Vidas docentes importam!
Arte: Cláudio Ribeiro; Montagem sobre a obra “A Incredulidade de São Tomé” (1601) de Caravaggio.
O terraplanismo, etapa superior do negacionismo científico, ou a expressão do senso comum do anti-intelectualismo[1], ganha contornos bastante violentos ao se tornar uma ação que, em nome de um questionamento ao status quo, reforça-o; ou em nome de uma reação à opressão, oprime; ou ainda em nome de uma suposta promoção do dissenso impõe, pela força, um consenso.
Sua base de operação é uma espécie de curto-circuito entre um certo positivismo, que estabelece a razão como sinônimo de verdade, e a religião, tida aqui como o reino do incontestável. Mas, ao mesmo tempo, não se trata de fé pura – uma crença sem comprovação necessária; e tampouco de ciência – que tem a comprovação como sua crença. O terraplanismo atua em um limiar que se situa na devoção de algo que, apesar de não demandar comprovação no campo da realidade, precisa demonstrar sua existência enquanto ideia. Seu conteúdo pode ser irreal desde que sua forma esteja presente, uma espécie de adoração pelo anunciado, uma crença no atestado, na certificação. Uma tautologia dos tolos. Não interessa se o Santo fez um milagre, aliás, não interessa o milagre, mas apenas o santo, ou o messias. Trata-se de uma fé oca apoiada em um pseudo-cientificismo que tem como teoremas, pelo óbvio, as notícias falsas espalhadas em massa pelas redes sociais: seu lugar de culto.
Mas essa casta não surge do nada. Não se trata de movimento de ruptura plena com a ciência, como muitas vezes parece. Dificilmente este fenômeno teria tanta adesão se não houvesse antecedentes que lhe preparassem o enraizamento social. Terraplanistas agem como um São Tomé de olhos fechados: não acreditam no que não vêem; dito de outra forma, não acreditam porque se negam a enxergar. Mas existe uma tradição acadêmica, reforçada cotidianamente há décadas, que age de modo similar. É como se os terraplanistas se reconhecessem do outro lado do espelho de Alice encarando aqueles que, de forma semelhante, enxergam apenas aquilo em que desejam acreditar. Mas não é pelas mãos de Alice que as coisas se explicam melhor. Um retrato como o de Dorian Grey é mais adequado, onde a pintura monstruosa do terraplanismo revela o modelo desejado e admirado por tantos: o pós-modernismo.
Não pode ser diminuída a relação entre uma postura teórica que se apresenta com um verniz crítico que oculta sua finalidade de aperfeiçoamento do próprio capitalismo, e uma ação política que se coloca como questionadora da ordem vigente para ampliar as desigualdades e opressões desta mesma ordem, reforçando suas conquistas conservadoras e concentradoras de capital.
Em comum entre o pós-modernismo e o terraplanismo, uma performance da crítica que, em sua essência, reforça as coreografias que já eram dançadas. Em comum, também, a sua adesão ao modo de produção capitalista, inclusive, no seu fator ideológico de ocultação das finalidades, evitando, assim, o reconhecimento das contradições que produzem.
Há ainda um último elemento de comparação. Os pós-modernos nunca revelam o que são, isto é, está na sua própria autodenominação uma negação daquilo que, de fato, significam, escondendo-se na diluição “pós”, uma espécie de vir-a-ser permanente, uma formulação que surge como inovação contínua do mercado de consumo teórico, e, como toda mercadoria, oculta o que de fato é. Apesar de significar uma crítica para o aprofundamento do sistema, é apresentada apenas como crítica, como ruptura. Do mesmo modo, os neofascistas, que são praticantes do terraplanismo, estão cada vez em maior número, mas ocultos. Não se trata de uma vergonha arrependida da movimentação original do bolsonarismo escancarado, esta ocultação não é um recuo de quem sempre o apoiou, mas um avanço, um crescimento que opera em uma política de cinismo, pois os neofascistas, como bons pós-modernos, mostram-se como ruptura do bolsonarismo, mas são um aprofundamento do regime[2] que galga a passos mais ou menos lentos, sempre na direção de seu fortalecimento. O modus operandi do terraplanismo está ganhando corações e mentes e, para além do culto ao Messias, prepara terreno para um regime mais sofisticado da ordem conservadora.
