Debate, Opinião
Governo Bolsonaro e as Universidades, por Allan Kenji Seki
Allan Kenji Seki* – Para o UàE – 22/04/2018
A retórica privatista
Na segunda-feira (08/4), Bolsonaro demitiu o Ministro da Educação, Ricardo Vélez, e o substituiu pelo homem das finanças, Abraham Weintraub. Bolsonaro concedeu entrevista exclusiva para o jornalista Augusto Nunes, do programa “Pingo nos is” (Jovem Pan), na qual mostrou mais uma vez o desconhecimento absoluto sobre a educação brasileira. A verborragia de Bolsonaro impressiona pelo excesso de amadorismo do governo que conseguiu o ineditismo de não conseguir acertar um único dado correto em mais de 100 dias de governo, mas a linha é clara: aprofundar o projeto neoliberal de destruição das universidades públicas.
Segundo Bolsonaro, o Brasil teria cerca de 68 universidades públicas que consumiriam 60 bilhões. Por sua vez, esse montante seria a metade do orçamento destinado à educação. Esse dado é fornecido como evidência de que existiria uma inversão de prioridades no Brasil e o ensino superior seria privilegiado em relação à educação básica. Mas, além disso, as universidades públicas não fariam pesquisa nenhuma, sendo que a pesquisa no Brasil seria realizada pelas universidades privadas.
Bolsonaro mentiu sobre os dados
Os dados sobre o número de instituições superiores no Brasil é facilmente acessível por uma plataforma mantida pelo Ministério da Educação (MEC) e pode ser acessada livremente por qualquer pessoa (inclusive por assessores da Presidência da República, especialmente aqueles responsáveis por soprar alguns dados ao Presidente antes de uma entrevista exclusiva, com hora e data marcadas). Segundo os dados do Ministério da Educação (MEC), no Brasil existem 201 universidades em funcionamento, das quais 109 são instituições públicas: 63 federais, 41 estaduais e 5 municipais. Quanto às privadas, 71 delas são instituições sem fins lucrativos e 21 instituições com fins lucrativos. Há uma razão um tanto óbvia para isso: o capital não tem interesse na universidade como instituição social, seu único interesse na forma universitária é o recurso à autonomia para abrir cursos e vagas, como determina a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional de 1996. Mas o capital não quer arcar com os custos da instituição universitária, que vincula o ensino à pesquisa e à extensão, obrigatoriamente (LDBEN). É por isso que as pressões privatistas atacam a universidade, porque o seu interesse econômico resulta na transformação do ensino superior em uma máquina de fazer matrículas.
Corrigindo os dados do Presidente
De de acordo com os dados públicos disponibilizados pelo Senado Federal, o orçamento pago às 63 instituições de ensino superior federais correspondeu a 23,7 bilhões de reais, em 2018. Isso representa um gasto público anual médio de apenas 376 milhões por universidade federal. Em comparação, de 2016 até 2018, foram empenhados R$ 36 bilhões de reais em emendas parlamentares. Esse período corresponde desde a fase de chantagens sobre o impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), orquestrada pelo ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB), até a às votações para impedir os a abertura de processos criminais contra, por exemplo, Michel Temer (PMDB) e Aécio Neves (PSDB). Isso significa que o golpe de 2016 custou ao Brasil o empenho de 1,5 vezes o orçamento realmente pago às universidades federais.
A mitomania do Presidente
Bolsonaro é um mito, um mitômano (tendência impulsiva para a mentira). A CAPES solicitou à Clarivate Analytics um relatório sobre a participação das pesquisas brasileiras no cenário internacional. A pesquisa tem claro viés produtivista e privatista, e por isso mesmo serve como prova cabal: a pesquisa não conseguiu descobrir nenhuma publicação relevante publicada nas instituições de ensino superior privadas (sejam elas faculdades ou universidades). Toda a produção científica considerada relevante foi produzida pelas universidades públicas brasileiras. Entre as maiores instituições de pesquisa estão, pela ordem: Universidade de São Paulo, Universidade Estadual Paulista, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal de Minas Gerais.
São as universidades públicas aquelas que produzem pesquisas consideradas relevantes e não as privadas.
A universidade custa caro no Brasil?
