Opinião
Por que o EaD será implementado na UFSC?
Uma série de amarras impede que a universidade confronte com autonomia tais medidas
O ensino remoto será instituído na UFSC. Uma proposta para a retomada remota das aulas foi elaborada pelos comitês criados pela reitoria. Essa minuta será votada na próxima reunião do Conselho Universitário, nesta sexta-feira (17). A comissão responsável por propor ao conselho uma avaliação desta proposta divulgou seu parecer favorável. Agora é questão de tempo até o EaD ser implementado de vez na universidade.
A medida — defendida pelo governo, pelo Ministério da Educação (MEC), pelas mídias conservadoras do estado e pelos organismos empresariais — está em vias de ser implantada na UFSC. É explícito o prejuízo pedagógico que o ensino remoto causará na formação dessa geração de estudantes.
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Sabemos também que a pressão para a retomada das aulas da universidade, de maneira precária, como se fosse apenas isso que a instituição fizesse, está dentro de uma política que busca empurrar a sociedade para uma nova normalidade anormal — “morra quem tem que morrer”.
Para compreender a dimensão do problema, precisamos nos debruçar sobre as circunstâncias que levaram a UFSC a aderir ao ensino remoto sem qualquer espaço para uma oposição contundente à medida. Pois é somente assim, identificando o que nos levou a essa situação, que conseguiremos traçar nossas estratégias de luta daqui para frente.
É de se destacar logo de início que esse quadro de engessamento perante medidas como esta está presente à nível nacional nas universidades públicas brasileiras.
Um levantamento do Universidade à Esquerda deixou patente o cenário nacional: de 69 universidades federais, 27 já iniciaram as aulas a distância ou estão com a data marcada para o retorno remoto. Mesmo nas outras 42 universidades que não aderiram ao EaD, em sua maioria o debate dos conselhos está se encaminhando para a implementação das atividades curriculares remotas (como é o caso da UFSC).
O que esse levantamento expressa é que, de alguma forma, as universidades estão limitadas quase que totalmente às discussões sobre a retomada das atividades de ensino. O discurso unitário é de que prepondera na universidade a necessidade de dar aulas, custe o que custar, independente da conjuntura social — ao invés da pesquisa, desenvolvimento científico, teorização, crítica etc.
Este cenário é sintomático pois, no fundo, a universidade parece estar fadada a acatar o EaD tal como tem feito. Por quê? Porque as universidades estão acorrentadas a uma série de amarras que foram sendo implementadas historicamente na instituição, que avançam sobre sua autonomia e, consequentemente, tolhem a sua capacidade de dar respostas necessárias às demandas sociais quando se faz imperativo enfrentar os interesses alheios.
Essas amarras são inúmeras. As parcerias público-privadas (PPP) que através das fundações de apoio direcionam a produção de conhecimento para o desenvolvimento de produtos e processos para empresas privadas. Utilizando assim a estrutura universitária, os recursos financeiros e humanos para seus interesses particulares.
Outra modo de submissão da produção de conhecimento são as políticas de editais e bolsas de fundações de âmbito nacional como CAPES e CNPq, que direcionam as possibilidades de pesquisa pela destinação de financiamento, bem como pelo enquadramento à metas de desempenho. Estes são exemplos de interferência direta na liberdade de pesquisa que é fundamental para a produção de conhecimento crítico.
No interior da universidade, há também formas de controle do trabalho docente que buscam limitar os professores. Um exemplo é o Planejamento e Acompanhamento de Atividades Docentes (PAAD), que enquadra o trabalho dos professores a um conjunto de atividades. Este instrumento subnotifica normalmente as horas de trabalho, escondendo sua intensificação ao longos dos anos. Bem como tornou-se uma amarra para a progressão de carreira, tendo o registro de horas neste instrumento se tornado um pré-requisito.
O PAAD se tornou uma forma de regulação normal da vida dos docentes na universidade. E faz com que muitas vezes não seja percebido como um instrumento que tolhe a liberdade ampla para o fazer intelectual, imprescindível para o trabalho docente.
