Nós que lá estivemos, por vós esperávamos
A Nova República como transição conservadora
Arte: “Não será televisionada” – de Izabela Schaus – perfil @raw_speech no Instagram
Outubro. Ano par. Com ou sem pandemia, toda militância da esquerda sabe o que isso significa. Mesmo que estejam cada vez mais mornas e ligeiras, as eleições movimentam ânimos, bandeiras, acirram as tretas internas, agitam cada vez mais as redes sociais com suas postagens, memes, avatares, tik tok; além do combate às fake news, o problema das manipulações de pesquisas, depois vem as derrotas, os balanços, pelo óbvio algumas vitórias ou, ao menos, importantes acúmulos que produzem protagonistas. E então a militância se reproduz e se forma e se reforma a cada dois anos.
Mas não só de eleições vive o outubro institucional. Também é o mês de celebração do aniversário da promulgação da Carta Magna brasileira, a Constituição Federal de 1988, a cidadã, a organizadora da nova república que surgiu após o fim da ditadura empresarial militar iniciada com um golpe em 1964 e encerrada, não sem muita luta e resistência, após uma anistia e uma eleição indireta.
Defender a constituição tornou-se um programa obrigatório e cada vez mais necessário diante das ameaças e concretizações de inúmeras retiradas de liberdades democráticas e direitos sociais que não parecem ter fim a partir do ascenso da direita puro sangue ao poder executivo federal. Entretanto, essa defesa muitas vezes parte de um pressuposto de que o horizonte de transformação social a ser reivindicado deve reconhecer na carta original de 1988 o seu balizamento. Sem retirar a responsabilidade de outras decorrências, essa adesão ao lugar institucional como arena de disputa primordial tem um peso de responsabilidade no acúmulo de derrotas e na dificuldade da esquerda em traduzir uma insatisfação geral latente em força política capaz de interferir na movimentação real da classe trabalhadora. Mas, afinal, até onde deve ir a nossa defesa dos instrumentos jurídicos e das formas políticas resultantes do processo criador da Nova República?
Uma cidadania cercada de PEC por todos os lados.
A Constituição brasileira tem sido alvo de constantes alterações e de toda sorte de obstáculos de implementação de seus artigos mais reformistas por todos os poderes desde o momento em que foi promulgada. Para ser exato, somente em relação às emendas, foram 114 aprovadas até agora; a primeira já em 1992 e a última em 2020. Não houve, até agora, um período específico em que possa ser identificada uma tendência maior de emendas, com exceção de alguns anos que fogem um pouco à regra, a distribuição é bastante democrática entre todas as legislaturas. A única exceção foi o ano de 2018, quando não houve nenhuma emenda constitucional aprovada, é bom lembrar, devido à sua proibição durante intervenções militares como a que ocorreu no Rio de Janeiro durante todo aquele ano.
Gráfico: Elaborado pelo autor. Dados disponíveis no link do portal do planalto
A maioria das emendas, pelo óbvio, não foi feita a favor da classe trabalhadora e uma das alterações principais veio com a Emenda Constitucional 95 de 2016. Aprovada sob fortíssimos protestos, como a batalha campal que ocorreu na esplanada no dia 29 de novembro daquele ano, seu texto limita o teto de gastos sociais por vinte anos, consolidando a inversão da utilização do orçamento da união na direção de sua apropriação privada. Uma alteração estrutural como esta coloca em xeque, inclusive, a eficácia social de cláusulas pétreas, evidenciando os limites estreitos da conformação democrática brasileira contemporânea. Mas não para por aí, basta uma rápida procura na internet para confirmar a existência de aproximadamente mil e setecentas Propostas de Emenda a Constituição (PEC) existentes na Câmara e no Senado, algo como 7 propostas para cada artigo vigente.
A constituição cidadã…de bem: a Carta segundo os Bolsonaro
A família Bolsonaro, por exemplo, tem uma gama variada de PEC em torno de si. O então deputado Jair Messias não propôs nenhuma, mantendo sua tradição de imobilidade parlamentar. Entretanto, reforçando sua habilidade no uso da caneta, assina, em conjunto com uma turba legislativa, oito Propostas que versam sobre variados temas e inclinações. Seu cardápio se assemelha a um prato de self-service de rodízio político: são duas propostas que dialogam com a extensão da validade e a obrigação de contratação de concursos públicos (PEC 218/2003 e 370/2005); duas que defendem a nomeação por concurso público para cargos dos Tribunais de Contas (PEC 209 e 222/2003); uma que aumenta o prazo prescricional para trabalhadores rurais e urbanos (175/2003); duas referentes à “segurança” – uma que unifica as competências das polícias estaduais (181/2003) e outra que amplia o escopo de ação da Polícia Rodoviária Federal (248/2004); e por fim, a PEC 391/2005 que aumenta a possibilidade de deputados e senadores ocuparem cargos da administração direta e indireta sem perder mandato.
