de despesas geradas por clientes de planos e seguros de saúde em hospitais da rede pública. Este é um potente indicador da precariedade da regulação assistencial, pois revela que na prática, a rede pública tende a atuar como suporte complementar aos planos e seguros privados de saúde. Dessa forma, a função estatal frente às estratégias econômicas dos agentes privados foi transferida para agências reguladoras (ANS), tornando o Estado um regulador e não necessariamente um provedor dos serviços.
O caráter duplicado do serviço suplementar de saúde
Embora oficialmente dita suplementar ao sistema público, o modelo de articulação entre as empresas de planos e seguros e a rede de serviços do Sistema Único de Saúde baseia-se, em grande parte, na duplicidade e superposição de oferta de serviços pelos prestadores públicos e privados. Essa duplicidade mantém a segmentação do sistema de saúde, privilegiando o mercado de bens e serviços privados de saúde, além de operar como uma espécie de ferramenta para o Estado seguir subsidiando este tipo de suplementação.
Esse caráter duplicado tem como base o modelo de taxonomia de sistemas de seguros privados utilizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Criada no pós-guerra, essa organização expande sua esfera de influência especialmente em países da América Latina tal como o Chile.
De acordo com o debate no artigo de Isabela Santos, Maria Ugá e Silvia Porto (2008), a Organização criou e expandiu seus próprios marcos conceituais sobre a forma de inserção do seguro privado no sistema de saúde: suplementar, substitutivo, complementar ou primário. Os problemas introduzidos pelo debate da duplicação dos serviços dizem respeito tanto às desigualdades no acesso a serviços de saúde, como ao gasto gasto público, que não é inferior.
Efetivamente indica que detentores de esquemas privados de asseguramento continuam utilizando serviços públicos e que, por outro, o seguro privado tem frequentemente adicionado gasto à despesa total em saúde (e não substituído o financiamento público).
Sem problematizar a questão fundamental sobre a compra e venda de serviços da saúde que deveriam ser acessados por todos e com qualidade, há uma naturalização da configuração desse articulação entre público e privado, representando o abandono do projeto de um sistema único de saúde, público e com acesso universal.
A dificuldade de pesquisar neste campo sobre a saúde suplementar que muitos pesquisadores encontram se deve ao fato de que nessa articulação entre público e privada há uma grande quantidade de atores e multiplicidade de interesses envolvidos no financiamento e na alocação de recursos para a assistência à saúde, mostrando pouca transparência e apropriação privada do espaço público. Essa investigação do processo de acumulação setorial de capital é imprescindível para identificar a estratificação social existente no setor privado em saúde, seus respectivos interesses materiais e formas de organização, assim como dos correspondentes posicionamentos de seus distintos agentes.
O orçamento minguado da saúde pública
Na prática, os subsídios fiscais do Estado são transferidos para o subsistema privado, os gastos com a saúde suplementar dos funcionários federais, bem como com os gastos tributários das renúncias fiscais, tem impactos no próprio financiamento do SUS.
Em um momento onde as condições de vida da classe trabalhadora brasileira se tornam mais e mais precárias por conta das garras gananciosas da burguesia, milhares de pessoas estão penando para pagar suas contas devido ao arrocho salarial, as altas nos alimentos, luz, gasolina bem como pelo encarecimento dos cuidados com a saúde, como a alta no preço de medicamentos e agora com o aumento nos planos de saúde.
Leia também: Deterioração das condições de vida e o arrocho salarial
Leia também: Fome de lucro causa alta da carne
Leia também: Brasil tem a maior alta de preços de medicamentos em cinco anos
Sem condições de dar conta de tantos gastos, as famílias estão se endividando cada vez mais, com o índice de 67,5% das famílias endividadas no mês de maio, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Este número representa o maior nível desde 2010.
Neste ano de 2021, o orçamento para os gastos com a saúde sofreram um corte de mais de R$34 bilhões comparado com o ano de 2020, ficando em R$125,7 bilhões, ante R$160 bilhões destinados para a área no ano passado. Em comparação com os recursos destinados para o Ministério de Defesa, este foi cinco vezes maior do que os recursos destinados para o Sistema Único de Saúde (SUS).
É por tais razões que o debate sobre a saúde pública é tão importante para um processo de transformação social, e para isso, cabe reatualizar os fundamentos da Reforma Sanitária Brasileira na articulação entre a prática teórica e a prática política.
Referências
(1) Debate com o artigo de: REIS, C.O.O. Os desafios da ANS frente à concentração dos planos de saúde. Revista Ciência e Saúde Coletiva, v. 12, n. 4, p. 1.041–1.050, 2007.
(2) SANTOS, Isabela Soares; UGÁ, Maria Alicia Dominguez; PORTO, Silvia Marta. O mix público-privado no Sistema de Saúde Brasileiro: financiamento, oferta e utilização de serviços de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 13, n. 5, p. 1431-1440, out. 2008
Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.