Poderíamos citar também as incidências externas à universidade, com as interferências do Estado. Ações através dos órgãos de controle, como o Ministério Público Federal (MPF) — que presenciamos na UFSC com a Operação Ouvidos Moucos e com as denúncias ao atual reitor por se posicionar politicamente no período da greve em 2019. Com a pandemia, o MPF vem pressionando a reitoria para a retomada do ensino remoto. Além das interferências do MEC na nomeação de reitores das universidades ou nas restrição orçamentária das instituições que não cumprirem com as diretrizes que o governo considerar adequadas.
Como falar de uma autonomia universitária quando o orçamento da mesma depende do interesse do ministro da educação e do governo? Como falar de autonomia quando o reitor eleito pode não ser nomeado? Como falar de autonomia quando o desenvolvimento científico depende, em grande medida, das avaliações nacionais ou dos interesses privados que são encobertos pelas fundações de apoio? Como falar de autonomia quando o orçamento de pesquisas está condicionado às avaliações de cunho academicista e empreendedor? Como falar de autonomia quando o reitor ou qualquer dirigente é processado pelo MPF por se posicionar politicamente?
A pressão para retomada do ensino nas universidades, na modalidade a distância, parte desses mecanismos e relações que colocam em primeiro plano o produtivismo acadêmico e a manutenção de vínculo com o capital privado. São mecanismos como esses que submetem a universidade ao Estado e às pressões das entidades empresariais e fazem com que as decisões da universidade passem a ser regidas por tais.
A universidade não está adotando o ensino remoto, à nível nacional, porque essa é a principal forma da instituição agir em plena pandemia, pois isso é o melhor que a universidade pode fazer pela sociedade neste momento. Não é porque é uma necessidade social educar (porcamente) estudantes — dentre os quais muitos vão evadir devido à forma repulsiva deste “ensino” que amputa diversas mediações que o processo pedagógico exige.
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Mesmo que a mídia e os instrumentos empresariais queiram passar essa imagem, é preciso identificar que as pressões sobre a UFSC e demais universidades não partem do conjunto da sociedade civil, mas de um setor bem restrito e identificável. As manifestações (e até mesmo chantagens) não surgiram dos sindicatos de trabalhadores da cidade ou similares, mas da mídia conservadora, do governo federal e estadual, dos órgãos de controle do Estado e das instituições do empresariado (como FloripAmanhã e Floripa Sustentável).
Pressões externas como estas, porém, não deveriam interferir no trajeto de uma instituição totalmente autônoma — como prevê o princípio da liberdade de cátedra. Afinal, tal princípio assegurou às universidades europeias, na transição do período medieval ao moderno, a capacidade de criticar a tudo e a todos mesmo que fosse necessário (e de fato foi) enfrentar os dogmas políticos, religiosos e morais da monarquia absoluta e da Igreja conservadora.
Mas a história contemporânea da universidade brasileira é a história do progressivo acorrentamento desse princípio que nos é tão caro. A autonomia, capaz de nos colocar acima de qualquer interesse privado, seja do Estado, do governo ou dos setores do capital, foi paulatinamente tolhida. Ao ponto de que hoje, em meio à uma pandemia, a universidade esteja mais preocupada em como corroborar com a nova “normalidade” do que como pensar respostas (e perguntas) para a crise econômica e sanitária que abala nossa sociedade
Sem autonomia plena, a universidade fica vulnerável às imposições como a implementação do EaD, que exigiria confrontar-se diretamente não só com o governo, mas com todo um aparato midiático-empresarial. Aparato este que está completamente enraizado no interior das universidades e encontra na figura de docentes seus melhores representantes internos. São tais condições de fragilidade que nos fazem direcionar meses de esforços para pensar como acatar uma medida desastrosa ao invés de dirigir toda a estrutura universitária para as questões realmente candentes do nosso tempo — como deveria ser.
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Este cenário explica, em linhas gerais, porque mesmo imersos numa crise sem precedentes, que marcará nosso século, a universidade — o último bunker crítico que pode servir a classe trabalhadora — não consegue ir além das políticas do Estado; não consegue enfrentar aqueles que acham que basta à instituição retomar as aulas, seja como der, deixando para trás questões que lhe são fundamentais.
