Extensão universitária e os caminhos para uma universidade popular
Muito se fala sobre a necessidade de construção de uma universidade popular. Mas o que entendemos por popular? O que seria uma universidade popular? A universidade popular é possível em uma sociabilidade capitalista? O que é possível fazer hoje para que a universidade pública que conquistamos se aproxime de um projeto popular?
Essas são algumas perguntas que devem rondar as reflexões de quem, ao olhar para os dados sobre o ensino superior no Brasil, identifica que a cada ano as universidades públicas se tornam mais restritas, enquanto as instituições privadas de ensino proliferam como fogo em rastilho de pólvora. Segundo o Censo Educacional de 2019, os dados levantados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), identificou 2.608 instituições de ensino superior, representando uma elevação de 2,8% no número de instituições. Destas apenas 302 (11,6%) são instituições públicas e 2.306 (88,4%) são privadas, o que em si já demonstra que a educação superior no Brasil está longe de ser popular.
Para Gramsci, o popular é entendido como o processo histórico de tomada de consciência dos subalternos, que guardam em si o potencial de classe revolucionária para superação da ordem do capital. Para tal, necessitam vivenciar, construir, experienciar, relações outras, ainda na sociabilidade do capital, para que possam elevar o seu senso crítico, identificando a verve ideológica de sua concepção de mundo assumida da burguesia. Uma relação de construção do senso comum, baseado na ideologia da classe que domina economicamente, que se constrói através da cultura. Segundo Gramsci (2000, p. 20) “a diferente distribuição dos diversos tipos de escola no território ‘econômico’ (…) determinam, ou dão forma, à produção dos diferentes ramos de especialização intelectual”. Assim, quanto mais as instituições são geridas pelos interesses e pela visão de mundo da burguesia, mais tendem a influir na construção do senso comum, adaptado ao status quo, que reproduz a ideologia dominante, seja através do consenso ou da coerção. É neste sentido que consideramos que a expansão do ensino superior privado no Brasil se movimenta, como um propulsor do senso comum em busca do apassivamento dos segmentos da classe trabalhadora.
A educação privada, que cresce de forma vertiginosa desde o período da ditadura empresarial-militar no Brasil (1964-1985), invertendo a pirâmide do ensino superior, que até a década de 1970 era majoritariamente pública, chega em 2019 com apenas 2.080.418 matriculas em instituições públicas e 6.524.108 matrículas em instituições privadas, de um total de 8.604.523 matrículas, segundo o resumo de apresentação do Censo Educacional do Ensino Superior de 2019. Ainda segundo o Censo 2019, dos 40.427 cursos existentes, apenas 10.714 estão em instituições públicas (federal, estadual, municipal) e 29.713 em instituições privadas.
Nesse cenário, mesmo considerando o importante impacto da política de cotas nas instituições públicas de ensino superior, é necessário reconhecer sua insuficiência para o processo de ampliação e popularização das instituições públicas. Segundo matéria do Senado Federal, debatendo os 10 anos da Lei 12.711/ 2012 (lei de cotas), o impacto no acesso de negros e negras, indígenas e estudantes de escolas públicas é explícito nas universidades públicas. Segundo a matéria[i], em 2003 a UERJ tinha 3.056 estudantes cotistas e hoje possui 7.553; na UFRJ o percentual de estudantes declarados negros saltou de 20% para 35% e na UnB os declarados pretos e pardos saltaram de 10.680 em 2012 para 15.574 em 2021. Porém, vale registrar, que dos 3.633.320 ingressantes em 2019, 3.074.027 eram de instituições privadas e apenas 559.223 de instituições públicas, ou seja, mesmo ampliando o acesso de negros e negras e de estudantes de escolas públicas no ensino superior, a grande maioria dos ingressantes estão na rede privada.