As universidades têm por definição no Brasil: a) a indissociabilidade entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão e b) a autonomia político-administrativa. Essa é a principal razão pela qual todas as tentativas de comparar o orçamento público destinado a essas instituições com outro nível de ensino são falaciosas, pois as universidades não se restringem apenas às atividades de ensino e custeiam diversos outros elementos como a pesquisa e a extensão, o que significa custear e investigar em infraestrutura pesada de pesquisa como laboratórios, equipamentos, insumos de pesquisas, mas também hospitais universitários, museus, e centros aglutinadores como observatórios astronômicos, centros de culturas vegetais e marinhas, bases avançadas de pesquisa e coleta de dados e até mesmo artefatos de altíssima densidade tecnológica como os aceleradores de partículas e os laboratórios de energia nuclear.
Aliás, os dados produzidos pelo próprio Ministério da Ciência e Tecnologia demonstram que as universidades respondem por praticamente toda a infraestrutura de pesquisa instalada no Brasil. Afinal, os capitais não fazem pesquisa e desenvolvimento em território nacional e as raras unidades de pesquisa e desenvolvimento estabelecidas em empresas como a Petrobrás e a Embraer resultam em grande parte de convênios e parcerias com centros de pesquisas e laboratórios das universidades públicas.
As universidades públicas são responsáveis por toda a pesquisa de base. Seja nas fronteiras do desenvolvimento do repertório interpretativo no campo da sociologia às novas fronteiras do conhecimento na física de partículas subatômicas, todo esse conhecimento só existe porque as universidades públicas ainda resistem.
A defesa dos recursos públicos para a educação pública, da creche à pós-graduação, portanto, não pode fazer oposição entre a educação básica e superior, mas formar uma unidade de todos aqueles que defendem irrestritamente a educação pública nacional.
A velha cantilena e alguns de seus cantores
Aliás, a comparação do orçamento público destinado à educação superior com a educação básica é uma velha cantilena do capital. Repetida à exaustão pela imensa maioria das organizações internacionais, como o Banco Mundial, a Unesco, OCDE, BID e pelas frações capitalistas internas como a CNI, CNA e Febraban. No Brasil, movimentos capitalistas revestidos de um interesse filantrópico pela educação pública como o Movimento Todos pela Educação, o Instituto Ayrton Senna e a Fundação Lemann têm sido os principais agenciadores desse argumento falacioso e privatista. É importante focalizar neles e combate-los porque são essas organizações que estão articuladas hoje com os principais jornais nacionais para produzir consenso sobre suas agendas para a educação brasileira. São organizações como estas que têm agenciado, por exemplo, as atuais críticas ao Ministério da Educação (MEC). Ressentem-se porque a atual conjuntura e as características autoritárias do governo Bolsonaro ajudaram a cultivar a expectativa de que seus projetos educativos poderiam ser implantados vencendo (ou reprimindo) movimentos de resistências. Não é por acaso que a maioria dos jornais, intelectuais e políticos vinculados a essas organizações criticam o MEC exigindo dele mais “gestão”, “técnica” e “eficiência”.
É óbvio que não se trata de evitar qualquer crítica ao MEC, ou ignorar as políticas educacionais do governo Bolsonaro na educação, mas de afirmarmos que a crítica precisa se divorciar de uma vez por todas dos projetos do capital para a escola brasileira (algo que precisamos reconhecer, apesar da existência de substantivas diferentas, ocorreu largamente antes do golpe de 2016). Lembremos que Lula escolheu, não por acaso, chamar sua principal política educacional do segundo mandato de “Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação” (2007), para não deixar dúvidas da disposição de seu governo em afinar-se com os interesses do Movimento Todos Pela Educação e, portanto, com as grandes empresas que o controlam.
As críticas ao MEC e ao governo Bolsonaro que se limitem a exigir que as coisas sigam pelo caminho em que estavam antes do golpe, apeas contribuirão para confundir as lutas pela escola pública. Vejamos por exemplo como essas críticas nos confundiram a tal nível que estamos defendendo programas muito complicados (para dizer o mínimo) sobre a compra livros didáticos, reforçando a lógica que favorece os grandes capitais editoriais internacionais – algo pelo qual, aliás, a Kroton/Saber Educacional certamente nos agradeceria. Além da confusão que essas críticas desordenadas sobre a suposta “incompetência” no MEC, elas apenas têm contribuído para forçar o governo a ouvir – e, finalmente conceder – aos interesses articulados das organizações já mencionadas (TPE, Lemann, Ayrton Senna etc).
O mesmo é preciso dizer da critica “lacradora”, capaz de “viralizar” entre certos círculos muito limitados da população, mas que não contribui para esclarecer para a maioria do povo brasileiro a verdadeira raiz do problema educacional brasileiro e, portanto, também não ajuda a construir uma solução real.
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