Debate, Opinião
Bolsonaro e os cortes na educação superior: considerações preliminares (I)
A partir de hoje, 10 de maio, o UàE passa a publicar uma série de textos de análise produzidos por Allan Kenji Seki, sobre os cortes na educação superior realizadas pelo governo Bolsonaro. Allan é Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Investigação em Política Educacional (GIPE-MARX). Pesquisador do laboratório Centre d’Économie de l’Université Paris Nord (CEPN) da Université Paris 13. Confira a primeira parte.
Leia também a parte II, parte III, parte IV e parte V.
Allan Kenji Seki* – Para o UàE – 10/05/2019
Na esteira dos ataques à educação nacional, o Ministério da Educação (MEC) determinou novos contingenciamentos por meio do Decreto nº 9.741, de 29 de março de 2019, que obriga os órgãos da administração federal a informarem as áreas que deverão sofrer ajustes em função do déficit primário acumulado no primeiro trimestre do governo de Jair Bolsonaro. As universidades, calejadas por ataques semelhantes desde 2014, enfrentam a situação mais dramática em termos orçamentários deste ciclo de ofensivas neoliberais cujo impacto poderá travar seu funcionamento administrativo em 90 dias se não houver a reversão do Decreto. Não é difícil imaginarmos os efeitos que os últimos cinco anos de contingenciamentos sucessivos terão sobre as instituições educacionais públicas. Além dos perigos mais imediatos relacionados aos cortes, temos que levar em consideração alguns elementos de fundo que permearam o debate público sobre os cortes para compreender o significado político das investidas do governo Bolsonaro contra as universidades públicas.
Na semana anterior, o novo Ministro da Educação, Abraham Weintraub, anunciou em vídeo ao vivo, ao lado do presidente, a ideia concebida no Ministério de redirecionar os financiamentos federais de cursos de humanas, como filosofia e sociologia, em favor das áreas que, supostamente, dariam retornos financeiros imediatos aos formandos e ao país. A medida não encontra nenhum dispositivo legal que lhe permita ser aplicada e viola flagrantemente a autonomia administrativa e pedagógica das universidades. No embate com estas instituições, esse foi o primeiro ato de maior relevância do novo ministro que, na sequência, declarou que os contingenciamentos determinados pelo Decreto nº. 9.741/2019 se concentrariam em três instituições: Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Federal Fluminense (UFF). Em entrevista ao Estado de S. Paulo, justificou que os três cortes decorriam do que ele chamou de “balbúrdia”, “bagunça” e promoção de “eventos ridículos”, além de, em geral, apresentarem baixo desempenho acadêmico (O ESTADO DE S. PAULO, 2019).
Em resposta, as universidades afetadas e a Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) prontamente partiram para a defesa do pluralismo de ideias e procuraram desmentir o ministro, tornando públicos diversos resultados das instituições em rankings nacionais e estrangeiros. Após as polêmicas suscitadas, o MEC voltou atrás em relação à seletividade dos cortes, informando em nota que o critério de contingenciamento foi “técnico” e que “caso a reforma da previdência [fosse] aprovada e as previsões de melhora da economia no segundo semestre se [confirmassem]” os contingenciamentos poderiam ser revertido” (MARIZ, 2019).
Acostumados com a lógica de anúncios e “recuos” do governo de Jair Bolsonaro, talvez pudéssemos ver aí apenas mais um ato que confirma a regra geral de um governo “perdido” em seu próprio funcionamento “megalomaníaco”, “despreparado” e “paranoico”, além, é claro, da explícita chantagem presente na nota. Contudo, a análise pormenorizada do significado contábil dos cortes seletivos, em apenas três das 63 universidades federais, lança luz sobre alguns elementos da modalidade de governo que estamos encarando.
Seletividade nos cortes?
Se apenas três instituições universitárias sofressem a principal fatia do corte (UnB, UFBA e UFF), mesmo no cenário mais drástico, aquele em que todas as despesas, excetuados os salários e encargos, fossem cortados, todo o contingenciamento somaria aproximadamente R$ 198 milhões. Evidentemente, isso teria consequências enormes para as instituições, virtualmente paralisando todas as atividades acadêmicas, mas, para o orçamento global do MEC, seria um valor irrisório. Ademais, estaria muito longe dos quase R$ 8 bilhões que o MEC precisa contingenciar para cumprir as determinações do Ministério da Economia.