Toda esta contraditória trajetória da negação deliberada da realidade em nome da manutenção ordem conservadora tem uma tradição de comportamento que se orienta a partir de ataques feitos à classe trabalhadora, às suas organizações, e à sua própria existência. Aparentemente, uma de suas expressões contemporâneas ganhou força durante a pandemia a partir de transformações técnicas que, como consequência, tem construído um clima permissivo de ataque a uma categoria de profissionais essencial para a classe trabalhadora, a categoria docente.
Pós-modernismo e o ataque à classe trabalhadora: relações entre tecnoesfera e psicoesfera
Tecnoesfera e psicoesfera são redutíveis uma à outra. O meio geográfico atual, graças ao seu conteúdo em técnica e ciência, condiciona os novos comportamentos humanos, e estes, por sua vez, aceleram a necessidade da utilização de recursos técnicos, que constituem a base operacional de novos automatismos sociais. Tecnoesfera e psicoesfera são os dois pilares com os quais o meio técnico-científico introduz a racionalidade, a irracionalidade e a contra-racionalidade, no próprio conteúdo do território.” (SANTOS, 2009, p.256)
Se quisermos fugir de um idealismo inócuo, precisamos enfrentar as mudanças técnicas como elemento determinante da realidade. Dentro deste contexto, um dos maiores ataques recentes que a classe trabalhadora recebeu aconteceu no último quartel do século XX, quando todo um rearranjo produtivo se processou em torno do toyotismo, com a implementação de sistemas de gestão de estoques just-in-time, o aprofundamento da financeirização digital pela conexão eletrônica das bolsas de valores, o barateamento dos processos construtivos das plantas industriais, enfim, toda a parafernália que compõe aquilo que podemos chamar aqui de acumulação flexível (Harvey, 2000).
Estas mudanças da tecnoesfera nada mais são do que um procedimento necessário do modo de produção capitalista para superar suas crises na busca incessante de extração, ampliação e concentração de mais-valor. Entretanto as consequências, que são também complementações, destas alterações se localizaram de forma potente na psicoesfera.
Não é algo banal, mas indica um procedimento que será repetido em vários momentos como o atual. A nova dimensão técnica na década de 1970 residia, dentre outras coisas, na capacidade de deslocamento, e pulverização, espacial de cadeias produtivas inteiras, isto é, o próprio processo de barateamento da produção das plantas industriais facilitou a fragmentação das grandes indústrias, ampliando o seu alcance e potencializando o exército industrial de reserva para todo o globo. Houve uma diáspora voluntária de fábricas que migraram de centros hegemônicos (notadamente na Europa) para nações cada vez mais dependentes da América Latina, para as antigas colônias, e para aquelas nações que se tornaram cada vez mais competitivas como Índia e China.
O deslocamento maciço das fábricas e, sobretudo, da sua tradicional força de trabalho para espaços não europeus será anunciado como uma suposta desindustrialização acompanhada de um também suposto desaparecimento da classe trabalhadora. Enxergando apenas o que desejavam, sentenciaram de morte a classe trabalhadora e a luta de classes num duplo erro teórico e histórico-geográfico. O erro teórico reside na leitura estanque do que vem a ser a classe, confundido a parte pelo todo e acreditando que a forma fábrica é a única onde o trabalho se torna substância do valor, portanto, onde não há fábricas, não haveria trabalho como delimitador de classes e, portanto, estaria abolida a sua luta: a pax europeia neoliberal estava criada.
O segundo erro está assentado na crença de que o espaço europeu é a totalidade do mundo, e de que a mudança do meio-técnico-científico ali ocorrida seria compreendida, de forma cínica ou equivocada, como a mudança total do espaço da produção.
Mas esta manobra no âmbito da psicoesfera será fatal. O eurocentrismo agindo de forma plena levará a distorção teórica para todo lugar, produzindo inúmeras formas de negacionismo. O resto é (o fim da) história, o pós-modernismo ganhará cada vez mais espaço, acompanhando a tecnoesfera em mutação, a filosofia de Karl Popper e de seus amigos liberais da Sociedade Mont Pèlerin serão levados a sério e a luta contra o desaparecimento epistemológico da classe trabalhadora se tornará uma batalha constante. Não é necessário dizer que esta combinação da tecnoesfera e psicoesfera, isto é, a ampliação de formas de extração de mais-valor traduzidas como um enfraquecimento simbólico, representacional e mesmo ontológico da classe trabalhadora desembocará no paulatino avanço do neoliberalismo enquanto sua expressão política.
