Jornal socialista e independente

Painel do leitor

Painel do Leitor | Estigma e identidade na periferia

Imagem: Foto Rua no bairro da Brasilândia, por Jonathan Santos; Montagem UàE
Por Painel do leitor, redação do Universidade à Esquerda
29 de abril, 2021 Atualizado: 09:46

Confira o texto enviado pelo leitor Henrique da Silva dos Santos, estudante do 5ª ano de psicologia, de Bebedouro (SP): A interferência do estigma na construção da identidade da periferia.

Ao decorrer de nosso desenvolvimento, é comum o questionamento: “Quem sou eu?”, e para responder esta pergunta utilizamos diversos aspectos, tais como nosso físico, nossa personalidade, nossos hábitos e nossa pertença a um grupo social. Este processo faz parte da construção do autoconceito, que se refere a ideias que temos sobre nosso eu. O autoconceito parte das crenças, que podem ser corretas ou não, que construímos ao longo de nossa vida, e essas crenças estão relacionadas com nossas interações sociais (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 2015). O autoconceito pode ser considerado um conjunto de pensamentos e sentimentos do eu, que é formado a partir de experiências e das interpretações que o individuo realiza acerca do ambiente que está inserido (ANDRADE, 2016). 

A reflexão que quero trazer aos camaradas é a de como a desigualdade social pode influenciar na construção do autoconceito de um indivíduo, pois, um dos aspectos que influenciam na construção do autoconceito é a forma que as outras pessoas olham para o individuo, ou seja, o julgamento que fazem sobre tal sujeito. Para isso é necessário compreender como alguns teóricos olham para a periferia. Para estes teóricos a periferia é considerada como algo secundário, irrelevante, e até anormal quando comparado ao central, importante e desenvolvido, sendo considerada como o obstáculo no caminho do desenvolvimento de países “subdesenvolvidos”, como é o caso do Brasil. Deste modo, as classes mais populares são culpabilizadas pelo o atraso no desenvolvimento do país, se tornando o opróbrio de uma sociedade “subdesenvolvida” (SOUZA, 1997).

Nestas sociedades, a pobreza é revestida por um status social de desvalorização e estigmatização, sendo obrigada a viver em isolamento. As classes mais populares sofrem ainda a humilhação social, na qual é uma repetição ancestral de violência material e psicológica, que molda a subjetividade do individuo que dela é vítima, e é nefasta pois prejudica sua capacidade de criar, ferindo sua percepção sobre si e também sua autoestima. Além disso, no Brasil há uma realidade opressora e de marginalização, na qual coloca o oprimido em uma posição de culpa para sua situação, e de incapacidade de promover qualquer mudança (CIDADE; MOURA & XIMENES, 2012; FERREIRA & LATORRE, 2012; PAUGAM, 2014).

O sentimento de culpa pode ser explicado pela ideia de meritocracia, construída pela elite econômica e pela classe média, para camuflar seus privilégios. Na ideologia da meritocracia, as pessoas devem ser recompensadas de forma proporcional aos seus “esforços”, porém ao promover o mérito individual, oculta a existência de configurações da estrutura social, na qual distribuem desigualdade nas oportunidades de desenvolver competências necessárias (WACHELKE, 2020), e como sabemos, a corrida pelo sucesso nunca é justa, pois as classes mais populares estão em gigante desvantagem.

Um jovem de periferia, que está construindo seu autoconceito e se depara com uma sociedade que o coloca como bode expiatório, que o estigmatiza como violento, perigoso e até inferior, sofre com um impedimento de transformação em sua identidade, o que impossibilita mudanças no reconhecimento de sua identidade em relação à sociedade (MOURA & XIMENES, 2016). Ele pode realmente se sentir inferior, pois, muitas vezes ao olhar o ambiente em que vive, encontra lixo nas ruas, ausência de asfalto, de saneamento básico, de serviços e a violências, e compreende que foi esquecido pelo Estado (RODRIGUES, 2019).

Além do abandono do Estado, a periferia sofre da rotulação que a mídia coloca sobre ela. A mídia sensacionalista e tendenciosa apresenta a violência do oprimido, mas esquece de mostrar a real violência, aquela produzida pelas instituições. Tendenciosa, porque descarta qualquer análise social do problema, e apenas instiga a população a punir os jovens periféricos (LAMARÃO NETO & TEXEIRA, 2021), pois estes seriam os “culpados” por tudo de ruim que acontece no país.

Quero ressaltar ao leitor, que o estigma interfere de maneira negativa na construção da identidade de um jovem. Ao ser estigmatizado, o jovem internaliza o estigma e isso pode comprometer sua formação profissional, pois não conseguem reconhecer sua identidade. Consequentemente, irá diminuir sua autoestima, desacreditar e reprimir suas potencialidades (FERREIA et al, 2020) o que impossibilita de realizar qualquer transformação em sua vida, e de se reconhecer como cidadão de direito. A sociedade precisa de um bode expiatório para receber a culpa pelo seu fracasso, e utiliza do estigma e do preconceito como sua principal arma para manter a divisão de classes.

Referências

ANDRADE, C. A construção da identidade, auto-conceito e autonomia em adultos emergentes. Psicologia Escolar e Educacional. v. 20, n. 1, 2016.

CIDADE, E.; MOURA J. & XIMENES, V. Implicações psicológicas da pobreza na vida do povo latino-americano. Psicologia Argumentos. v. 30, n. 68, 2012.

FERREIRA, M. A.; LATORRE, M. R. Desigualdade social e os estudos epidemiológicos: uma reflexão. Ciência & Saúde Coletiva. v. 17, n. 9, 2012.

FERREIRA, S. M. et al. Periferia, violência e estigma sob o enfoque da promoção da saúde: relato de experiência. Pesquisas e Práticas Psicossociais. v. 16, n. 1, 2020.

LAMARÃO NETO, H. & TEXEIRA, E. M. Violência (estrutural) e criminalidade patrimonial. Brasilian Journal of Development. v. 7, n. 3, 2021.

MOURA, J. & XIMENES, V. A identidade social estigmatizada de pobre: uma construção opressora. Fractal: Revista de Psicologia. v. 28, n. 1, 2016. 

PAUGAM, S. O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais: uma dimensão essencial do processo de desqualificação social. In. SAWAIA, B. (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. 14ª ed. Petrópolis: Vozes. p. 69-88, 2014.

RODRIGUES, A.; ASSMAR, E. & JABLONSKI, B. Psicologia Social. 32ª ed. Petrópolis: Vozes. 2015.

RODRIGUES, P. Desigualdade e violência no século XX. In. REIS, T.; OLIVEIRA, M. & SOUZA, C. Desigualdade, violência, e relações de poder na História. Boa Vista: Editora da UFRR, 2019.

SOUZA, C. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 1997.

WACHELKE, J. et al. Causas da pobreza, meritocracia e igualdade: um estudo de crenças de adolescentes como mediação social. Mediaciones Sociales. v. 19, 2020.


Compartilhe a mídia independente