A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32/2020 foi enviada na última quinta-feira (3) ao congresso. O texto visa alterar os preceitos constitucionais que regulamentam os servidores públicos, estabelecidos por um regime jurídico próprio.
Não é a primeira vez que os padrões estabelecidos para os servidores públicos na Constituição Federal de 1988 são reorientados para que as atividades do Estado sejam adequadas às necessidades do capital. Um marco para a Administração Pública brasileira foi durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), quando um ministério específico foi criado para realizar a Reforma Administrativa de 1998. Sob argumento da urgência da modernização do setor público foram estabelecidos novos critérios típicos da iniciativa privada no interior das atividades do Estado, além de permitir a contratação de celetistas pela via de Organizações Sociais.
Quais são as implicações diretas?
A PEC 32/2020 substitui a regulamentação estatutária por cinco tipos de vínculos. Por concurso público, o ingresso poderá estabelecer vínculo por experiência – que substituirá o estágio probatório -, cargos típicos do Estado – carreiras que manterão a estabilidade após três anos – e cargo por prazo indeterminado. No caso de aprovação em concurso, a vaga portanto, não é mais garantida. Apenas os mais bem avaliados na etapa de experiência poderão serem efetivados. Além disso, poderão ser demitidos em caso de insuficiência no desempenho.
Por Seleção Simplificada, os empregados poderão designar cargos de vínculo com prazo determinado, cujas despesas do processo seletivo e contratação serão subsidiadas pelo orçamento de custeio do Estado. A seleção simplificada também abarcará carreiras de liderança e assessoramento, que substituirão os antigos cargos de comissionados.
As carreiras “típicas do Estado”, ainda não foram definidas em específico, mas comumente tratam-se de carreiras que compõem o “núcleo duro” do Estado, como os gestores de políticas públicas, representantes do comércio exterior e segurança pública, diplomatas, membros do ministério público e magistrado, dentre outras. Elas estarão regulamentadas por critérios mais próximos aos dos servidores públicos atualmente, posto que é o único vínculo que estará excluído da possibilidade de redução de jornada/ remuneração.
Outras mudanças estão previstas no papel do chefe do executivo na organização dos cargos públicos. O Presidente da República terá autonomia para extinguir e reorganizar cargos, além de poder fornecer novas atribuições de cargos no Poder Executivo.
Para a execução de serviços públicos, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão firmar cooperação com órgãos e entidades privados, compartilhando estrutura física e recursos humanos particulares sem qualquer tipo de contrapartida financeira. Além de abrir brechas para a privatizações, a chamada Nova Administração Pública será regida por critérios muito semelhantes aos observados nas entidades de direito privado, com o “Alto impacto Social” e “Modernização”, intensificando esse tendência verificada desde a Reforma de Luiz Carlos Bresser-Pereira no final da década de 1990.
Apesar de a nova legislação estar direcionada apenas para os novos servidores, se aprovada, a PEC poderia provocar as mudanças muito rápidas no interior da administração pública. Com a Lei Complementar nº 173, que proíbe a realização de concursos até 31 de dezembro de 2021, somada à saída de muitos servidores públicos após a aprovação da Reforma da Previdência em 2019, a tendência é haver uma contratação massiva de empregados públicos sob a nova regulamentação. Outra complicação referente a isso é a existência de muitos tipos de regime de trabalho em uma mesma atividade, podendo resultar no acirramento das disputas entre os trabalhadores, dinâmica que tem se acentuado no governo Bolsonaro.
No Mapa Estratégico da Indústria (2018-2022), publicado pela Confederação Nacional da Indústria em 2018, a suposta má qualidade do serviço público é justificada pela ineficiência da administração, que poderia ser corrigida pelo aumento da competitividade. A Reforma Administrativa faz parte da agenda estratégica dos grandes capitais para o Brasil porque é um dos artifícios lançados pela classe dominante para ajustar o valor da força de trabalho a patamares mais baixos, convocando o Brasil a cumprir um papel na Divisão Internacional do Trabalho reservado à países que vendem bens de consumo e insumos industriais a custos extremamente baixos, justificado pela intensificação ainda maior da exploração da força de trabalho.
Ao menos desde 2014, a crise que estoura nos Estados Unidos em 2008 tem sido alastrada em maiores proporções no Brasil. Desde então, o estrangulamento orçamentário do Estado tem avançado sobre o fundo público dos trabalhadores. A Emenda Constitucional 95 oficializou a condição orçamentária brasileira, colocando limites inéditos aos serviços prestados à população. Em 2017, a Reforma Trabalhista dilacerou preceitos fundamentais da Consolidação das Leis do Trabalho, além de ampliar significativamente as possibilidades de terceirização de serviços. No ano passado, assistimos à aprovação da Reforma da Previdência. Agora, os servidores públicos também estão sendo convocados a cumprirem um papel no alinhamento aos novos parâmetros exigidos pelo capital.
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Se aprovada, a Reforma Administrativa empurrará amplas camadas dos servidores públicos a padrões semelhantes aos dos demais setores da classe, tais como a pressão por desempenho, insegurança frente à ausência de estabilidade e até mesmo a disputa entre trabalhadores em busca da efetivação do cargo. Se os servidores públicos representavam uma parcela a classe com condições que pareciam obsoletas a essa etapa do desenvolvimento produtivo, a extinção dessa referência ressignifica o lugar da classe, enterrando no passado o mínimo de garantias trabalhistas.
Na PEC em questão, já está dado que um setor do serviço público — as “do Estado”— não irá sofrer qualquer adequação às exigências do capital. Isso porque dizem respeito aos servidores que de fato possuem privilégio, posto que cumprem função de sustentar o Estado, com salários e regalias exorbitantes. A esses, a Reforma Administrativa resguardará o tratamento magistral. A Reforma Administrativa faz um corte entre aqueles que representam os privilegiados do funcionalismo público – com salários de 20, 30, 40 mil reais – e aqueles que ganham 10, 12 ou 20% deste valor.
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Não se trata apenas de um setor da classe, mas da ressignificação dos critérios gerais da venda de da força de trabalho em território brasileiro. Os servidores públicos afetados pela PEC estão sendo forçados à comporem o campo da ampla maioria dos trabalhadores no país, os quais vimos perder não só seus direitos nos últimos anos, mas também a própria possibilidade de venda de sua força de trabalho, empurrados para o desemprego ou informalidade. A Reforma Administrativa cria um abismo entre os trabalhadores em níveis extremamente precários de vida e os setores privilegiados da sociedade. Com isso em vista, a luta contra esse projeto deve ser travada pelo conjunto da classe trabalhadora, demonstrando quem são os verdadeiros privilegiados do serviço público e qual deve ser o tratamento devido àqueles que produzem toda a riqueza deste país.
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