Este breve panorama da conhecida história é retomado aqui, sobretudo, por uma questão pedagógica que reside na compreensão da trajetória do nascimento do pós-modernismo. Existe uma movimentação perversa que se repete, tornando-se cada mais vez mais veloz e que precisa ser compreendida. Trata-se de uma movimentação entre tecnoesfera e psicoesfera que, combinando determinações específicas de cada uma, consegue anunciar o desaparecimento de algo. Este desaparecimento significa, de fato, a reificação de uma ocultação apenas aparente que é reforçada pelo modo de pensar que abandonou a realidade como parâmetro, uma típica formulação soft pós-moderna que, como sempre, doura a pílula do progresso naturalizando-o enquanto consumo, retirando a produção de cena. Mas existe uma consequência hard, que será realizada pelo extermínio, nada simbólico, dos “desaparecidos” pelos neofascistas que se sentem autorizados de exterminar aquelas e aqueles que não são mais percebidos como existentes, é a realização ex post da profecia pós-moderna.
O caso do assassinato deliberado de docentes perpetrado pela sociedade brasileira pode ilustrar bem esta relação.
A combinação pós-moderna e neofascista de assassinato social: o caso das mortes docentes no Brasil covidiano
O Brasil está no pior momento da pandemia em seu território até agora[3]. Com a média de mortes ultrapassando 2000 casos por dia, sem vacinação em massa, sem auxílio emergencial que garanta distanciamento social ou lockdowns eficazes, com recordes de desemprego, tombo do PIB, mais uma troca de ministro da Saúde, o grupo político no poder completou um projeto político que foi eficaz em alçar o país ao mais alto posto de transmissão da Covid. De pária internacional, o Brasil governado por Bolsonaro se torna uma ameaça biológica que poderá existir em permanente quarentena.
Como parte integrante desta conjuntura, uma triste constatação: o Estado brasileiro elevou a tradicional guerra à educação a um patamar que inclui a eliminação deliberada das trabalhadoras e trabalhadores da área. E boa parte da sociedade parece não se importar com isto.
A primeira pergunta que se faz, mas que nunca consegue ser respondida de forma fácil é: por quê? Afinal, apesar do país nunca ter respeitado estas profissionais (docentes são, sobretudo, mulheres) de forma efetiva, isto é, incluindo o reconhecimento material de seu trabalho, sempre houve um relacionamento cordial com a categoria que, se por um lado ocultava os conflitos, na aparência expressava formas declaradas, ainda que cínicas, de reconhecimento. Docentes sempre estiveram apanhando nos espaços públicos de manifestação, mas sempre foram homenageadas nas falas públicas. Por mais que esta forma de tratamento fosse inadequada, perversa e massacrante, ela reconhecia a existência da categoria como algo, simbolicamente, importante. O que mudou?
De modo mais preciso, a docência sofre diversos processos de transformação ao longo de sua história recente no país, verdadeiras faces de sua tragédia ao longo do tempo. Evangelista (2016) apresenta um panorama preciso, apontando uma trajetória complexa na qual a docência, ao ser reconvertida para garantir formação para o mercado, será também absorvida pela própria lógica do trabalho alienado. A partir deste momento, ou desta condição, passará a ser considerada permanentemente desqualificada, incompetente para garantir sua tarefa em um movimento que a tornará empreendedora para recuperar sua capacidade de trabalho. Como qualquer categoria, nunca será declarada competente e, cada vez mais, será responsabilizada, de forma individual e enquanto categoria, pelas falhas educacionais de um sistema massacrado e sem investimento. Todo este processo indica um movimento contínuo de afastamento da docência de suas tarefas essenciais, a expropriação de saberes da docência é um esvaziamento violento das relações sociais de ensino e aprendizagem que ocupam a docência com atividades cada vez mais mercantis e, como consequência, cada vez menos humanas. O fim deste processo de desumanização será a possibilidade de tornar a docência “eadeizada”.
Mas, por si só, esta trajetória não explica as razões para a decisão de execução de docentes, mas aponta um caminho incontornável para seu entendimento. A mercantilização do ensino retira da categoria docente, cada vez mais, seu caráter de qualidade, transformando a categoria em algo quantificável, abstrato e distante.