Por outro lado, após assumir o poder executivo, o comportamento familiar tornou-se mais dedicado e com focos mais definidos. Aparentemente a edição de PEC é mais uma tarefa dentro das divisões de trabalho entre os filhos, pois quem cuida delas é o senador Flávio que, além de assinar diversas outras, já propôs duas somente em 2019. O seu teor é revelador sobre as possibilidades maleáveis de uma Carta Magna que está na mão de um congresso cujo processo eleitoral revela-se cada vez mais como um elemento limitador de um aprofundamento democrático e popular. A primeira delas, a PEC 32 de 2019, retoma o debate sobre a redução da maioridade penal, alterando a redação do art. 228:
Estabelece a responsabilidade penal aos maiores de 16 (dezesseis) anos de idade na hipótese de cometimento de crimes previstos na legislação e, em se tratando de crimes definidos como hediondos, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, organização criminosa e associação criminosa, a partir de 14 (quatorze) anos de idade.
A segunda proposta, PEC 80/2019, dialoga com um setor tradicional da elite brasileira de maneira mais direta. Sua proposta é alterar os artigos 182 e 186 para alterar os rumos da função social da propriedade urbana e rural, agradando a latifundiários e especuladores imobiliários:
Regulamenta a função social da propriedade urbana e condiciona a desapropriação da propriedade urbana e da rural à prévia autorização do poder legislativo ou de decisão judicial, observando-se em ambos os casos o valor de mercado da propriedade na indenização. (grifo nosso)
Na prática, esvazia o sentido da função social da propriedade, seguindo a mesma tendência da EC95, isto é, consolidando a privatização de instrumentos importantes como a desapropriação de terras que não cumprem sua função social. Isto jogaria uma pá de cal nas possibilidades, já muito remotas, de realização de uma reforma urbana e agrária no país e dialoga com as formas mais avançadas e sofisticadas de privatização do espaço que se apropriam de políticas de distribuição da terra para, contraditoriamente, valorizar as propriedades especulativas.
Existe uma espiral de retrocessos composta por um quadro institucional draconiano, no qual a composição conservadora das legislaturas alteram, cada vez mais, a constituição, piorando as condições de reprodução social e abrindo, assim, espaço para mais vulnerabilidades que são alimentos eleitoreiros que reforçam a manutenção de um congresso conservador que permanece alterando a carta magna.
Um diagnóstico apressado pode sugerir que a solução é buscar de todos os modos resgatar o caráter original da Constituição Federal de 1988, restaurando seu caráter democrático e cidadão. Tem sido comum, aliás, diante de tantas derrotas, de tanto retrocesso, enxergar a constituição como um lugar a ser alcançado, um horizonte a ser tomado como referência limite de transformação a favor dos direitos da classe trabalhadora. Há momentos, entretanto, em que a saída exige estratégias que movimentem, também, nosso pensamento e imaginação.
A utopia experimental como movimentação do pensamento
Existe uma tradição do pensamento marxista a respeito da produção do espaço que pode auxiliar a procurar outras saídas. As reflexões sobre a cidade costumam carregar em suas metodologias alguns instrumentos que fazem o pensamento se movimentar, percorrendo o espaço e o tempo.
Quando Lefebvre escreve “O direito à cidade”[1], reivindica em determinado momento uma articulação reflexiva que opera na direção de evidenciar a existência de um futuro único. O filósofo parte da crítica aos modelos de cidade utilizados por urbanistas na primeira metade do século XX que acabaram por consolidar, não sem muitas contradições, a paisagem da cidade industrial capitalista, ancorada na noção de progresso como redentor da humanidade, como um horizonte hegemônico, um futuro inconteste que será naturalizado.
