Opinião
Reforma do Ensino Médio e o Itinerário de Formação Técnica e Profissional
Professor Evaldo Piolli (FE/Unicamp) discute as diretrizes educacionais do Novo Ensino Médio
A Reforma do Ensino Médio está em processo de formulação e normatização em alguns estados, e de implementação em outros, como é o caso de São Paulo. Ao que consta, todas as Diretrizes Estaduais estão em pleno alinhamento com a Resolução 03/2018, que fixou as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio. Essa atual Reforma disparou mudanças profundas em toda a Educação Básica no Brasil, instituindo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que veio a afetar todas as suas etapas e também a política de formação de professores (BNCC-Formação).
As alterações e a implementação dessa reforma profunda no ensino médio estão sendo feitas a todo vapor no contexto da pandemia, sem um amplo e necessário debate com a sociedade e os principais interessados, como: estudantes, pais, professores e demais trabalhadores da educação. Uma reforma profunda como essa demanda um amplo e longo debate democrático. Porém, não parece ser esse o desejo dos gestores de plantão. Os governos estaduais, de um modo geral, estão priorizando uma interlocução com alguns poucos atores sociais, entre eles o segmento empresarial representado pelas suas organizações sociais.
A formação do estudante do novo ensino médio
O projeto educacional em vigor no país tem como centro a questão da melhoria da qualidade e da gestão, combinada a uma concepção de educação toda direcionada para a formação de capital humano, a qual atrela a profissionalização generalizada e a flexibilização curricular a vínculos diretos com as práticas de gestão, calcadas numa concepção de qualidade vinculada aos indicadores de avaliação e melhoria das posições em rankings, conforme as orientações do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA).
Esse é um Movimento Global de Reforma Educacional que tem como centro difusor a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e os órgãos internacionais de financiamento, como Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e Banco Mundial (BM). Tudo isso já foi muito bem retratado por diversos pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que mostram que o foco das proposições desses órgãos recaem sobre os países situados na periferia do capitalismo.
Esses organismos estão disseminando um projeto de educação e de sociedade com a finalidade de preservar os interesses do capital diante da crise que enfrenta. A reforma foi proposta um mês após a consolidação do golpe institucional, combinada a um conjunto de reformas, tais como a Emenda Constitucional 95 (EC 95), que impôs o teto dos gastos públicos diretos, a reforma trabalhista, a ampliação da terceirização e, por fim, a reforma da previdência. No conjunto, essas reformas empregadas faziam parte de um único processo, que foi o da tentativa de recuperação do ciclo de acumulação capitalista.
Os formuladores da reforma do Ensino Médio, que assumiram o ministério da educação em 2016, tinham propósitos bem claros: a formação de capital humano com vistas à elevação da produtividade; modernizar o currículo com a flexibilização das áreas do conhecimento com a proposição dos itinerários formativos; e a melhoria dos indicadores e resultados do desempenho escolar.
A educação profissional, nesse projeto, ganhou um lugar privilegiado sendo proposta, também, sob critérios de flexibilidade ao longo da vida, adaptada às mudanças contínuas do mundo do trabalho e à atual conformação excludente do mercado de trabalho que, aliás, caminha a todo vapor para formas precarizadas, rappinizadas e uberizadas.
Na verdade, o que está em curso com a flexibilização do currículo na reforma do Ensino Médio é um grande processo de estratificação, fragmentação e segmentação da oferta do ensino médio no país. O itinerário, proposto de forma técnica e profissional, expressa bem isso. Há um abismo entre o curso técnico, tal qual conhecemos, e os cursos aligeirados de qualificação previstos no escopo da reforma.
A reforma engendra elementos para uma profissionalização generalizada no ensino médio, com a introdução dos projetos de vida e do empreendedorismo, que serão componentes da parte diversificada do currículo e ocuparão espaço das disciplinas convencionais. Os formuladores da reforma elegeram como um dos eixos estruturantes a ideologia do empreendedorismo, que sequer deveria constituir-se como parte do processo formativo. Mas, como puro convencimento: se não há emprego, vire um empreendedor.
A fragmentação do ensino e os chamados Itinerários Formativos
Essa fragmentação em diferentes percursos formativos e a vinculação instrumental do ensino médio à preparação para o mundo do trabalho enfraquece a formação integral e ampla dos estudantes que deveria combinar a formação científica, humanística, artística e tecnológica.