Esta condição encontra um caldo político recente no qual o desprezo pela docência representa uma das faces mais escancaradas do terraplanismo. Professoras e professores são as bruxas a serem queimadas pelos crentes das notícias falsas. As campanhas sobre o movimento Escola Sem Partido, por exemplo, que tratavam a docência de forma idiotizada, marcaram um momento quando os ataques à categoria se tornaram mais explícitos. Estes ataques aprofundavam uma desconfiança familiar brasileira pela esfera pública, demonizando a docência que seria capaz de produzir conhecimento coletivo que colocaria em xeque a paz dos lares, dos bares, dos cofres e das casernas. Mas estes ataques se situavam na esfera de reconhecimento da existência docente, na direção de mais uma reconversão, mas não de seu extermínio.
Havia um impedimento para a decretação do sacrifício da categoria, a psicoesfera ainda não estava calibrada segundo as determinações do neofascismo. Foi na ordem técnica que isto ocorreu. E foi uma questão, como sempre ocorre no capitalismo, e no fascismo, da quantidade interferir na qualidade das coisas. Como foi afirmado por Milton Santos, é importante combinar a tecnoesfera com a psicoesfera para perceber a movimentação de seus próprios avanços, e foi a resposta técnica, imposta pelo empresariado ao setor da educação diante da pandemia, que possibilitou a aceitação da posterior política de execução.
Ora, a pandemia, como já foi exaustivamente demonstrado, acelerou as condições materiais para a disseminação ampla da eadização em todos os segmentos da educação. O desenvolvimento técnico do Ensino Remoto foi acelerado em diversos âmbitos simultâneos, configurando praticamente uma mudança definitiva na composição orgânica do setor do capital que lida com a educação. Eis que a trajetória soft do desaparecimento poderá operar para, em seguida, tornar-se execução. O modus operandi da psicoesfera pós-moderna entrará em ação.
O desaparecimento concreto de docentes dos espaços de ensino, convertidas em avatares digitais, retiraram a última centelha de humanidade resistente que habitava as relações de ensino e aprendizagem: a presença! O imediatismo dos contatos impuseram uma outra condição deletéria, a economia dos tempos de troca entre docentes e estudantes. Cada vez mais pulverizados, docentes não conhecem suas turmas, os estudantes se tornam também elementos efêmeros, e o contato diário que humanizava as relações e que produzia a parte menos certificada e metrificada de nosso trabalho, mas, exatamente por isso, a mais humana e importante, desaparece. A docência foi alteada a um equivalente formal, ao reino absoluto da troca, à descartabilidade digital e, repetindo o processo de desaparecimento da classe trabalhadora das construções teóricas dos pós-modernos, ela também desaparecerá de todos os espaços discursivos. Impedidas de ocupar as ruas e praças pela pandemia, a docência terá sua voz cassada como sempre, mas, neste momento, ela perderá sua posição dentro da própria concepção geral de educação: todos os olhos, falas e atenções estão voltados para a figura do estudante, ou melhor, para a figura da “criança” – também destituída de seu lugar educacional – e que, obviamente, será tratada como consumidor.
Portanto, a psicoesfera organizou-se, a partir das mudanças técnicas, de modo a naturalizar a virtualidade docente. O ensino na era da reprodutibilidade digital consagra o valor de exposição de forma exemplar, a ponto de instituições de ensino utilizarem de aulas de docentes mesmo após sua morte[4]. A partir desta consolidação ideológica, quando o senso comum reconhece o Ensino Remoto como educação, uma política de sacrifício pode ser anunciada, organizada e executada com aceitação social forte o suficiente para apoiar decisões evidentemente equivocadas e profundamente cruéis de governos de todas as esferas e de setores que se identificam como progressistas (e o são), mas não se reconhecem como bolsonaristas.
O extermínio da docência talvez seja um dos sintomas mais fortes da vitória do neofascismo que pode rejeitar Bolsonaro e permanecer, de forma mais madura, como um regime político.
