Debate, Opinião
A reforma da previdência produzirá uma catástrofe social
Renato Milis* – Redação UàE – 03/04/2019
A proposta de emenda constitucional nº6/2019 (PEC 06/2019), que apresenta o projeto de reforma da previdência de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes é o eixo de um projeto de país que nada mais é do que uma grande catástrofe. Se aprovada tornará ainda maior o abismo da desigualdade entre os trabalhadores brasileiros e o empresariado interno e internacional.
A mensagem de Guedes e Bolsonaro
A mensagem de Paulo Guedes, ministro da economia e “guru” de Bolsonaro, ao congresso nacional é perversa. Nela o ministro expressa às principais imagens da propaganda do mercado para vender a reforma: a previdência pública e solidária seria a raiz de todos os males nacionais e portanto faria-se necessário mudá-la radicalmente.
Bolsonaro e Guedes, associam a profunda desigualdade social ao que chamam de “nó fiscal”, ou “desequilíbrio das contas públicas”. Em síntese o discurso da mensagem centra-se na sua avaliação de que o Estado brasileiro gastaria muito, e com isso se endividaria em demasiado; o que mais consumiria o orçamento da União seria a destinação de recursos a previdência; esta por sua vez estaria baseada num modelo falido, que não consideraria o envelhecimento esperado da população nas próximas décadas o que aumentaria os recursos necessários para sustentá-la; com isso, a tendência seria a de o Estado se endividar ainda mais, produzindo um desinteresse do sistema financeiro de investir em outras atividades; o que por sua vez geraria mais desemprego e desigualdade – ou seja, a destinação de recursos a previdência estaria na origem dos problemas sociais do país.
São 114 parágrafos em que enunciam esta lógica argumentativa que encaminha para que a reforma da previdência seja apresentada como uma solução mágica. E a proposta da “nova previdência” nada mais é do que um ataque aos fundamentos do modelo público e solidário: cria um sistema de capitalização individual, em que o trabalhador tem uma contribuição definida a ser alocada em um fundo público ou privado.
Com isto, e as alterações propostas no regime atual e regras de transição (além de modificações em outros instrumentos da seguridade social) o Estado brasileiro deixaria de ter gastos excessivos, se endividaria menos, e às desigualdades sociais seriam corrigidas. Mas, esta propaganda não passa de um conjunto de mentiras, omissões e distorções. A reforma aprofundará tudo o que diz solucionar. Ela só interessa aos burgueses e seus governantes de plantão.
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As mentiras de Guedes e Bolsonaro
Guedes e Bolsonaro defendem a reforma como a solução de todos os males. Mas, vejamos realmente que males são esses.
É uma grande mentira que os recursos destinados à seguridade social, e dentre eles a previdência pública representam a maior parte dos gastos da União. Na verdade, quase 50% do orçamento (tanto aquilo que é formado pela via de impostos e tributos como pela próprio endividamento) é todos os anos destinado ao pagamento de juros e rolagem da dívida pública.
São trilhões de reais retirados do fundo público – que é composto com o suor dos trabalhadores brasileiros – destinados a banqueiros, fundos de pensão, fundos de investimento, enfim aos proprietários de capital. Esta dívida que de acordo com o movimento da auditoria cidadã da dívida chega hoje a cerca de R$5 trilhões de reais, é constituída em um sistema que produz ainda mais dívida.
Isto é o chamado sistema da dívida: a transferência de recursos do fundo público diretamente para o sistema financeiro. Combater, em sua origem este duto de recursos do orçamento da União não está no discurso governamental, muito menos dos empresários.
Outro ponto fundamental é a origem dos recursos da União. Ou seja, inverter o discurso da “crise fiscal” da ponta dos gastos para o da arrecadação. Neste lado da moeda, podemos questionar se a crise econômica que vivemos no Brasil tem de fato uma origem nos gastos públicos – especialmente na previdência. Não é fato novo que a estrutura fiscal brasileira é regressiva, ou seja, afeta largamente a classe trabalhadora, especialmente os mais precarizados.
Um estudo do Sindicato dos Auditores Fiscais, publicado em 2018, aponta que mais de 50% do orçamento do arrecadado pela União vem de impostos sobre o consumo. Apenas, no ano 2016 o valor arrecadado foi de R$1trilhão de reais. Isto afeta bens e serviços básicos, aumentando o custo de vida dos trabalhadores.
