Como princípio, podemos dizer que a gratuidade vem resistindo há décadas de ataques, em grande medida por conta dos setores organizados que ainda se mobilizam em sua defesa. Mas não dá para dizer que passou ilesa por essa ofensiva: fragilizado com o neoliberalismo, as tentativas de flexibilizar esse princípio (um dos mais claros e explícitos de todo o texto constitucional) vicejaram aos montes no âmbito das instituições de ensino superior, angariando apoios cada vez mais amplos.
O mais relevante desses ataques foi resultado de um malabarismo jurídico[1] para que se estabelecesse, por meio de decisão final do STF, uma interpretação para lá de controversa sobre o texto do Art. 206, inciso IV: após anos e anos de práticas irregulares de cobrança nas instituições estatais de ensino superior (sobretudo nas atividades de extensão e pós-graduação lato sensu), interpretou-se que a gratuidade só se aplicaria ao ensino dito regular, isto é, cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu[2] que conferem graus acadêmicos e não apenas certificação.
A decisão de 2017 do STF regularizou um sem número de cobranças já realizadas em grande parte das instituições estatais. Amparadas, nunca é demais lembrar, por amplo espectro de forças políticas, incluindo parte daquelas que ora se apresentam ‘assustadas’ com a Proposta de Emenda Constitucional n. 206/2019, que pretende inserir na Constituição a possibilidade cobrar mensalidades nos cursos de graduação das estatais. No contexto das reformas neoliberais, de incentivo crescente a práticas gerencialistas na educação superior, com restrições orçamentárias e forte acento privatista, a perspectiva de utilizar essas atividades como fonte de arrecadação adicional para as instituições – por certo, em favor de alguns nichos dentro delas – foi um dos motes para formar o que hoje é um verdadeiro mercado de atividades com caráter privado no interior dessas universidades.
A flexibilização do princípio de gratuidade não foi, portanto, produto de um mero e inesperado ataque conservador sobre as universidades, mas acima de tudo um ‘consenso’ cuja construção contou com forte cimentação de setores ditos progressistas.[3] Por contar com esse apoio cada vez maior no âmbito universitário e entre forças políticas diversas, nota-se que os argumentos em favor de alterações como a proposta pela PEC 206/2019, também se tornam muito parecidos, pouco se alterando ao longo do tempo[4].
Em períodos menos turbulentos, talvez fosse desnecessário dizer que esse tipo de artifício, que coloca as atividades de ensino, pesquisa e extensão em patamares diferenciados e submetidas a lógicas de gestão e financiamento distintas, é uma afronta direta a outros princípios caros às universidades: da indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão e de autonomia.[5]
Com muita generosidade, talvez se possa falar na ingenuidade política de muitos que acreditaram que, flexibilizando a gratuidade em algumas atividades, as demais estariam resguardadas – nas versões mais delirantes, até fortalecidas. O fato é que as porteiras do fim da gratuidade estão cada vez mais escancaradas e vão ganhando apelo na mesma medida em que se falsificam as suas intenções como as de uma (pretensa) justiça social.
No ponto em que já chegamos, barrar a proposição da PEC 206/2019 é necessário, porém insuficiente. É igualmente necessário combater as práticas de cobranças existentes e a lógica que as preside, de uma universidade pautada pelo gerencialismo, pelo crescente interesse privado, pela competição, entre tantas outras consequências nefastas que produzem sobre o caráter público do ensino superior mantido pelo Estado. Ocasião para rever, também, práticas como a de subsidiar vagas gratuitas no setor privado como se fossem um substituto de igual qualidade ao ensino superior oferecidos pelas instituições estatais.
[1] O amparo inicial para essa construção veio do Conselho Nacional de Educação.
[2] Vale aqui lembrar que, embora as resoluções que instituíram os chamados “mestrados profissionais” tenham previsto a sua “vocação para o autofinanciamento”, são cursos que, até mesmo na interpretação rebaixada e conservadora do STF, não podem ser cobrados nas instituições estatais.
[3] Sobre isso é importante ver a Carta assinada por diversas entidades científicas brasileiras em favor da decisão do STF. Ver: Carta aberta à sociedade brasileira: quando a universidade pública perde, a sociedade perde (07/04/2017) Disponível em: http://www.sbpcnet.org.br/site/arquivos/arquivo_691.pdf.
[4] Recomendaria observar, além da atual PEC 206, o texto de outras três proposições anteriores: PEC n. 217, de 11/12/2003, da deputada Selma Schons (PT-PR); PEC n. 395, de 09/04/2014, do deputado Alex Canziani (PTB/PR); PEC n. 366, de 05/10/2017, do deputado Andrés Sanchez (PT/SP). Mais sobre o assunto, ver: Fim da gratuidade do ensino superior: embates e convergências em torno de um princípio que se flexibilizou, disponível em: https://www.cedes.unicamp.br/dl/1jbjU%2AzA0_MDA_ba979_
[5] Sobre esse assunto, recomendo a leitura do texto Gratuidade do ensino superior em estabelecimentos oficiais: precisão e implicações, disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/hYM3ZGyQV7LPC9MfFsBMryb/?lang=pt
As opiniões expressas nas colunas são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.