É importante delimitar como tem operado a política do extermínio. Em uma ponta, argumentos terraplanistas partem de governos e prefeituras (autorizados pelo silêncio do MEC) que, de repente, começam a se preocupar com a condição psicológica das crianças de sua cidade, ou descobrem que a escola é ponto de alimentação de boa parte da pobreza brasileira. Apoiados nestas determinações que, obviamente, não remetem a nenhuma crítica ao tratamento historicamente dado às mesmas crianças e a todo o setor escolar, surgem as ordenações que desconsideram a existência docente (e de toda comunidade escolar).
As ordens, ao invés de controlar a pandemia seriamente, encurtando o tempo necessário de confinamento “de crianças”, ou de organizar a distribuição de alimentos, evitando a fome, determinam a abertura das escolas para o ensino presencial – mas com restrições. Estas restrições se apoiam em uma combinação de impossibilidades, repetindo a negação da realidade: de um lado, se forem cumpridas, a criança retornará a uma escola fria, sem encontrar com seus colegas de fato, sem alegria, sem brincadeira, ou seja, um simulacro de quartel que, provavelmente, diante da expectativa de sua experiência anterior de escola, não deverá ser exatamente uma experiência boa para seu estado psicológico abalado. Por outro lado, o que é mais comum, as restrições são impossíveis de serem seguidas, as crianças se encontrarão como antes, em salas cheias, festejando, celebrando, estudando e, eventualmente, se contaminando e transmitindo a doença para as pessoas em sua volta na escola e em casa.
Importante destacar que o retorno presencial não será reivindicado, de forma principal, em nome do retorno de uma relação de ensino-aprendizagem, já que esta estaria garantida pelo Ensino Remoto. A comunidade escolar, como pode ser percebido, deixa de estar relacionada à educação.
Na outra ponta estão docentes, merendeiras, porteiros, assistentes educacionais, faxineiras, enfim, a classe trabalhadora que, ao ser obrigada a voltar ao trabalho presencial, além de se deslocar pelo transporte público já sucateado, piorando a situação de quem lá estava sofrendo com o descaso e com o contágio, passa a habitar uma escola na qual, principalmente, os estudantes, deixam a ser a alegria que sempre foram (com todas as suas contradições) para se tornarem uma ameaça.
A situação chega a momentos escandalosos de decisões públicas antidocentes como a recente promulgação do Estado do Rio de Janeiro de um decreto (47.518/2021, de 12 de março) que alterava a resolução que instituía protocolos e orientações complementares para atendimento escolar no período de pandemia (Resolução Conjunta SEEDUC/SES Nº 1536 DE 25/01/2021). As alterações foram feitas quando a cidade atingiu a “bandeira vermelha” em relação à pandemia, estágio que, segundo a resolução original, levaria ao fechamento das escolas; assim, segundo o novo decreto, apesar das evidências do contágio extremo, as escolas irão funcionar como se estivéssemos na “bandeira laranja”, fase anterior em que os índices eram menores (mas que já justificariam, inclusive, o fechamento destes estabelecimentos)[5].
O resultado destas políticas pode ser concretizado de várias formas, pois são inúmeras as notícias de docentes (e demais trabalhadoras e trabalhadores da comunidade escolar) contagiadas ou mortas em todo o país, quase todos os dias, em diferentes cidades e estados, sejam em escolas públicas ou privadas. Ao mesmo tempo, a indiferença institucional também é perceptível, isto é, a disseminação da ideia de que, apesar das mortes, a escola precisa seguir sua “missão”. Esta missão se torna, cada vez mais, matar mais docentes, pois não pode ser assumida a existência de alguma tarefa educativa simultânea ao convívio com a morte de trabalhadoras e trabalhadores, a não ser, é claro, a educação do capital.
Levantamento feito pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp)[6], a partir de denúncias espontâneas feitas por pessoas sindicalizadas, indica que já existem, pelo menos, 2.294 casos de Covid-19 em pessoas que trabalharam presencialmente nas escolas públicas do estado e, dentre estes, 48 óbitos[7].
Obviamente que neofascistas estão fazendo as contas da proporção de infecção e morte , indicando que é percentualmente baixa, quantificando a eficácia do retorno às aulas. Ao mesmo tempo, questionarm a veracidade do fato ou a relação direta entre o retorno ao trabalho e o contágio destas pessoas. Certamente, não se preocupam com o abalo psicológico de estudantes que podem se sentir culpados por carregarem a dúvida de terem transmitido o vírus a docentes que foram a óbito, até porque, diante da visão social de mundo forjada na psicoesfera do Brasil covidiano, docentes são mesmo descartáveis, ou melhor, deletáveis, e, portanto, como em um novo jogo de videogame, a morte de um dos participantes não geraria traumas em uma juventude desumanizada.