Enquanto isso, impostos sobre renda e patrimônio incidem menos no orçamento e são desenhados para beneficiar os proprietários de capital – o grande empresariado.
É possível notar isto, com o conjunto de incentivos, subsídios e desonerações de tributos que o Estado brasileiro oferece aos empresários. Exemplos não faltam: na universidade, o ProUni e o Fies representaram uma transferência vultuosa de recursos para a iniciativa privada; para a indústria automotiva, em 2019 são esperados R$ 7 bilhões em benefícios do governo; o Plano Safra destinou milhões de reais ao agronegócio.
Mas, isto não encerra os benefícios fiscais da burguesia. Desde 1996, com a Lei nº9249/95, lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas são isentos de imposto de renda. Esta lei ainda permite deduções sobre o imposto de renda de pessoa jurídica e na contribuição social sobre o lucro líquido para as empresas, bem como isenta de imposto de renda às remessas de lucros e dividendos ao exterior.
Em 2004 a Lei nº11.033 reduziu a alíquota de 20% para 15% do imposto de renda sobre os ganhos líquidos das operações em bolsas de valores. E a Lei 11.312/2006 isentou de imposto de renda investidores estrangeiros no Brasil em fundos de investimento.
Isto sem falar nos inexistentes impostos sobre grande fortunas ou na não incidência de Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) sobre lanchas ou helicópteros. Assim, a burguesia é largamente beneficiada para se apropriar da riqueza produzida pelos trabalhadores.
Sobre estes pontos cruciais os governos não atuam. E mais os empresários ainda querem uma reforma tributária para se beneficiar ainda mais.
As brutais desigualdades de nosso país não são fruto da previdência pública. São, sim, o efeito mais nefasto da sociedade de classes e do capitalismo dependente. É a propriedade sobre os meios de produção e os recursos de produção – a propriedade de capital que produz este abismo social.
Não se pode duvidar por um segundo de que esta estrutura que dispõe milhões e milhões de trabalhadores a precarização mais extremada, impondo salários baixíssimos, com poucos direitos, em larga medida em atividades degradantes que permite que grandes empresários levem tudo o que produzimos. A burguesia não depende da previdência pública.
Evidente que na miséria que corta este país é significativa a diferença entre uma família de trabalhadores que têm como renda um salário mínimo e meio e outra que têm cinco ou dez salários mínimos de renda. E a propaganda da reforma tenta acentuar essa diferença. Trata ela como se fosse ela o grande dilema dos trabalhadores.
Mas, esconde quem de fato se beneficia com a reforma da previdência. E quem de fato ganha com esta estrutura social, quem se apropria da riqueza que produzimos. Mas, nós lembramos dos lucros recordes dos bancos em meio a crise: só no ano passado (e desconsiderando que o modo como este dado é produzido pode não revelar tudo) o Itaú lucrou R$24bilhões.
Nós não esquecemos das remunerações dos dirigentes das grandes empresas que ganham milhões e centenas de milhões de reais todos os meses apenas daquela empresa. A Comissão de Valores Mobiliários determinou no ano passado, seguindo uma decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região que às companhias de capital aberto no Brasil devem divulgar as remunerações máximas, médias e mínimas de suas diretorias e conselhos administrativos/fiscais. Estes são os valores dos executivos mais bem pagos de algumas companhias em 2017:
Tabela produzida pelo jornal da classe dominante Folha de São Paulo
Estes são os dados de apenas o mais bem pago de cada companhia. Imaginem o montante pago ao conjunto de diretores e conselheiros das grandes empresas. Geralmente, eles são também proprietários de capital o que pode aumentar ainda muito os valores que recebem.
Mas, fiquemos com essas informações por enquanto. O executivo mais bem pago do Itaú recebeu, em 2017, R$ 40.918.000,00 no ano, o que dividido por 12 meses equivale a R$ 3.409.933,33. Considerando que o salário mínimo em 2017 era de R$937,00, este diretor do Itaú recebeu aproximadamente 3639 salários mínimos por mês. No ano isto seria 43.639 salários mínimos.
Já o executivo da Vale mais bem pago recebeu por mês em 2017, R$ 1.587.180,71. Foram cerca de 1694 salários mínimos por mês, e um montante de 20.339 salários mínimos naquele ano. Isto mesmo, a Vale, a empresa que cometeu junto a Samarco o bárbaro crime de Mariana-MG em 2015 e neste ano matou cerca de 300 trabalhadores com o rompimento da barragem de Brumadinho-MG.