Para dissolver as verdades da classe dominante, revelando seu caráter ideológico, a utopia experimental de Lefebvre reivindica uma continua e dinâmica produção de diferentes futuros alimentados pelas determinações do presente para, então, devolver as possibilidades de mudança para o futuro anteriormente imaginado, alterando-o em seguida. Como uma movimentação constante de cenários futuros, promove uma ação transformadora no presente. Desta forma, reivindica uma constante movimentação do pensamento que proporciona um estranhamento do espaço presente que pode ser utilizado como um instrumento de auxílio na luta contra o fetiche cotidiano, uma pílula intelectual de identificação das determinações que sintetizam a realidade concreta.
A projeção de um futuro no qual a própria institucionalidade será capaz de reverter os atuais e imparáveis retrocessos depois de esmagadora vitória da esquerda nas próximas eleições gerais é uma ilusão perigosa. Parte de um pressuposto newtoniano para acreditar que a realidade social possui um comportamento de ação e reação equilibrada. Este futuro, uma espécie de senso comum de desejo de parte significativa da esquerda, impede a formulação de ações presentes que extrapolem a sedutora disputa pelas eleições. Mas como podemos, num cenário tão adverso onde a ascensão neofascista apoiada no neoliberalismo avança de maneira rápida, ousar negar a delimitação da constituição sem nos aproximarmos daqueles que a esfacelam a cada ano?
A proposta lefebvriana pode auxiliar bastante. Entretanto, ela será aqui experimentada de maneira retrospectiva, para que consigamos dissuadir a crença de que a Nova República é um futuro que corresponde necessariamente aos anseios da classe trabalhadora. Afinal, quais eram as perspectivas apresentadas pela esquerda quando o nosso presente era ainda um futuro distante?
Transição conservadora: um beco sem saída?
Para ajudar a construir um cenário retrospectivo capaz de deslocar determinadas certezas a respeito do lugar da Nova República e sua constituição no pensamento crítico brasileiro, trarei duas fontes distintas: a primeira delas é “O espaço do Cidadão”, obra de Milton Santos escrita no período da Constituinte; e, em segundo lugar, as formulações a respeito da conjuntura nacional formuladas pelo Andes-Sindicato Nacional nos congressos de 1986 e 1987.
Milton Santos publica, em 1987, ano de realização da Assembleia Nacional Constituinte, uma obra que interpela de maneira madura as possibilidades de construção de um lugar nunca efetivamente experimentado em nossa formação nacional: a instauração efetiva de um pacto de cidadania. De maneira radical, aponta a necessidade de não copiarmos modelos anteriores e exteriores de cidadania, apontando a necessidade de construir algo que dialogue com a superação da realidade brasileira periférica, desigual e injusta, reivindicando, para isso, inventividade no processo que é metaforicamente apresentado como a produção de um espaço novo:
Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser dotado de sensibilidade, busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e vai pouco a pouco substituindo a sua ignorância do entorno pelo conhecimento, ainda que fragmentário. O entorno vivido é lugar de uma troca, matriz de um processo intelectual. (p.81)
Mas este horizonte de possibilidades não será romantizado pelo autor que, como poucos, conhecia as configurações possíveis e prováveis de repaginação de antigos territórios para serem apresentados como espaços renovados. As paisagens pós-modernas que removem espaços potencialmente populares, requalificando-os com formas velhas revestidas de ilusão luminosa, operam também na morfologia política. Deste modo, Santos aponta um problema crucial que deve ser evitado e combatido, a superação do binômio consumo-voto como um binômio capaz de organizar a cidadania:
O consumidor não é o cidadão. Nem o consumidor de bens materiais, ilusões tornadas realidades como símbolos: a casa própria, o automóvel, os objetos, as coisas que dão status. Nem o consumidor de bens imateriais ou culturais, regalias de um consumo elitizado como o turismo e as viagens, os clubes e as diversões pagas; ou de bens conquistados para participar ainda mais do consumo, como a educação profissional, pseudo-educação que não conduz ao entendimento do mundo.
O eleitor também não é forçosamente o cidadão, pois o eleitor pode existir sem que o indivíduo realize inteiramente suas potencialidades como participante ativo e dinâmico de uma comunidade. O papel desse eleitor não-cidadão se esgota no momento do voto; sua dimensão é singular, como o é a do consumidor, esse “imbecil feliz” de que fala H. Laborit (1986, p.201). (SANTOS, 2007, p.56)
O alerta não poderia ser mais preciso. De maneira retrospectiva, torna-se diagnóstico do que irá, de fato, ocorrer. Santos cumpre um duplo papel nesta obra, primeiramente uma importante função de identificar teoricamente e apontar um momento de transformação e criação política que estava dado, reivindicando sua utilização com radicalidade a fim de demonstrar que a história pode ser escrita em novos espaços. Em segundo lugar, entretanto, aponta os diversos entraves para esta realização, o que é esperado de um estudioso das transformações do território brasileiro que compreende os rumos conciliatórios, pelo alto, que sempre conduziram a implementação do meio-técnico-científico-informacional em seu espaço para finalidades de concentração e desigualdade.