Mas, ao contrário do que acreditam os pós-modernos, e do que apregoam os neofascistas, a classe trabalhadora existe. E reage! Greves docentes têm sido retomadas em nome da defesa da vida em diferentes estados. Ao mesmo tempo, a pressão contra as trabalhadoras e os trabalhadores que se levantam também cresce. O atual contexto de flexibilização quase total das leis trabalhistas no setor privado e ataques constantes a servidoras e servidores públicos através de seguidas contrarreformas, combinado com um desemprego recorde, não favorece a organização das lutas em condições normais, que dirá em uma pandemia sem controle.
Mas a indignação persiste, apesar do massacre digital do “trabalho remoto”. A tecnoesfera e a psicoesfera não são produtoras apenas da racionalidade hegemônica do capital, elas estão abertas à disputa por contra-racionalidades que precisam ser aprendidas, imaginadas e postas em prática com urgência, não vamos naturalizar que nos matem! Em pleno século XXI, existem docentes que são capazes de dar aula de pintura, poesia,música, filosofia e outras dessas coisas inúteis, lotando suas turmas para horror dos neofascistas. Cotidianamente, enfrentam a lógica do mundo produtivista em nome da humanização do mundo. Somos teimosos demais. Eles perderão!
REFERÊNCIAS
EVANGELISTA, Olinda. Faces da tragédia docente no Brasil. In.: XI SEMINARIO INTERNACIONAL DE LA RED ESTRADO – Movimientos Pedagógicos y Trabajo Docente en tiempos de estandarización, 2016. Disponível em: http://redeestrado.org/xi_seminario/pdfs/eixo3/68.pdf
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2000
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2009.
[1] Recomendo este excelente artigo de Henri Acselrad: https://diplomatique.org.br/espectros-do-anti-intelectualismo-tropical/
[2] Sobre a caracterização do governo Bolsonaro e o neofascismo, é imprescindível a leitura de “Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil”, de Marcelo Badaró Mattos.
[3] Recomendo a live de Átila Iamarino “À beira do colapso”: https://www.youtube.com/watch?v=9c8zYkJ8gBk
[4] https://www.otempo.com.br/mundo/universitario-descobre-que-tem-aulas-online-com-professor-morto-desde-2019-1.2443577
[5] Conferir nota conjunta dos sindicatos da educação do Rio: http://www.seperj.org.br/ver_noticia.php?cod_noticia=22431
[6] A Apeoesp sistematizou dados que podem ser encontrados em sua página. Trabalhamos com as informações acessadas em 18/03/2021. Disponível em\: http://www.apeoesp.org.br/publicacoes/educacao/casos-de-contaminacao-pelo-covid-19-na-rede-estadual-de-ensino/
[7] Recolhidos do site da Apeoesp, eis os nomes das pessoas mortas até agora . Não podemos nos reduzir a meros números:
ÓBITOS DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO E ESTUDANTES PELA COVID 19 NA REDE ESTADUAL DE ENSINO A PARTIR DE 26/1/2021 (ATIVIDADES E AULAS PRESENCIAS NA REDE ESTADUAL DE ENSINO)
- Maria Tereza Miguel Couto – professora na E.E. Ministro José de Moura Rezende – Caçapava
- Jorge Rogério Pequin – professor na E.E. Oswaldo Cattalano Tatuapé – São Paulo
- Maria Inês Silva Frozel – diretora da E.E. Caetano Lourenço de Camargo – Jaú
- Alcir dos Santos – professor – E.E. Valdomiro Silveira, em Cafelândia/SP e EE José Belmiro Rocha, em Guaimbê
- Eda Balle Pulpato – Diretora do CEEJA – Lins
- Rúbia Arlete Krause Cabral Generato – Diretora da Escola Estadual Cristina Fittipaldi – Santo André
- Marcelo Shiroma – Agente de organização escolar na Escola Estadual João Camargo – São Mateus – São Paulo
- Antônio César Pereira – professor – Escola Estadual Professor José Maria Perez Ferreira – Carapicuíba
