Opinião
Palácio Capanema e a entrega dos patrimônios públicos
Há um intenso processo de desmonte do patrimônio público nacional no qual o Rio de Janeiro tem destaque após o lançamento de um “feirão de imóveis” coordenado pela Secretaria de Coordenação e Governança de Patrimônio da União (SPU). A proposta foi feita em Agosto e visa a liquidação dos edifícios e propriedades da União.
A facilitação da alienação de bens públicos se deu com a aprovação da Lei 14.011 em 2020, a qual abre a prerrogativa para que qualquer cidadão e qualquer empresa possa apresentar uma proposta de compra para qualquer imóvel público federal, invertendo a lógica das licitações, e portanto facilitando e acelerando o procedimento que conduz a alienação do patrimônio público.
No Rio, uma relação com as características dos prédios foi feita em parceria com a prefeitura, contendo informações de prédios e terrenos pré-aprovados e suas regras de zoneamento. A lista inicial engloba os imóveis cujas vendas já têm o aval de órgãos que os ocupam, ou que estão desocupados. Nesta lista consta por exemplo o edifício A Noite, na Praça Mauá, que foi sede da Rádio Nacional e passou por três leilões recentes, sem interessados. Com a nova alteração no procedimento de venda por conta da lei e para evitar fracasso nas vendas, há uma previsão de que caso não tenha sucesso na primeira rodada de vendas, na seguinte possa ter um desconto com o valor de 25% para o imóvel.
Slide apresentado no último circulação da Balbúrdia, por Luiza Bertin. No meio, a imagem do Palácio Gustavo Capanema e seu valor estimado de R$30 milhões, que representa somente um terço de todo o valor que custou sua restauração.
Dentre os patrimônios, foi divulgada a possível venda do icônico Palácio Gustavo Capanema, causando uma intensa mobilização feita por arquitetos, urbanistas e entidades, que protestaram por meio de cartas e manifestos contra a venda do edifício por conta de seu valor cultural e histórico.
Um marco da arquitetura moderna no Rio e na América Latina, o Capanema foi inaugurado em 1945 e projetado pelo arquiteto Lúcio Costa em conjunto com uma equipe nos quais alguns nomes integrantes foram Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Machado Moreira e os jovens Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer, considerado um exemplar histórico da arquitetura modernista, com 16 andares, ocupando um quarteirão inteiro no centro do Rio. Os jardins do térreo, mezanino e do último andar foram criação do paisagista Roberto Burle Marx. Celso Antônio de Menezes produziu esculturas para o edifício, assim como outras obras de arte foram confeccionadas por Bruno Giorgi, Adriana Janacópulos e Jacques Lipchitz. O prédio possui também diversas pinturas, afrescos e painel de azulejos de Cândido Portinari e Guignard.
Reprodução: Site da galeria do IPHAN.
Inicialmente, o prédio sediou o Ministério da Educação e Saúde do governo na época de Getúlio Vargas. O nome do Palácio foi colocado por conta do nome do então ministro da Educação, Gustavo Capanema, que acompanhava a realização do projeto. O prédio ao longo dos anos abrigou setores do Iphan, a Fundação Biblioteca Nacional (FBN), a Fundação Palmares, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), a Fundação Nacional de Arte (Funarte), e o Centro Lúcio Costa. Atualmente o Palácio conta com uma biblioteca pública, uma sala de espetáculos, parte do acervo da Biblioteca Nacional e as superintendências de órgãos culturais.
Desde 2014, o Palácio Capanema passa por obras de restauração, num cronograma que sofre com atrasos constantes. Em 2019, após finalização das obras nas fachadas e no terraço-jardim foram investidos R$42 milhões para as reformas. Depois, o governo federal liberou mais R$57,8 milhões para a finalização das partes internas, com o total de investimento da União em sete anos de R$ 100 milhões na restauração do prédio.
Em 1948, o prédio foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e desde 1996, consta na lista indicativa para ser incluído como Patrimônio Mundial pela UNESCO.
Fica evidente que apesar da criação de leis para a preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro no fim da década de 1930, estas não foram garantias para a efetivação. Tanto por conta do estímulo para a entrega dos patrimônios para a iniciativa privada, quanto pelo abandono em que estes são deixados em sua grande maioria. O investimento feito na restauração do Capanema é uma exceção comparando com outros prédios que continuam se deteriorando com a falta das de investimentos em reformas e restauração, como é o caso do edifício A Noite.
Cabe ressaltar ainda, que a defesa em relação ao patrimônio público pode ser pensada tanto pelo valor histórico, cultural e econômico, mas junto do seu uso e sua relação com o direito à cidade.
No texto “Relações e contradições: direito à cidade e patrimônio urbano”, de autoria do Cláudio Ribeiro e Maria Cristina Rocha, os autores ressaltam a importância de pensar a preservação do patrimônio cultural com a questão do direito à cidade. Partindo da noção de sociedade urbana por Lefebvre, o diálogo entre a preservação e o uso da cidade “é imprescindível que haja alguma forma de diálogo entre as políticas que garantam a cidade enquanto direito e patrimônio, caminhando no sentido da realização de justiça social.”
A importância das políticas de planejamento urbano estarem acompanhadas de uma reflexão sobre o tipo de relações sociais criadas no espaço devem estar presentes quando o que vemos atualmente é uma naturalização da ideia dos centros históricos para o consumo. Mas quais as perspectivas e expectativas dos sujeitos que moram nessas áreas e como se apropriam desses lugares?
Como apresentado em seu trabalho, Luiza Bertin defende que o patrimônio público imobiliário é uma solução possível para o déficit habitacional do Brasil por exemplo, ao invés de serem entregues a preços baixos para a iniciativa privada.
De acordo com a autora, caso a destinação dos imóveis da União se desse de acordo com as diretrizes da Política Nacional de Gestão do Patrimônio da União (PNGPU) poderíamos ter um cenário bem diferente. Em seu Art. 6º constam a prioridade desses imóveis da União para políticas de inclusão social e provisão habitacional para a população de baixa renda, bem como a promoção da regularização fundiária nas áreas ocupadas pela população de baixa renda.
Com o estudo espacial que a autora realizou no Rio de Janeiro, foi possível demonstrar que às classes populares com a distribuição de terras estatais àquela da produção habitacional vinculada ao Programa Minha Casa Minha Vida é destinado um território repleto de ausências, com infraestrutura precária ou até mesmo inexistente, onde o setor da incorporação imobiliária obtém maiores ganhos ao instalar ali famílias de baixa renda, ainda que os imóveis da União se concentrem no centro da cidade junto com os serviços de educação e saúde e equipamentos de lazer.
Tudo isso reflete uma distância entre a vida cotidiana das populações e a efetiva realização do direito à cidade.
Debate 30 de setembro (2021!): Patrimônio público, urbanismo e sanha capitalista
No dia 30 de setembro, às 18h30, a Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora Vânia Bambirra (EFoP) irá organizar um debate com Cláudio Ribeiro e Sara Granemann, professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre Patrimônio público, urbanismo e a sanha capitalista.
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