Um pensador como ele, que soube ler a política de desenvolvimento territorial como expressão do consenso das elites rurais, industriais e financeiras, mesmo sem deixar de abrir mão das possibilidades de disputa operadas nas contradições do processo em curso, percebe haver um horizonte conservador muito bem delineado, quase um beco sem saída que pode ser percebido em um último alerta que sintetiza as determinações daquele momento:
A luta pela cidadania não se esgota na confecção de uma lei ou da Constituição porque a lei é apenas uma concreção, um momento finito de um debate filosófico sempre inacabado. Assim como o indivíduo deve estar sempre vigiando a si mesmo para não se enredar pela alienação circundante, assim o cidadão, a partir das conquistas obtidas, tem de permanecer alerta para garantir e ampliar sua cidadania. (SANTOS, 2007, p.105).
Três décadas depois, prevaleceu uma trajetória política que foi capaz de fundir as duas preocupações inicialmente apresentadas, originando um superconsumidor eleitoral – na verdade um superendividado eleitoral, uma espécie de imbecil-triste alimentado pela espetacularização da política institucional. Mas, como podemos perceber, não se trata de um desvio inesperado das determinações que delimitavam a realidade da década de 80. Os desdobramentos do processo constitucional eram aguardados com tamanha desconfiança que Santos insiste em diminuir a centralidade do evento, reivindicando a vigilância constante, a fim de, quem sabe, “reaprender o que nunca lhe foi ensinado”.
A reflexão de Milton Santos encontra eco nas formulações realizadas pelo movimento docente das instituições de ensino superior nos Congressos organizados pelo Andes – Sindicato Nacional (à época ainda reconhecido como a Andes – associação – na medida em que a sindicalização de servidores públicos não era então permitida). Parece interessante resgatar os textos de análise de conjuntura resultantes destes debates congressuais, por expressarem uma síntese de uma pluralidade de avaliações que partem de lugares diferentes de reflexão na medida em que o sindicato congrega docentes das mais diversas áreas do conhecimento e de diferentes regiões do país. Outra razão para esta escolha é que o Sindicato participou de maneira ativa e constante, com um certo protagonismo, de movimentações de pressão pela garantia de direitos da classe trabalhadora que acompanharam todo o processo da Assembleia Constituinte. Portanto, a partir de uma estratégica posição de observação, este sujeito coletivo de reflexão e práxis carrega, em suas análises, densidade suficiente para ajudar a construir a retrospectiva de expectativas sobre a Constituição de 1988 durante sua realização.
Em primeiro lugar, chama a atenção a caracterização do momento político da Nova República como uma atualização da dominação do regime ditatorial, metamorfoseado no que será caracterizado como um pacto social em torno de uma transição conservadora:
A formação do atual regime – a Nova República -, superando o regime militar, significa a tentativa de implantação de uma nova forma de garantir a subordinação da imensa maioria da população, constituída basicamente por trabalhadores. Enquanto a ditadura tinha na violência seu principal instrumento de dominação, o novo regime, sem abrir mão dela, nem de instrumentos herdados do anterior – como a presença militar na vida política, a LSN, o SNL etc, -, põe em primeiro plano a tentativa de envolvimento e cooptação, através do diálogo, do entendimento, da negociação. (ANDES, 1987, p.5)
A construção consensual em torno do conservadorismo encontraria, ao mesmo tempo, legitimidade e suporte na escolha de uma Assembleia Constituinte a partir de uma eleição direta que, entretanto, expressaria desde então as contradições da representatividade parlamentar ao consolidar uma maioria conservadora, herdeira de processos violentos e antidemocráticos que prevaleciam no período imediatamente anterior: a escolha da assembleia constituinte, mais do que oferecer uma renovação desejada, demonstraria a força de continuidade oriunda de um processo de transição controlado de cima para baixo. Este contexto garantiria, inclusive, um controle mais amplo do próprio funcionamento da Constituinte de 1987, impedindo que a forma política ali experimentada pudesse expressar anseios mais vigorosos de renovação democrática:
A convocação da Constituinte Congressual que foi a resposta da classe dominante à grande mobilização de massas contra a ditadura militar e por Diretas Já foi moldada de acordo com os objetivos do Capital, tanto na forma de convocação como no processo eleitoral que houve.