Estes senhores não dependem da previdência pública e solidária. Enquanto estiverem livres para se apropriar da riqueza produzida pelos trabalhadores não precisarão se preocupar com sua velhice ou das suas famílias.
Esta desigualdade, entre os grandes proprietários de capital e os trabalhadores que a propaganda da reforma esconde. Ela que produz o abismo em que vivemos. E que a reforma da previdência só vai tornar mais fundo.
Sentido da Reforma: a produção da catástrofe social
Este conjunto de mentiras estão à serviço de ocultar o sentido da reforma: a disponibilização desta poupança solidária dos trabalhadores, o conjunto de recursos de ambos os regimes da previdência pública para o capital. Por isso, a insistência de Guedes e Bolsonaro no modelo de capitalização.
Tornar a previdência pública um meio de capitalização é o cerne da reforma. Com ela tem fim o que conhecemos por previdência pública, social, solidária. Ela é o meio de dispor a riqueza produzida pela classe trabalhadora, que estava colocada na previdência como fundo de vida de nossa classe, em meios de reprodução do capital. Ou seja, de que a burguesia se aproprie de ainda mais riquezas para as colocar sobre o imperativo do seu lucro.
Por isso a reforma além de propor um “novo modelo”, a capitalização, precisa desmontar os regimes públicos. E tornar para os trabalhadores que permanecerem no regime público um fardo acessar sua aposentadoria, pensões e outros direitos – com o estabelecimento de idade mínima, aumento do tempo de contribuição, aumentando as alíquotas, entre outras medidas. Por este motivo também propõe a retirada da previdência da constituição, fazendo com que mudanças nas regras sejam mais facilmente aprovadas no legislativo – afinal, o capital não pode esperar e é no tempo dele que a nossa riqueza terá que correr.
É por este motivo que o conjunto do empresariado interno e internacional espera tanto esta reforma. O próprio anúncio constantemente que faz Paulo Guedes da expectativa de “economia” de R$1 trilhão e 600 bilhões em 10 anos com a PEC, indica de outro modo o volume de recursos (e que tende a ser ainda maior) que pode ser destinado ao capital com a reforma. É um meio de dizer que as massas de valor disponibilizadas aos bancos e fundos de investimento serão vultuosas.
Penso que isto pode se dar por ao menos três modos: pela capitalização diretamente, ou seja com uma massa enorme de trabalhadores dispondo uma parcela de seus salários, em contas individualizadas e de modo privado; pela transferência de recursos do orçamento da União para a iniciativa privada, principalmente pela via da dívida pública; e por um endurecimento ainda mais brutal das condições de vida da classe trabalhadora, com provável redução dos salários.
Leia também a entrevista: A classe trabalhadora sairá mais empobrecida se não derrotar a Contrarreforma da Previdência, afirma Sara Granemann
Sobre o segundo ponto lembremos rapidamente: a Emenda Constitucional nº95/2016, conhecida como emenda do teto dos gastos ou no movimento dos trabalhadores como emenda do fim do mundo, congelou as despesas primárias da União por 20 anos nos valores do exercício orçamentário de 2017 corrigidos pela inflação. Isto significa que a alocação de recursos que seriam “economizados” com a reforma estão limitados por este teto – que note-se não incide sobre a dívida pública. Ou seja, os recursos que o Estado deixar de destinar a seguridade social com a reforma poderá ser disposta ao capital pela via dívida ou outras – como programas de investimento.
O capital ainda se beneficia com essa reforma por um terceiro modo. A reforma tende a endurecer as condições de vida da classe trabalhadora na medida em que dificulta o acesso a aposentadoria e a outros direitos. Com isto, tende a empurrar mais trabalhadores para o mercado, que em condições precárias de vida e concorrendo com dezenas de milhões, inclina-os a aceitar relações de trabalho e salários ainda mais rebaixados. Ou seja, tornando a força de trabalho brasileira ainda mais barata para o empresariado. Não esqueçamos que vige ainda a reforma trabalhista de Temer (Lei 13467/2017) que quebrou com um conjunto de direitos trabalhistas.
Somos hoje 13 milhões de desempregados, num país no qual aproximadamente 70% da população que aufere renda, recebe até 2 salários mínimos (nos valores de 2017, o que equivaleria a R$1.874,00). Isto ilustra que tornar ainda mais dura a vida dos trabalhadores brasileiros não pode ser outra coisa que um desastre. E este governo, através de seu general vice-presidente, Hamilton Mourão, em discurso na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) tem a cara de pau de dizer que o salário mínimo no Brasil não é mínimo.