O artigo 35 A da Lei de Diretrizes de Base (LDB), com a nova redação estabelecida pela LEI 13.415 /2017, introduz a BNCC e as áreas do conhecimento (“I – linguagens e suas tecnologias; II – matemática e suas tecnologias; III – ciências da natureza e suas tecnologias; IV – ciências humanas e sociais aplicadas”) e traz uma mudança importante. A BNCC fica, agora, limitada a 1.800 horas contra as 2.400 horas da redação anterior. Ou seja, informa que o que é básico estará limitado a 1800 horas, o que constitui 600 horas a menos.
A Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional (LDBEN) estabelece que o ano letivo tenha uma carga horária de 1.000 horas anuais nos próximos anos. Assim, pode-se considerar que a formação geral e comum no Ensino Médio será de, no máximo, 60% da sua carga horária total. O restante da carga horária do Ensino Médio será composto pelos chamados itinerários formativos.
O artigo fixa a obrigatoriedade do ensino de matemática, português e inglês nos três anos do ensino médio e flexibiliza, na forma de “estudos e práticas”, a Educação Física, Sociologia, Filosofia e Artes. Mas, considerando a redução de 600 horas, no conjunto todas as matérias perdem carga horária dentro dessa compreensão do que é básico. Há aí, portanto, uma perda clara da educação científica e humanística.
Os itinerários formativos estão apontados no artigo 36 da LDB. Ao total são 5 itinerários de 1.200 horas, sendo eles: “I – linguagens e suas tecnologias; II – matemática e suas tecnologias; III – ciências da natureza e suas tecnologias; IV – ciências humanas e sociais aplicadas; V – formação técnica e profissional”. Nota-se que quatro dos cinco itinerários formativos coincidem com as áreas de conhecimento da BNCC e que o itinerário de formação técnica e profissional não consta nas áreas que definem os tais “direitos e objetivos de aprendizagem do Ensino Médio”.
Mesmo sabendo que formalmente todos os itinerários habilitam todos os estudantes a prosseguirem seus estudos na Educação Superior, a depender do itinerário cursado os estudantes não terão as mesmas possibilidades de ingresso nos extremamente concorridos exames seletivos.
A BNCC do Ensino Médio define os direitos de aprendizagem essenciais mas, quando se analisa o artigo 6º da Resolução CNE/CEB nº 3, que define os itinerários formativos, está escrito que esses são unidades curriculares a serem ofertadas pelas instituições e redes de ensino “que possibilitam ao estudante aprofundar seus conhecimentos e se preparar para o prosseguimento de estudos ou para o mundo do trabalho”. Esse “ou”, presente na frase, não aparece de forma casual, mas sim expressa que a escolha desse ou daquele itinerário não é apenas uma opção entre caminhos formativos distintos, mas de destinos duais e excludentes: ou para “aprofundar seus conhecimentos e se preparar para o prosseguimento de estudos” ou “para o mundo do trabalho”.
Nesse sentido, a reforma do Ensino Médio, tal como está apresentada nos documentos que a regulamentam, reproduz muito bem o fenômeno histórico que convencionamos chamar de dualismo estrutural na educação brasileira.
A garantia da “escolha” dos estudantes e a saída pela via da privatização e do EaD
No que se refere à possibilidade de escolha por parte dos alunos pelos itinerários, há três fatores limitadores. O primeiro deles está na própria regulamentação da reforma, uma vez que a oferta dos itinerários não está vinculada à demanda apresentada pelos jovens que frequentam a escola, mas, como consta do texto da Resolução 03/2018 que institui as diretrizes curriculares, às “possibilidades estruturais e de recursos das instituições ou redes de ensino”.
O segundo é o que esbarra nas condições concretas, como o da infraestrutura das escolas, que trabalham em até três turnos, e o do número elevado de municípios que possuem apenas uma escola de ensino médio. O terceiro fator é o da possível seletividade, uma vez que consta do artigo 12 das diretrizes que “os sistemas de ensino devem estabelecer o regramento do processo de escolha do itinerário formativo pelo estudante”, o que deixa evidente que poderá haver processos seletivos para o acesso a determinados itinerários, limitando duplamente a escolha dos estudantes.
O discurso da “escolha”, portanto, corre um sério risco de se tornar uma simples imposição das trajetórias disponíveis, dependente muito mais da “relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino” do que do interesse dos estudantes.
Essa reforma se dirige, sendo assim, à “escola da maioria”, aos filhos e filhas da classe trabalhadora que frequentam as escolas públicas brasileiras, já que para as escolas privadas de elite as diretrizes curriculares do Ensino Médio garantem salvaguardas. O mesmo artigo 12 prevê a possibilidade de integração de dois ou mais itinerários para as privadas, o que garante a oferta de um Ensino Médio mais próximo do antigo propedêutico com uma carga horária mais elevada.