As classes dominantes trataram de colocar empecilhos ao seu funcionamento não só através de manobras regimentais que reduzam as possibilidades do debate das diversas correntes, como também reduzindo seu espaço em relação às atividades do Congresso Nacional e vão continuar se esforçando para garantir que as mudanças fiquem na superfície. (ANDES, 1987, p.2)
Porém, longe de conformar uma avaliação dualista que levaria a um afastamento completo de alguma forma de intervenção possível diante das fissuras apresentadas na transição do regime, a associação (futuro sindicato) considerou fundamental atuar diretamente no processo a fim de explorar as contradições na direção de garantias de direitos e liberdades. Já em 1988, a avaliação do processo indica o acerto na sua atuação da seguinte forma:
[…] decorrência das contradições existentes no interior da Assembleia Constituinte, a parcela mais progressista da Constituinte, apesar de minoritária em relação ao bloco conservador, conseguiu fazer aprovar na Comissão de Sistematização um projeto de Constituição que incorpora, ainda que parcialmente, algumas reivindicações fundamentais dos trabalhadores, dente elas a redução da jornada de trabalho e a proibição de dispensa imotivada do emprego. Na área da educação, além de avanços no que diz respeito à definição da responsabilidade do Estado quanto ao financiamento do ensino, o texto da sistematização consagra dois princípios fundamentais em relação à Universidade: o princípio de autonomia universitária e o da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. (ANDES, 1988, p.29)
Curioso notar que houve, naquele momento, uma divergência com a CUT (o Andes vai se filiar à Central em 1989 e lá permanecerá até o ano de 2005) no que diz respeito à atuação junto à constituinte. A Central organizada em torno do Partido dos Trabalhadores não concordaria, inicialmente, em participar do processo de disputa escolhido pelo Andes. Décadas depois, o cenário de acomodação de diversas centrais sindicais torna sua atuação diametralmente oposta, praticamente limitada aos ditames institucionais da constituição “cidadã”; aparentemente o dualismo não abandonou a CUT:
Reagindo corretamente ao texto da Comissão de Sistematização, várias entidades do movimento sindical e popular, a CUT inclusive, fizeram a autocrítica de sua omissão anterior em relação à Constituinte, omissão fundada no ceticismo quanto à possibilidade de uma Constituinte de maioria conservadora alterar em benefício dos trabalhadores, e ainda que parcialmente, as regras do jogo de um capitalismo brutalmente espoliativo e predatório. (ANDES, 1988, p.29-30)
Voltando ao bom debate, após apresentar a crítica da formação da constituinte, e apostar numa atuação capaz de explorar rupturas do processo da transição conservadora, que são avaliados positivamente pela plenária sindical do congresso de 1988, restará ainda uma avaliação que não deixa dúvidas sobre qual é o sentido prevalecente da constituição e de seu processo de construção. Sem se deixar levar pelos feitos positivos, o sindicato ecoa a formulação de Santos sobre a necessidade de permanecer alerta:
Essas conquistas não são suficientes para anular o fato de que a luta pelos interesses populares na Constituinte teve como resultado sobretudo barrar o retrocesso, mais do que promover avanços na ordenação jurídica do País, estando, hoje, comprometida pelas propostas retrógradas do Centrão tanto no campo econômico-social como político-institucional. (ANDES, 1988, p.30)
De volta para o futuro
Segundo a recomendação lefebvriana de movimentação do pensamento a partir de uma utopia experimental, tomada aqui a partir de um caráter retrospectivo, podemos perceber que o caráter conservador do processo constituinte esteve presente em avaliações da esquerda naquele momento. A anunciada capacidade de atuação coesa do Centrão será confirmada inúmeras vezes no futuro, o que pode ser medido pelas Emendas Constitucionais. Apesar de algumas representarem conquistas favoráveis à classe trabalhadora, tais como a inclusão de moradia, alimentação e transporte na lista de direitos sociais fundamentais, a maioria das emendas versa sobre concessões de direitos ao setor privado, alterações em sistemas de previdência, flexibilizações de regulamentações em relação direta com a financeirização da vida, etc.