Esta reforma é o eixo de uma grande catástrofe social. Em nome dos lucros dos capitais internos e internacionais, a destruição das condições de vida da classe trabalhadora. Este é o projeto deste governo.
Não à toa a reforma da previdência é comemorada e reivindicada por diferentes associações da burguesia. Por exemplo, ela tem um papel importante na agenda da Associação Brasileira das Entidades do Mercado Financeiro e de Capitais (ANBIMA), e da Bolsa de Valores (B3), para a expansão do mercado de capitais no Brasil. Eles afirmam que a reforma é indispensável para o “ajuste fiscal” e que o mercado pode contribuir para expansão da previdência privada.
Eles citam ainda a experiência chilena como modelo – a reforma baseada no modelo de capitalização foi implantada durante a ditadura de Pinochet e tem produzido o empobrecimento dos idosos de nossos irmãos chilenos.
O projeto de catástrofe do capital e deste governo é dispor o conjunto da riqueza produzida pelos trabalhadores deste país para a burguesia. Foi disto que tratou Mourão na FIESP. Seu discurso é explícito: abertura da economia ao capital internacional, privatizações dos ativos do Estado, reforma da previdência e continuidade e manutenção da reforma trabalhista, ou seja arrocho sobre a classe trabalhadora, e reforma tributária – ou seja, aliviar ainda mais os impostos para os empresários.
Você pode substituir a reforma da previdência por…
E se não for em direção a catástrofe de Bolsonaro e do Capital, qual a saída para a crise? Este é um debate central para nossa classe hoje. Não podemos negar que vivemos em uma situação duríssima e precisamos formular nossa própria saída.
E se ela não tem a direção do desastre de Guedes e Bolsonaro, tampouco pode significar um retorno há algo que nunca esteve lá. Não nos enganemos, a reforma da previdência é o aprofundamento gravíssimo de medidas tomadas em governos anteriores como as reformas previdenciárias realizadas nos governos de Fernando Henrique e Luiz Inácio Lula da Silva. Este governos a seus próprios modos também cumpriram um papel na reprodução do capitalismo dependente brasileiro. E é o capital que precisamos combater – afinal, é a serviço dele que Bolsonaro, Guedes, Mourão e sua turma governam.
Nenhuma saída passa por esta reforma. Ela precisa ser derrotada em sua integralidade. Não há pontos negociáveis, a PEC n º6/2019 não apresenta nada de positivo.
Mas, nós só a derrotaremos na medida que impormos outras perdas a lógica de disposição da riqueza pública, produzida por nossa classe, ao sabor do empresariado. Trata-se de colocar aquilo os trabalhadores do Brasil produzem à serviço da classe trabalhadora.
Em primeiro lugar: combater o sistema da dívida. Realizar uma auditoria, para conhecermos todos os detalhes sobre quem se beneficia desse sistema. Mas, também suspender seu pagamento, confiscar o patrimônio daquelas empresas e empresários que se locupletaram da formação de dívida sobre dívida, das taxas de juros elevadas, das dívidas odiosas, dentre outros meios de transferência de riqueza para apropriação privada do capital.
Outra medida é estatizar todos os setores estratégicos da economia. Principalmente, reestatizar a Vale (inclusive fazendo que todos aqueles que se beneficiaram por seus crimes paguem) e a mineração, o sistema energético, petrolífero, os bancos, o setor de telecomunicações, portos, aeroportos, rodovias, ferrovias, educação. Bem como aqueles que formaram suas fortunas com programas de transferência de recursos públicos e endividamento da população – como foram as instituições de educação superior privadas. Colocando estas empresas sob o controle dos trabalhadores.
Do ponto de vista da arrecadação de recursos do Estado, pesar sobre a propriedade privada do capital. Não apenas com imposto sobre grandes fortunas, e IPVA sobre lanchas e helicópteros, mas principalmente em impostos sobre a remuneração de lucros e dividendos e remessas de lucros ao exterior. É inadmissível que o capital siga livre para se apropriar da riqueza, enquanto os trabalhadores que a produzem ainda arquem com uma estrutura altamente regressiva de tributação.
Com isto desatamos os primeiros nós e começamos a evitar a catástrofe que pesará, como todas, sobre a classe trabalhadora. A burguesia que pague pela crise produziu.
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