Há, dessa forma, muitas restrições ao pleno atendimento da garantia de escolha dos estudantes. E a resposta apresentada para a garantia dessas escolhas, assim como para a ampliação da carga horária, tem sido a de garanti-las por via do Ensino a Distância (EaD) ou por parcerias com instituições privadas no ensino médio. O parágrafo 15 do artigo 17 da resolução CNE/CEB 03/2018 abre a possibilidade de aplicação do EaD em 20% da carga horária total do Ensino Médio diurno. No noturno pode ser 30% e na Educação de Jovens e Adultos (EJA) pode chegar a 80%.
Se o EaD for adotado, “preferencialmente”, nos itinerários formativos de 1.200 horas, serão 600 horas no diurno (50%) e 900 horas no noturno (75%). Na EJA o presencial tende a praticamente desaparecer. Com as parcerias privadas, todo itinerário poderá ser feito fora da escola. É a porta aberta para a privatização, onde as “escolhas” poderão ser contempladas via setor privado.
A estratificação da formação e os interesses do capital
Do ponto de vista da escola, parece que essa reforma aponta para uma maior estratificação da formação. A própria ideia de Ensino Médio como parte da educação básica, ou seja, comum a todos, fica problematizada com essa estratificação. A reforma do ensino médio coloca um “ou” na sua formulação. No entanto, tal como advogam os propositores dessa reforma, a formação deveria formar tanto para prosseguimento dos estudos como também para o trabalho.
Do ponto de vista dos estudantes, não haverá garantias da possibilidade de escolha, como vimos. Isso poderá ter implicações na sua vida depois da escola, com consequências para a possibilidade de ingresso no ensino superior e no mundo do trabalho. O enfraquecimento da formação científica, humanística, artística e tecnológica, decorrente da reforma, trará dificuldades para a propalada “educação ao longo da vida”, uma vez que esse enfraquecimento torna mais difícil a apropriação das próprias mudanças sociais, dentre elas, a do mundo produtivo. Se o mundo contemporâneo exige saberes cada vez mais complexos, não se pode simplificar a formação.
Agora, é possível compreender as razões desse processo de aligeiramento e enfraquecimento da formação, uma vez que ele está alinhado ao projeto do capital que quer recuperar o seu ciclo de acumulação diante da crise, atacando o trabalho. É necessário analisar a reforma do ensino médio vinculada ao conjunto de reformas como a EC 95, a reforma trabalhista, a lei de terceirização e a reforma da previdência, em um contexto de aumento do desemprego e da desindustrialização do país. Essas reformas, segundo os balanços atuais, não apenas não conseguiram resolver o problema do desemprego, mas aprofundaram a precarização das relações de trabalho.
Um ponto defendido pelos formuladores da reforma é o de que as mudanças curriculares contribuirão para a contenção da evasão no ensino médio. No entanto, o problema da evasão não será resolvido com uma reforma no currículo, uma vez que sabe-se que as causas se devem a fatores que podem estar fora da escola, sendo o principal deles o trabalho e as condições de vida dos jovens que frequentam a escola pública brasileira. É de conhecimento geral que a oferta do ensino médio no país vem sendo demarcada por uma história de precariedade, com falta de professores, de bibliotecas e laboratórios nas escolas e por salas superlotadas. Isso para não falar dos problemas relacionados ao financiamento.
A questão da formação técnica
Apesar do itinerário ser nomeado de “Formação Técnica e Profissional”, ele não pode ser confundido com os cursos técnicos que temos hoje. Isso porque esse itinerário, tal como consta nas diretrizes curriculares, pode ser oferecido tanto na forma de cursos técnicos como também na forma de cursos aligeirados de qualificação profissional.
Os cursos técnicos possuem carga horária que varia de 800 a 1200 horas, enquanto que os cursos de qualificação profissional na proposta da reforma têm a exigência de 20% dessa carga horária. Enquanto os cursos técnicos foram concebidos de forma a conduzir o jovem para uma habilitação profissional, os cursos de qualificação não precisam ter nenhuma relação com o outro, o que pode significar uma fragmentação ainda maior na formação do jovem.
Deve-se ter claro, portanto, que o itinerário técnico e profissional não pode ser confundido com os cursos técnicos ou de habilitação profissional técnica de nível médio. De forma distinta, eles serão oferecidos por diferentes arranjos e saídas intermediárias, que irão significar um aligeiramento da formação profissional de parte dos nossos jovens. Os estudantes poderão cumprir o itinerário de formação técnica e profissional fazendo vários pequenos cursos de qualificação profissional, por exemplo.
