Professora Associada do curso de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE)/UFF. Estuda, pesquisa e desenvolve projetos de extensão nas áreas de direito à cidade, favelas, movimentos sociais, educação popular e educação superior. Militante do movimento docente do ensino superior público.
Para qual universidade voltaremos após a pandemia?
17 de dezembro, 2021 Atualizado: 17:01
Este mês estou iniciando, à convite da equipe editorial do site Universidade à Esquerda, uma série de breves artigos sobre diferentes dimensões da Universidade pública brasileira. A ideia é trazer alguns elementos reflexivos, de forma mais direta e coloquial, para contribuir com os debates e reflexões em torno do projeto de educação superior pública que defendemos e queremos construir. Estão todos/as convidados/as a refletir e debater, mas principalmente à lutar!
Após quase dois anos de pandemia, para as universidades públicas brasileiras, cerca de 4 semestres letivos, nosso primeiro debate deve ser sobre a Universidade que encontraremos após a pandemia, em especial no processo de retorno presencial das atividades de ensino-pesquisa-extensão.
Certamente uma Universidade com orçamento ainda menor. Pois além dos sucessivos cortes de verbas, que já chegam a 40% só nos últimos 6 anos[1], também contamos com um orçamento que será impactado por uma inflação que corrói os salários, os orçamentos e as já precárias políticas de assistência estudantil. Ao considerarmos que em nosso país o litro da gasolina alcança a média de R$ 7,00 (sete reais), o botijão de gás de cozinha chega a custar R$ 130,00 (cento e trinta reais), a cartela de ovos (proteína mais barata da alimentação tradicional brasileira) chega a R$15,00 (quinze reais), e a inflação beira os 9%, a sustentabilidade institucional e a dos estudantes de origem popular beiram o colapso.
Mas para além do desinvestimento e da inflação usurpadora, voltaremos para uma universidade em que se aceleram processos de implementação do projeto do capital para a educação. Antigos princípios apontados pelo Banco Mundial para uma educação aligeirada e terciária, como a educação à distância e mediada por tecnologia, aceleraram-se no período da pandemia. A destruição da educação disfarçada de reconfiguração, que levaria mais algumas décadas e constantemente estaria se chocando com as resistências do movimento docente, através do Sindicato Nacional (ANDES-SN) e suas sessões sindicais, foi introduzido de forma veloz e desestruturante para a educação presencial.
A realidade imposta pela pandemia, apelidada de ensino remoto emergencial (ERE), serviu como um grande laboratório para a educação mediada pela tecnologia, e encontra respaldo em elementos desestruturantes da educação presencial, que já haviam sido aprovados, como os 40% do ensino à distância nos cursos presenciais, previsto na portaria nº 1.428, a flexibilização e diversificação da captação de recursos para a Universidade, que antes da pandemia já passavam pelas fundações de direito privado das instituições, pelas parcerias público privadas (PPP), pela seção de espaços públicos da universidade para empresas (do qual é exemplo o parque tecnológico da UFRJ no campus do Fundão), pela proliferação de empresas júnior, pelos inúmeros cursos que vendem seus serviços sob a alcunha de autofinanciados.
Uma série de burlas ao princípio da educação pública, gratuita e estatal, que já haviam sido introduzidos na Constituição Federal (CF) de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 e nos Planos Nacionais de Educação (PNE), ganham dimensões devastadoras a partir do laboratório da pandemia.
Junto a isso, voltaremos para instituições ainda menos democráticas, em que se tornou prática, por parte do governo federal, a nomeação de gestores interventores desrespeitando a consulta pública para o processo de escolha dos dirigentes e em que se acelerou o processo de esvaziamento dos Conselhos Universitários, que deveriam ser a instância máxima das instituições. Burlou-se toda e qualquer perspectiva de participação da comunidade acadêmica, com a aprovação de resoluções que normatizaram o ERE e agora buscam estabelecer as regras para o retorno presencial, sem dialogo, consulta e debate com docentes, discentes e técnicos-administrativos.
Em março de 2020, primeiro mês da pandemia do novo coronavírus, que no Brasil, segundo os dados possíveis de serem coletados, já matou mais de 615 mil pessoas, muitas universidades realizaram a imediata transposição do ensino presencial para o remoto. Sem diálogo com a comunidade acadêmica, sem estruturação para o trabalho remoto e sem preparo técnico, teve início uma escalada para o chamado “novo normal”. Um “novo normal” que, a rigor, não teve nada de muito novo, mas sim o requentamento de práticas já planejadas, estruturadas e, algumas, até regulamentadas, que passaram a ser impostas como única alternativa de realização das ações das universidades, seja no ensino, na pesquisa ou na extensão. O ensino mediado por tecnologias não é uma novidade a pelo menos três décadas. Sua opção, como forma de certificar em larga escala, rebaixar a qualidade da educação, esvaziar o processo de ensino-aprendizado crítico, ou seja, de montar a propalada educação terciária, como designada pelo Banco Mundial, serve como método de economia para o poder público, e para sua desresponsabilização, fortalecendo o projeto da educação mercadoria.