Por isso, não poderíamos esperar das administrações centrais de nossas universidades um desdobramento diferente deste que está dado em todo território nacional. Sua gestão está intimamente ligada aos interesses privados que vêm historicamente tentando usurpar o sentido da universidade pública.
Diante disso, mesmo com essas tendências históricas mais gerais, caberia aos movimentos mais radicais construir exceções ao menos no microcosmo político e desenhar outras possibilidades e projetos para as universidades, apontando, inclusive, a necessidade de rompimento com essas amarras que nos trouxeram até o impasse do ensino remoto.
Em algumas universidades, movimentos — sobretudo de caráter estudantil — têm surgido para se contrapor ao ensino remoto e o que ele representa. Na UFSC, todavia, o imobilismo das categorias estudantil, docente e dos técnicos-administrativos não permitiu uma mobilização combativa nesse momento, exceto por algumas manifestações esparsas.
Até então, nenhum setor da instituição impulsionou uma ação contundente contrária à medida. Entre as três categorias não houve qualquer mobilização significativa contrária ao EaD. Dos centros de ensino da instituição, não houve uma só direção que se colocou frontalmente contrária ao ensino remoto.
Aliás, o contexto aqui é dramático. Não só o EaD está passando, como está passando sem que a reitoria precise sujar suas mãos. Ocultando-se sob comitês e subcomitês, a direção central da UFSC delegou às categorias da universidade o papel de inserir o ensino remoto na UFSC — papel este que foi aceito de bom grado pelas categorias na confiança de que tal gesto significaria um aumento da participação democrática na instituição.
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Chegamos ao ponto degradante em que os estudantes que estão nos conselhos universitários estão elaborando e discutindo como implementar o ensino remoto. Os estudantes, setor mais dinâmico (e por isso mais radical) da universidade, têm se limitado às disputas no limite da institucionalidade e a fazer o papel de eximir a reitoria de ser responsável pela implementação da modalidade a distância e dos prejuízos que esta traz.
De maneira geral, a ação dos docentes na UFSC está bastante limitada. Um dos problemas políticos da categoria deriva de entraves como o PAAD, que devido a uma série de obrigações os limitam às pautas mais corporativas (vinculadas a questões da categoria) e os submetem ao ensino remoto para conseguir cumprir com tais exigências de hora-aula, ao invés de se envolverem politicamente em uma disputa por questões que tocam toda a universidade e sociedade.
Esse é um dos entraves da categoria. Localmente, há um problema organizativo a mais, por depender (legalmente) do Sindicato dos Professores das Universidades Federais de Santa Catarina (Apufsc), uma associação extremamente burocratizada e com uma direção conservadora que ataca constantemente os princípios da universidade pública.
Não à toa, as principais lutas traçadas pelos docentes na UFSC foram dirigidas pelo Andes, que agora está proibido, pela Justiça do Trabalho, de atuar como sindicato na UFSC devido a uma série de processos encaminhados pela gestão da Apufsc.
A Apufsc deixa claro sua posição corporativista: “A principal crítica em relação ao Andes era de que a entidade abandonou a categoria, tornando-se um sindicato voltado para a organização revolucionária da classe trabalhadora, e não mais para os interesses primários dos docentes”.
Nas universidades, em particular, exceções poderiam (e ainda podem) surgir em contraposição à tendência nacional de adesão ao ensino a distância. A frustração do EaD em algumas universidades impulsionou a criação de movimentos de oposição na USP, UFFRJ, UFRJ, UENP, UERJ, Unesp e UFGD. Apontar para mecanismos como os citados nos ajudam a identificar o que devemos combater: as amarras que nos colocam na condição de engessamento mesmo em meio a crises pandêmicas.
Que isso nos sirva como eixo para os combates que serão necessários enfrentar com a implantação do EaD e com quaisquer outras medidas que podem e vão surgir contra a universidade.
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