Esse rápido painel nos indica que o primeiro grande desafio que temos é a reafirmação constante de que o pressuposto básico para a construção de uma Universidade popular é que o ensino seja público, gratuito, laico e universal. Essa é a luta histórica do movimento docente, que passa necessariamente: i) pela ampliação das instituições públicas de ensino com acesso universal; ii) pela reivindicação da verba pública exclusivamente para as instituições públicas; iii) pela luta contra as parcerias público-privadas nas instituições públicas como forma de desresponsabilização do Estado e de privatização não clássica; iv) pela recusa da venda de serviços e de educação por parte das instituições públicas; v) pela exigência de concursos públicos para o quadro docente e técnico-administrativo com estruturação das carreiras; vi) pela ampliação da assistência estudantil; vii) pela efetivação do tripé constitucional ensino-pesquisa-extensão; e viii) pela recomposição orçamentária para a educação, ciência e tecnologia.
Com esses elementos básicos buscamos construir um esboço do que supomos ser o caminho para a ampliação da atual estrutura universitária visando a construção de caminhos para a sua popularização, com a absoluta clareza que sua realização plena só será possível com a superação da ordem do capital. Pois na ordem do capital, como afirmou Gramsci (2000, p. 48), cada “grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes estratos uma determinada função tradicional, dirigente ou instrumental”. Mesmo compreendendo que superar a divisão das funções sociais só é possível com a superação da sociabilidade baseada na propriedade privada e na apropriação privada da riqueza socialmente produzida, é necessário buscar formas de germinar o contra-hegemônico ainda na sociabilidade capitalista. O que impõe construir formas de democratização e popularização da universidade pública hoje.
A universidade popular de fato deve ser aquela que forme os jovens “como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige” (GRAMSCI, 2000, p. 49), o que exige uma reformulação geral do sistema educacional e que, segundo Mészáros (2005), só é possível com a transformação das relações sociais que dão base à estrutura educacional.
Porém, mesmo compreendendo que “é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente” (MÉSZÁROS, 2005, p. 27), partimos da premissa que as instituições públicas de ensino superior, como parte do sistema de políticas públicas são uma conquista dos/as trabalhadores/as, em especial a partir da Constituição Federal de 1988 (CF/88), devem ter como centro de sua atuação as parcelas mais pauperizadas da população, em especial aqueles segmentos da classe trabalhadora mais atingidos com a desigualdade inerente à sociabilidade do capital.
Nessa perspectiva, a universidade pública se constitui como um patrimônio conquistado pela sociedade que deve cumprir, a partir do tripé ensino-pesquisa-extensão, a função de assegurar integração social, acesso aos bens culturais e aos conhecimentos socialmente produzidos pela humanidade e atuar como espaço de produção de tecnologia para o desenvolvimento social. Considerando, a partir de uma perspectiva classista de educação, que o ensino superior é um direito de todos/as, tendo por base o preceito conquistado na CF/88 em seu artigo 207, que afirma que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
A universidade pública é uma das instâncias onde deve ocorrer, de forma integrada, a formação profissional e a reflexão crítica sobre a sociedade, assim como a produção do conhecimento, o desenvolvimento e a democratização do saber crítico em todas as áreas da atividade humana. Suas funções básicas, o ensino, a pesquisa e a extensão, devem ser desenvolvidas de forma equilibrada, articulada e interdisciplinar. (ANDES-SN, p. 17, 2013)
Assim, consideramos que a extensão universitária deve ser potencializada como espaço de possibilidade para desenvolver ações que contribuam para a popularização da educação superior pública, não devendo ocupar, na lógica acadêmica meritocrática, um lugar de subalternidade em relação ao ensino e a pesquisa. Além de ensino e pesquisa que devem ser desenvolvidos de forma interdisciplinar, considerando a realidade e as demandas da classe trabalhadora e visando a formação integral dos sujeitos, consideramos que a extensão universitária é um espaço privilegiado para um repensar da universidade pública e de afirmação do projeto de educação superior popular.