Essa distinção está presente na própria definição explicitada no site do Ministério da Educação (MEC). Para o MEC, o curso técnico busca promover “o desenvolvimento da capacidade de aprender e empregar novas técnicas e tecnologias no trabalho e compreender os processos de melhoria contínua nos setores de produção e serviços”. Já os cursos curtos de qualificação visam apenas “propiciar o desenvolvimento de competências básicas ao exercício de uma ou mais ocupações reconhecidas no mercado de trabalho”.
Essa forma de formação profissional mais aligeirada, com a oferta desses cursos de qualificação, possui como finalidade ampliar a oferta de uma força de trabalho para um trabalho simples. Essa qualificação se confunde, muitas vezes, com o simples treinamento de trabalhadores, havendo até mesmo a possibilidade de a oferta do itinerário ser feita através de parcerias com empresas, contribuindo para o processo de desescolarização da formação.
Além disso, enquanto o curso técnico para ter validade necessita da conclusão do ensino médio, essas qualificações ficam apartadas dessa obrigatoriedade. A certificação dessas qualificações, que podem ser várias, por não depender da conclusão do ensino médio demonstra que não se relacionam com a educação básica. São terminalidades desacopladas da conclusão do ensino médio. Dessa forma, fica claro que existe uma hierarquia entre os cursos técnicos e a qualificação profissional, sendo formas distintas e bastante desiguais. Os jovens que seguirem o itinerário por cursos de qualificação se encontrarão numa posição de desvantagem num mercado de trabalho cada vez mais excludente.
A relação entre a reforma e os Institutos Federais (IFs)
A proposição do itinerário de Formação Técnica e Profissional na Reforma do Ensino Médio disparou mudanças expressivas na oferta da Educação Profissional e Tecnológica, bem como aponta mudanças na estrutura dos Institutos Federais. A própria concepção dos cursos integrados de nível médio está sob risco, a começar pela introdução das 1.800 horas de BNCC mais as 1.200 horas do itinerário formativo.
A recente Resolução do CNE 01/2021, que regulamenta a oferta da Educação Profissional e Tecnológica, foi concebida para atender às expectativas da Reforma. Ela introduz uma concepção de formação flexível, mais aligeirada e centrada em cursos de qualificação de curta duração. A flexibilização da Educação Profissional e Tecnológica está bem explicitada nos artigos 4º e 26º da resolução, ao permitir diferentes possibilidades de arranjos curriculares em etapas ou módulos e ao delegar à decisão do estudante o cumprimento do itinerário formativo, “mediante sucessão progressiva de cursos ou certificações obtidas por avaliação e por reconhecimento de competências”. Entre as competências reconhecidas, estão aquelas obtidas na experiência profissional.
A Resolução ainda prevê que as competências adquiridas no Ensino Médio sejam convalidadas nos cursos tecnológicos no nível superior.
No artigo 19º da recente Portaria do MEC Nº 733, de 16 de setembro de 2021 – a qual “Institui o Programa Itinerários Formativos do MEC” –, já é possível determinar que as escolas da rede federal de Educação Técnica e Profissional também poderão assumir a função de órgãos assessores na implementação do itinerário de Formação Técnica e Profissional, junto às redes regulares de ensino médio.
Há, portanto, uma mudança prevista para a atuação dos IFs que vem sendo introduzida com a Reforma do Ensino Médio. E encontra-se em curso uma desconstrução da concepção de formação profissional e tecnológica, que inspirou a criação dessas instituições.
A necessidade de democratização do debate e de uma outra perspectiva de sociedade
A implementação dessa reforma tem sido feita nesse contexto de pandemia, sem o devido diálogo com os estudantes, pais e trabalhadores da educação. Uma reforma profunda como essa que atinge não apenas o ensino médio, mas toda a educação básica, requer amplo debate democrático. A implementação ocorre em diversos estados brasileiros, sendo que em alguns estados, como no Rio de Janeiro, estão sendo propostas leis para dirigir a implementação com amplo debate na sociedade, o que não foi possível durante a pandemia.
É necessário que em todo país se reconheça isso, e que é fundamental que as reformas, para além de simples questões curriculares, estejam articuladas com as reais necessidades da população e da educação. É necessário que essas reformas envolvam a melhoria das condições de vida e de trabalho dos jovens e suas famílias, o financiamento da educação, a melhoria das condições salariais e de trabalho dos profissionais da educação e o reforço aos processos democráticos e de autonomia das escolas. Tudo isso em consonância com a perspectiva de um outro projeto de sociedade.
Evaldo Piolli é professor doutor na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp), pelo Departamento de Política, Administração e Sistemas Educacionais, e integra o Programa de Pós-graduação em Educação da Unicamp, na linha de pesquisa: Trabalho e Educação.
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