É pedagógico o caso da luta pelo direito à cidade que teve na inclusão original dos artigos 182 e 183 (garantias da função social da propriedade urbana), uma vitória popular no processo constituinte a partir da atuação do Fórum Nacional de Reforma Urbana. Ainda assim, a sua redação final limitou a aplicação direta de importantes instrumentos jurídicos urbanísticos, sobretudo relacionados à desapropriação e utilização de imóveis para fins de moradia. No atual momento, passadas algumas décadas, novas leis federais, estaduais e municipais constituem um emaranhado conservador que direciona, cada vez mais, a atuação urbanística no sentido de reforço das desigualdades espaciais, inclusive a partir de regulamentações que têm facilitado a entrega de imóveis públicos para a exploração do setor privado. Completando o ciclo de transição conservadora surge a PEC 80/19, proposta pelo Senador Bolsonaro acima mencionada. Esta trajetória em relação ao uso da terra não é caso isolado, podendo representar uma síntese do desgaste do caráter cidadão desta constituição que se repete no campo da educação, saúde, condições de trabalho, etc.
Assumindo a contradição apontada pela avaliação conjuntural do Congresso do Andes, a atuação junto às fissuras existentes é algo que não pode deixar de ser explorado; é preciso ter muita cautela ao relativizar a importância das lutas e resistências circunscritas pela esfera institucional, na direção de que ainda há questões imediatas importantes como a revogação da EC 95 que limita o teto de gastos sociais. Da mesma maneira, o cenário eleitoral que os meses de outubro de anos pares ainda nos apresenta não pode ser simplesmente descartado a priori diante de uma simples, reducionista e dualista avaliação de que se trata de fazer o “jogo da burguesia” – afinal, dentro do capitalismo, quando é que não se trata disso?
Entretanto, escolher a arena, estádio, quadra ou várzea onde será disputado o jogo é algo muito importante. E, aparentemente, a partir do que foi apresentado aqui, as fissuras possíveis de serem exploradas no jogo institucional cada vez mais se tornam menores e raras. O chamado Centrão, cada vez mais, confirma seu projeto de fechamento dessas brechas, dando sequência à sua transição conservadora que, aparentemente, está vivendo um capítulo definitivo.
O momento atual, entretanto, exige um rigor avaliativo que não pode se apoiar apenas em aspectos imediatos. Visitar futuros passados nos movimenta politicamente, reabrindo horizontes que foram se acomodando na travessia das últimas décadas. Os olhos podem permanecer atentos para as eleições, os ouvidos sintonizados na cacofonia constitucional, mas a mão e o cérebro devem se dedicar, e cada vez com mais vigor, a produzir alternativas que dialoguem com futuros variados onde caibam os sonhos da classe trabalhadora. É preciso, com urgência, resgatar e atualizar aquele caráter de ruptura que as memórias de luta atribuem a outubro. São tempos urgentes que nos colocam em constantes becos sem saída, precisamos atravessar algumas fronteiras, transpor certos limites de nossa imaginação combativa para podermos nos recolocar na luta da forma que, de fato, sabemos travar. Chega de jogar, apenas, no campo do adversário.
Sobre todo creo que no todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima y yo, soy un vaso vacío
Oigo una voz que me llama casi un suspiro
Rema, rema, rema,
Rema, rema, rema,
Clavo mi remo en el agua
Llevo tu remo en el mío
Creo que he visto una luz al otro lado del río
(Al outro lado del río. Jorge Drexler)
REFERÊNCIAS
ANDES. Relatório final do VI Congresso. Goiânia, 25 a 31 de janeiro de 1987. Disponível em: https://www.andes.org.br/sites/relatorios/page:10
ANDES. Relatório final do VII Congresso. Juiz de Fora, 24 a 30 de janeiro de 1988. Disponível em: https://www.andes.org.br/sites/relatorios/page:9
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: EDUSP, 2007
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2004.
[1] Em 1967 foi publicado um artigo por Lefebvre na revista L’Homme et la société, N. 6, 1967. pp. 29-35. Trata-se de um dos capítulos que será reproduzido na íntegra no livro que já estava em processo de editoração, como aponta o autor em nota de rodapé no artigo original. Como o artigo e o livro possuem o mesmo nome (O direito à cidade), é comum haver uma certa confusão sobre a data correta da publicação da obra de Lefebvre (o que, aliás, não altera em nada a importância e a essência do debate que ele propõe). O artigo original, digitalizado, está disponível aqui.
As opiniões expressas nas colunas são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.