- Deolinda Scotti – professora – Escola Estadual Dom José Maurício
- Antônio César Zanetti – professor – Escola Estadual Pirassununga e Escola Estadual Nossa Senhora de Loreto – Pirassununga
- Cinthia Aparecida – funcionária – Escola Estadual Cosme de Faria – Zona Leste – São Paulo
- Amauri Nicoletti – professor – Escola Estadual Padre Agnaldo Sebastião Vieira – Santo André
- Antônio César Pereira – professor – Escola Estadual José Maria Perez Ferreira – Carapicuíba
- Guilherme Augusto de Oliveira Rebello – coordenador – Escola Estadual José Geraldo Vieira – Osasco
- Luciani Andrade Serrão – professora – Escola Estadual Olga Cury – Santos
- Luciana Hansen – diretora – Escola Estadual Professora Ivony Camargo Salles – Itatiba
- Adriano Moraes– professor – Escola Estadual José Sérgio Pereira – Itapevi
- Ana Clara Macedo dos Santos – estudante – 8º ano – Escola Estadual Escritora Rachel de Queiróz – Campinas
- Eliana Ferreira Boni – professora – Escola Estadual Nello Lorenzon – São Paulo
- Regina Aparecida dos Santos Tomaz – vice-diretora – Escola Estadual Professora Luíza Rofsen – Araraquara
- Luiz Roberto Oliveira – professor – Escola Estadual Professor Marcos Guimarães – Bragança Paulista
- Rosane Maria Soeiro – Escola Estadual Almirante Visconde de Inhaúma – São Paulo
- Paulo Henrique Camargo – Escola Estadual Miguel Stéfano – Guarujá
- Rodrigo Andrade – professor – Escola Estadual Odair Pacheco Pedroso – Cotia
- Maria de Fátima Moura de Oliveira –caseira – Escola Estadual Florinda Cardoso – São Paulo
- Socorro Moreira – professora – Escola Estadual Francisco Mignone – São Paulo
- Helena Zanini – professora – Escola Estadual Maria Célia Falcone – Guarulhos
- Sebastião Alestieri – professor – Escola Estadual Helena Bonfá – Socorro
- Valéria de Jesus Vicenzi de Moraes– professora – Escola Estadual João Chammas – Pederneiras
- Rita de Cássia Tessari – professora – Escola Estadual Leopoldo José de Sant´Anna – São Vicente
- Valdomiro Casarotti Filho – professor – Escola Estadual Maria Natividade Antunes – Indiana
- Fernanda Silva – Escola Estadual Valdemar Galo – Suzano
- Rosilene da Silva Barroso – funcionária – Escola Estadual Antônio Pádua Paschoal de Godoy – Ribeirão Preto
- Daniel de Almeida Cavalcante – professor – Escola Estadual Professora Carmina Mendes – Guarulhos
- Lisbette Del Vecchio Carvalho – professora – Escola Estadual Luzia de Godoy – São Paulo
- Jadir Rodrigues Teixeira – professor – Escola Estadual Jeminiano David Muzel – Itapeva
- Márcio Araújo – professor – Escola Estadual Cícero Barcala Júnior – Carapicuíba.
- Silvia Letícia – professora – Escola Estadual Ignez Amélia – Itapevi
- Carla Prado – professora José Frederico Marques – São José dos Campos
- Professor Fernando – Escola Estadual Mário Manoel – Ferraz de Vasconcelos
- Sonia França – professora – Escola Estadual Diadema – Diadema
- Elaine Cristina Nascimento – funcionária – Diretoria de Ensino – Carapicuíba.
- Professor Wagner – Escola Estadual Neves Prado Monteiro – Santos
- Gabriel – estudante – 13 anos – Escola Estadual Galdino Lopes Chagas – São Paulo.
- Edison Arantes Rodrigues – diretor – Escola Eastadual João Teixeira Sampaio – Penápolis
- Glaucilene Batista dos Santos – professora – Escola Estadual Vera Lúcia Torres Rodrigues Affonso – Poá
- Marcelo Arevalo Perez – professor – Escola Estadual Maria Regina Demarchi Fanani – São Bernardo do Campo
- Regis Botelho – professor – Escola Estadual Fausto Cardoso Figueira de Mello – São Bernardo do Campo
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