Opinião
Para onde caminha a Universidade Pública? por Eblin Farage
por Eblin Farage, assistente social, professora da Escola de Serviço Social e do PPGSSDR da Universidade Federal Fluminense, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE) e militante do movimento docente do ensino superior, para o UàE.
Pensar hoje a Universidade Pública pressupõe responder a pergunta: para onde caminhamos? Não de forma retórica, mas como quem deseja identificar os projetos de educação em disputa e, sobretudo, os incrementos das contradições inerentes à lógica do capital na atual fase capitalista adensada pelo momento excepcional da pandemia.
Além de identificar, como fazemos há trinta anos, as intenções das determinações de organismos internacionais como Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM) e Organização Mundial do Comércio (OMC), em impulsionar, no conjunto da América Latina, uma educação superior terciária, baseada em formação aligeirada; é necessário também compreender os impactos das transformações do mundo do trabalho sobre a formação superior.
O projeto de educação pública, gratuita, laica, socialmente referenciada, antipatriarcal, antimachista, antilgbtfobica e anticapacitista, construído pelo movimento docente está cada vez mais imprensado por duas dimensões da ordem do capital que se comunicam, se retroalimentam, e, mais, são complementares. Nesse sentido, a educação superior pública, hoje, deve ser compreendida entre a pressão, por um lado, de uma educação mercantilizada, pautada na certificação em larga escala, prioritariamente privada, com a manutenção de pequenos centros de referência – esses públicos – para a produção técnica do conhecimento; e por outro lado, pelas demandas de um mercado de trabalho absolutamente em transformação, precarizado, uberizado e mediado pela tecnologia, seja na produção e execução presencial, seja no trabalho remoto.
Esse mercado de trabalho, tradicionalmente estudado a partir dos rebatimentos no setor privado, deve ser compreendido como elemento propulsor de uma nova racionalidade, também para o setor público. O que a acumulação flexível e, em especial, a denominada indústria 4.0[1], nascida na Alemanha no início do século XXI, têm impulsionado está além do escopo das análises acumuladas da lógica produtiva capitalista em sua versão neoliberal. Portanto, é necessário incorporar outros elementos para compreender a realidade.
O mesmo ultraneoliberalismo que pauta hoje, em vários lugares do mundo, a política econômica, impondo uma reconfiguração das relações sociais a partir de um processo profundo de refuncionalização dos Estados, também impulsiona transformações no mundo do trabalho. Ambos, refuncionalização do Estado e transformações no mundo do trabalho, são estratégias do capital para “produzir mais-valia […] lei absoluta desse modo de produção” (Marx, 2001, p. 721). A sociedade da tecnologia e da informação, propagada desde a década de 1990, que segundo João dos Reis (2013), servia ao capital de forma subsidiária, em sua fase como indústria 4.0, torna-se agora a estratégia propulsora para a exploração da força-de-trabalho, impactando na sociabilidade e impondo uma nova cultura.
Assim, consolida-se o eixo: mercadorização da vida – geração de lucros – retração de direitos sociais, o qual combina diferentes formas de exploração que, embora aparentem ser antagônicas, compõem uma mesma lógica produtiva de obtenção incessante de mais valor. Na atual fase de crise do capitalismo essas formas passam, necessariamente, pela apropriação privada do fundo público e pela mercantilização dos direitos sociais. No Brasil e em outros lugares do mundo, um elemento deve ser incorporado a esse cenário, a ascensão da extrema direita na política.
Na articulação entre as demandas econômicas da ordem do capital e suas demandas políticas e culturais para a consolidação ideológica forja-se uma base social, absolutamente temerária no Brasil, pautada no fundamentalismo religioso e na perspectiva miliciana e militarizada para a política nas instituições públicas e na vida social. Assim, a educação, seja a básica ou a superior, passa a ter um lugar de destaque, não apenas visando a formação para o mercado de trabalho reconfigurado, mas essencialmente para o processo de apassivamento ideológico. É nessa perspectiva que se deve compreender o processo de militarização da educação básica, em franca expansão, a militarização dos órgãos públicos e das estatais, onde mais que dobrou a inserção de militares e policiais, atingindo a espantosa marca de 6 mil oficiais em cargos[2], na primeira metade do governo Bolsonaro (2019-2020).
A reprodução ideológica encontra lugar na perseguição e criminalização dos que ousam lutar e dos que enfrentam a ordem econômica. A perspectiva anticiência é difundida e, assim, a premissa capitalista do ‘lucro acima da vida’ é impulsionada pelo ódio e pela necessidade de exterminar o diferente. Mas, nada impacta, tudo se naturaliza, como requisito para garantir os lucros capitalistas. As mortes, que já ultrapassam 290 mil, viram números. O não planejamento para compra e produção de vacinas é relevado pela maior parte da população que busca, por seus próprios meios, sobreviver em um país de mais de 14 milhões de desempregados e 6 milhões de desalentados (aqueles, que segundo o IBGE, nem procuram mais emprego).
É nesse contexto de retração mundial, de agudização da crise do capitalismo que se gesta uma nova forma de organização do mundo do trabalho. Uma organização que dispensa grande qualificação, elimina postos de trabalhos estáveis, reduz espaços físicos para o trabalho, atomiza relações e invisibiliza trabalhadores, através de um trabalho mediado por tecnologia. As formas múltiplas e diversas estão no setor produtivo e, sobretudo, no setor de serviços, seja através das plataformas digitais, dos aplicativos, do trabalho virtual e remoto ou da maquinização do atendimento.