Para se ter uma ideia comparativa da dimensão das despesas do governo federal, somente entre os dias 1º de janeiro e 29 de abril do ano corrente, o governo Bolsonaro pagou R$ 949 milhões em emendas parlamentares[1] no Congresso Nacional (BRASIL, 2019), recursos que compraram apoio dos congressistas para a aprovação da reforma da previdência na Câmara dos Deputados – o que tem sido chamado de “Bolsolão” (TEIXEIRA, 2019), em clara referência ao “mensalão” do Partido dos Trabalhadores (PT) – ainda no primeiro semestre de 2019 e para evitar que o Governo seja alvo de inquérito parlamentar.
A compra desse apoio é decisiva dado que: (1) vivemos o primeiro momento na história da república brasileira no qual o presidente e vários membros de sua família são flagrados em relações tão próximas com o crime organizado. Referimo-nos aqui ao caso das milícias no Rio de Janeiro (RJ); (2) o próprio presidente, já mandatário, possui indícios de corrupção sistemática, como no caso dos laranjas do seu Partido Social Liberal (PSL), dos valores milionários movimentados pelo ex-motorista de seu filho envolvendo, inclusive, a primeira dama; (3) existem suficientes indícios sobre funcionários fantasmas alocados nos gabinetes de Jair Bolsonaro enquanto era deputado federal pelo estado do RJ; (4) o governo sabe que o amortecimento temporário desses escândalos se deve principalmente ao fato de que os grandes capitais (e, portanto, a grande imprensa) não querem correr o risco de repetir a fórmula de desgaste moral e político sofrido por Temer (2016-2018). Esse governo sofreu inúmeras denúncias de corrupção que vieram à tona logo após o golpe de 2016 e minaram as chances de aprovação da reforma da previdência antes do fim de seu mandato.
De outra parte, o contingenciamento de R$ 198 milhões também seria irrisório se considerássemos outros gastos correntes polêmicos da União, como o caso das pensões para as filhas, em tese, solteiras de militares. Só em 2019, este valor chegará a R$ 1,6 bilhões para as 23,7 mil beneficiárias atuais. Agregue-se, ainda, a anistia das dívidas privadas de grandes proprietários rurais com o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), proposto na Câmara dos Deputados por meio do PL 9.252/2017, endossado pelo Ministério da Agricultura. Se aprovado, a lei decorrente representará a incorporação de dívidas privadas com valores superiores a R$ 32 bilhões contra o Tesouro Nacional[2].
Esses números são suficientes para afirmarmos que não faz sentido o MEC concentrar os cortes mais significativos em apenas algumas instituições a fim de cumprir o contingenciamento geral do orçamento federal que vem acumulando déficits primários. Trabalhamos com a hipótese de que nunca foi a intenção do ministro realizar os cortes de maneira seletiva. Ao que tudo indica, seu objetivo era o de alcançar o conjunto das instituições federais, situação na qual seria possível chegar ao valor aproximado de R$ sete bilhões, se considerarmos o congelamento de despesas nas fundações de apoio à pesquisa e hospitais universitários. Então, anunciar o corte nessas três instituições teria sido apenas uma encenação? Nesse caso, se tradicionalmente o recuo é encarado como um sinal de fraqueza dos governos, qual seria a lógica de propor uma medida que desde o início se sabia que teria que ser desfeita?
A fraqueza do governo é a sua força política
Bolsonaro foi eleito porque a crise do capitalismo é tão grave e extensa em todo o mundo que não existe hoje uma resposta, nas hostes do capital, para a retomada dos níveis de crescimento de longo prazo. A única saída que o capitalismo pode apresentar é “mais neoliberalismo”, o que significa apenas tentar curar a doença com um pouco mais de veneno. Essa nova fase de ofensiva precisa justificar o injustificável, fazer os trabalhadores pagarem pela crise mediante redução drástica dos salários, elevação extraordinária das despesas das famílias, destruição da seguridade social (aposentadoria, fundo de garantia, seguro desemprego, pensões e benefícios sociais), privatização generalizada de todos os setores da economia nos quais o Estado ainda tem uma participação relevante e estratégica. Tal deve ser feito enquanto os grandes capitais bancários internos registram novos recordes nas massas de lucro: o Itaú Unibanco, por exemplo, acaba de divulgar em seu balanço trimestral que seu lucro foi superior às projeções do mercado, alcançando R$ 6,8 bilhões apenas no primeiro trimestre de 2019.