Mas é importante salientar que voltaremos para uma Universidade com maior adesão ao projeto do capital, por parte dos governos, gestores e parte da comunidade acadêmica. Por diferentes motivos, de processos de adoecimentos à desesperança nos coletivos e nas interações, uma parte da comunidade acadêmica, sejam docentes, discentes e técnico-administrativos, aderiu ao trabalho e ensino remoto de forma pouco crítica. Para alguns estudantes, diante inclusive de suas condições materiais, o ERE foi uma possibilidade de acelerar a formação e diminuir custos, sem necessariamente que isso considere a qualidade dos processos de ensino-aprendizado. Para uma parte dos docentes que trabalham em cidades distantes de seus locais de origem ou de sua residência, e também para aqueles e aquelas que desconsideram o caráter dialógico da educação, os processos de ensino-aprendizagem mediados por tecnologias, não são uma questão.
Possivelmente voltaremos para uma universidade mais elitizada, resultado da evasão e do não retorno de parte dos estudantes, aqueles para os quais a luta central é a sobrevivência e, por isso, precisam trabalhar e/ou não podem contar com o apoio financeiro de suas famílias, empobrecidas pelo agravamento da crise econômica. Para esses devemos exigir política real de assistência estudantil, como única forma de diminuir a evasão. Mas também com uma universidade mais elitizada, devido ao tratamento do MEC com o ENEM e a educação pública básica. Segundo as informações, a edição do exame foi a menor desde 2005, e em relação a 2014 (ano de maior inscrição), sofreu uma redução de 64,35%. Quem são esses que ficaram para trás? Segundo as informações da imprensa[2] – já que o MEC se nega a divulgar pesquisas e dados, justamente para invisibilizar a questão -, a proporção de negros, pardos e indígenas caiu. Certamente também caiu a de estudantes oriundos de escolas públicas, os que mais sofreram com o ensino remoto emergencial.
Esses elementos internos às instituições de ensino encontram-se com as diretrizes do projeto da extrema-direita em curso no Brasil, que acelerou e intensificou as contrarreformas. Voltaremos para uma universidade em que paira o projeto do FUTURE-SE (que tramita no Congresso Nacional) como possibilidade de reestruturação do ensino superior público, em que enfrentaremos a adesão ao projeto do REUNI digital (conforme minuta do governo federal), e também a ameaça de aprovação da PEC 32 – da contrarreforma administrativa -, que provocará, se aprovada, uma profunda refuncionalização do Estado e das instituições públicas, entre elas as universidades.
Assim, com uma universidade pública à beira do colapso, desestruturada pelo desinvestimento público e as diferentes formas de mercantilização da educação, é necessário que o retorno presencial das atividades ocorra em um clima de luta e mobilização. Mesmo passados praticamente dois anos letivos em trabalho e ensino remoto, os defensores das ‘novas formas de luta’, contrários às greves e mobilizações em defesa da educação pública de qualidade, não lançaram alternativas. A luta, na maior parte do tempo da pandemia restrita ao mundo virtual, não mobilizou como deveria. A força só será retomada com a ocupação das ruas (em mobilizações pelo Fora Bolsonaro e Mourão!) e nas atividades presenciais, como as que estão sendo realizadas em Brasília, semanalmente, pelo ANDES-SN e demais entidades do funcionalismo público contra a aprovação da PEC-32.
Já sabemos qual a universidade que encontraremos em 2022. Agora basta saber qual luta faremos. Resistir é fundamental, mas não é suficiente para barrar o projeto do capital. A conjuntura exige mais ousadia da comunidade acadêmica na defesa do ensino superior público e de qualidade. Nesse fim de ano devemos reestabelecer os laços de solidariedade de classe com trabalhadores e trabalhadoras sem emprego e que passam fome, continuar a luta pela não aprovação das contrarreformas, e buscar energias para travarmos boas lutas em 2022. Lutas que não se restrinjam ao cenário eleitoral, mas que construam alternativas para a mobilização e organização da classe trabalhadora em defesa do patrimônio e da educação públicas.