Essa nova fase de reestruturação da era da acumulação flexível economiza com encargos trabalhistas, impostos e estrutura de locais de trabalho, reduz direitos sociais dos trabalhadores, dificulta a organização coletiva e busca transformar (apenas ideologicamente) o trabalhador em parceiro. O ‘canto da sereia’ desde a década de 1980 (no Brasil a partir da década de 1990) vem sendo difundido pelo neoliberalismo com discursos de empreendedorismo, trabalhador individual, patrão de si mesmo, trabalho autônomo, individualização do desemprego, capacitação para o mercado, entre outros tantos. Através desse canto, amplia-se a subsunção real do trabalhador ao capital, tentando destituí-lo, inclusive, de sua condição de trabalhador.
É nesse contexto que somos chamados a pensar sobre para onde caminha a Universidade Pública e para qual projeto de sociedade estamos sendo demandados. Parece que a pandemia do novo coronavírus antecipou na educação alguns aspectos que já estavam postos na iniciativa privada – no setor de serviços e da produção – e que se encontravam ainda camuflados no ensino superior.
Como um mal necessário, o ensino remoto emergencial (ERE), um rebaixamento do já precário ensino à distância (EaD), figura como única alternativa para a continuidade dos processos de ensino-aprendizagem no momento excepcional da pandemia. Mas, independente da garantia da qualidade, das condições objetivas e subjetivas de professores e estudantes e do acesso à sua mediação: internet, equipamentos e bibliografia. Nesse processo de refuncionalização de conteúdos – precarizados em sua maioria –, de invisibilização do fazer docente – em alguns casos sua real substituição por máquinas, como no mercado das faculdades privadas –, aprofunda-se a tendência em curso de uma educação terciária.
Nesse processo gera-se de um lado: i) adoecimento docente; ii) incorporação pelos docentes de tarefas administrativas antes realizadas por técnicos administrativos; iii) sobrecarga de trabalho (acúmulo de tarefas no e do trabalho e domésticas, sobreposição de reuniões, disponibilidade sem limites para o trabalho); iv) fim da separação entre espaço da casa e espaço do trabalho; v) estruturação do espaço domiciliar para o trabalho sem investimento público; vi) controle do tempo e dos conteúdos trabalhados nas atividades síncronas, uma vez que as plataformas não garantem segurança; vii) dificuldade para a organização dos trabalhadores da educação, entre outros. Vários desses pontos, já presentes no ensino superior público, são também base de estruturação da chamada indústria 4.0 no processo de reestruturação do mundo do trabalho privado.
Do outro lado, sob a ótica das instituições de ensino e também do projeto do capital para a educação, gera-se: i) ‘economia’ de gastos com a estrutura das instituições, saneando déficits de várias universidades; ii) justificativa para a redução de recursos públicos para a educação pública; iii) apropriação do fundo público, agora através das plataformas privadas usadas para a mediação da educação e pelos convênios e contratos com empresas de telefonia para acesso à internet firmados pelas instituições de ensino públicas; iv) justificativa para a implantação de um ensino híbrido após o período da pandemia; e v) disseminação de um modelo de ensino, remoto, que se pretende intensificar no período pós-pandêmico, e para o qual é necessário um certo apassivamento cultural.
Assim, articulando alguns dos efeitos gerados por esse processo e considerando as contrarreformas que já haviam sido realizadas de retirada de direitos do funcionalismo público e de precarização da educação presencial, como a ampliação da carga horária de EaD de 20% para 40% nos cursos presenciais, forja-se uma desestruturação por dentro da educação superior pública, que acaba por alterar a forma ser-essência da educação, que se pretende dialógica, coletiva e crítica.
Para onde caminhamos? A humanidade certamente para a desumanização, se não formos capazes de frear o genocídio em curso comandado pelo presidente da república. E a universidade pública? Para um projeto tecnicista, assistencialista, autoritário, fascistizado, baseado em anticiência, terraplanismo e em ‘Deus acima de todos’, que certamente intensificará a desumanização e aprofundará a desigualdade.
Mudar os rumos desse caminho é possível? Parece que sim, mas depende do grau de mobilização da classe trabalhadora, da capacidade de construção de unidade de ação para a construção de uma frente única por parte de entidades, organizações da classe trabalhadora, partidos progressistas e movimentos sociais que, dialogando com a vida real dos trabalhadores, em especial os mais pauperizados, impulsione o reconhecimento de que a educação é um bem público e uma conquista e, por isso, deve ser por todos defendida. Só assim poderemos gritar e reivindicar que a vida deve estar acima dos lucros e que, por isso, é fundamental lockdown, auxílio emergencial imediato e vacina para todos, já!
Bibliografia:
MARX, Karl. O Capital – crítica da economia política. Livro 1 volume 2. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2001.
SILVA JÚNIOR, João dos Reis. Relatório Científico Parcial. O trabalho do professor diante da expansão da pós-graduação em educação – o caso da região Sudeste. Abril de 2013. Disponível em: https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox/FMfcgxwLswMskrrhtxfHkFkdKfxfvgjv. Acesso: 20 de março de 2021.
[1] Para saber mais ver ANTUNES, Ricardo (org). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Editora Boitempo, 2020.
[2] Segundo informações da Secretaria Geral de Controle Externo do Tribunal de Contas da União em 2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/levantamento-tcu.pdf Acesso em: 17 fev. 2021
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