E o governo sabe disso, tão bem como sabe que Bolsonaro é uma figura exótica no círculo dominante do capitalismo brasileiro, muito mais afeita a uma figura de austeridade e suficientemente amadurecida nas teias da política nacional, como Geraldo Alckmin (PDSB). Bolsonaro é apenas tolerado, à contragosto, pelas frações dominantes e, justamente por isso, o governo sabe que a sobrevivência do mandato depende de que seu governo consiga servir-se de seu caráter exótico: vê-se o exercício do poder político por métodos que em outras circunstâncias não poderiam ser empregados. Todo seu instrumental depende da permanente propaganda de agitação do governo contra as frações da classe trabalhadora que não podem mais ser incluídas no escopo do Estado. Enquanto o governo produzir novos combates e entregar ajustes neoliberais que seus concorrentes não poderiam fazer, ele sobreviverá. Entretanto, se o ambiente de conflitos for amainado, o governo Bolsonaro certamente terá sua base social dissipada em lutas intestinas entre as diversas facções políticas da direita.
Por isso, o governo deve conciliar suas idiossincrasias com a função política que lhe permita sobreviver um dia por vez. É o que explica, por exemplo, o fato de o deputado federal Jair Bolsonaro, contrário às reformas da previdência propostas por Dilma e Temer, mudar de posição ao longo da campanha eleitoral. Foi uma declinação muito significativa, porque sua proposta é ainda mais servil aos interesses dos grandes capitais bancários e financeiros do que seus predecessores sequer poderiam cogitar. Enquanto Bolsonaro for útil àqueles que constituem o poder efetivo na sociedade brasileira, é possível que suas peculiaridades sejam igualmente úteis e toleráveis. Citemos, como exemplo, como a classe dominante brasileira, profundamente anti-bolivarianista, suporta que Bolsonaro utilize métodos francamente associados à figura de Hugo Chávez. Afinal, quem imaginaria que seria justamente Bolsonaro a copiar Hugo Chávez na transmissão de um programa semanal para falar diretamente ao “povo”, desconfiado dos grandes monopólios midiáticos, tendo em vista defender as medidas por ele implementadas? Aliás, durante mais de uma década, não teria sido justamente a grande imprensa brasileira a zombar abertamente do programa “Alo Presidente” de Chávez (regularmente apresentado de 1999 a 2012). Não teria sido essa mesma imprensa a omitir quase completamente no Brasil os programas televisivos similares realizados por Evo Morales e Rafael Correa, respectivamente na Bolívia e Equador? No caso de Bolsonaro, sequer uma palavra à respeito durante a tramitação da reforma da previdência no Congresso Nacional.
Ao que tudo indica, os ajustes que Bolsonaro terá que realizar constantemente para chegar ao último dia de seu mandato (e sobreviver a ele, à diferença de Michel Temer) irão exigir vencer resistências homéricas por parte dos trabalhadores e amplos setores da sociedade em geral, especialmente diante da incapacidade do Estado de aportar recursos para políticas conciliatórias sem comprometer a renda dos capitais financeiros. Aí reside simultaneamente a fraqueza e a força do governo, com todas as suas singularidades autoritárias, antípoda à democracia liberal e suportado cada vez mais pela presença dos militares em todos os âmbitos do governo.
Leia também a parte II, parte III, parte IV e parte V.
[1] “As emendas feitas ao Orçamento Geral da União, denominado de Lei Orçamentária Anual (LOA) – enviada pelo Executivo ao Congresso anualmente –, são propostas por meio das quais os parlamentares podem opinar ou influir na alocação de recursos públicos em função de compromissos políticos que assumiram durante seu mandato, tanto junto aos estados e municípios quanto a instituições. Tais emendas podem acrescentar, suprimir ou modificar determinados itens (rubricas) do projeto de lei orçamentária enviado pelo Executivo” (BRASIL, 2019b).
[2] A anistia das dívidas dos produtores rurais foi uma das promessas de campanha de Bolsonaro quando candidato à Presidência da República.
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