Um projeto que faça sentido real na vida da classe trabalhadora e que contribua, como previsto na política nacional de extensão do Brasil, para a formação dos estudantes e professores e para conquistar o reconhecimento da sociedade brasileira a partir da priorização de práticas que contribuam para o atendimento das necessidades sociais. Como explicitado nos objetivos da PNEU:
Reafirmar a Extensão Universitária como processo acadêmico definido e efetivado em função das exigências da realidade, além de indispensável na formação do estudante, na qualificação do professor e no intercâmbio com a sociedade;
Conquistar o reconhecimento, por parte do Poder Público e da sociedade brasileira, da Extensão Universitária como dimensão relevante da atuação universitária, integrada a uma nova concepção de Universidade Pública e de seu projeto político-institucional;
Priorizar práticas voltadas para o atendimento de necessidades sociais (por exemplo, habitação, produção de alimentos, geração de emprego, redistribuição da renda), relacionadas com as áreas de Comunicação, Cultura, Direitos Humanos e Justiça, Educação, Meio Ambiente, Saúde, Tecnologia e Produção, Trabalho. (PNEU, p. 5, 2012)
A extensão universitária é entendida como “[…] um conjunto amplo de atividades que perfazem processos de cunho educativo, cultural e científico, indissociados da pesquisa e do ensino, que apontam para a relação entre a universidade e o conjunto da sociedade.” (PNEX, 2001, p.03). Já no Plano Nacional de Extensão Universitária, elaborado pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e pela Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação e do Desporto, publicado em 2001, é expresso o “[…] compromisso da universidade com a transformação da sociedade brasileira em direção à justiça, à solidariedade e à democracia.” (PNEX, 2001, p.03). Mas nem sempre é explicitado que as ações extensionistas, para contribuir com a construção de uma universidade popular, devem ser gratuitas e articuladas a movimentos sociais, populares e entidades autônomas dos trabalhadores, para que de fato seja socialmente referenciada.
Outro aspecto fundamental do trabalho extensionista é a possibilidade de permitir, aos segmentos da população ainda fora do universo acadêmico, o acesso à universidade pública e, assim, ratificar o caráter social das instituições públicas, fortalecer a troca de saberes com a sociedade e contribuir na formação profissional dos discentes.
Nesse sentido, a elaboração e efetivação de projetos extensionistas que articulem a experiência produzida nas universidades públicas e reafirmem o caráter social e emancipatório, bem como o compromisso com os interesses da classe trabalhadora, passa por realizar ações em articulação com movimentos sociais de diferentes áreas e com políticas públicas e sociais que reafirmem os direitos conquistados. Nessa perspectiva reafirma-se a função da Universidade Pública que, segundo o ANDES-SN (2013), deve ser:
Gratuita, democrática, laica, de qualidade e socialmente referenciada (…) constitui um modelo de instituição de ensino superior (IES) que expressa o compromisso do Movimento Docente com a qualidade e a responsabilidade social do trabalho acadêmico e com a construção de uma sociedade justa e igualitária. (ANDES-SN, p. 17, 2013)
Em 2018 o debate da extensão universitária ganha outro patamar institucional. Se reconhecidamente no tripé ensino-pesquisa-extensão, essa última sempre ficou subsumida a lógica das outras duas, ocupava lugar acadêmico de menor prestígio e, em sua maioria, nem mesmo havia designação de carga horária para docentes, a partir do parecer CNE/CES nº 608 de 2018 e a portaria MEC nº 07 de 2018, a extensão passa a ser incorporada ao currículo dos cursos de graduação, o que deveria indicar outra posição na relação política acadêmica. Com as novas diretrizes a extensão universitária passa a compor no mínimo 10% do total da carga horária curricular dos cursos de graduação, alterando as matrizes curriculares.
A curricularização da extensão universitária deve ser compreendida, pelos que defendem uma universidade popular, como uma possibilidade privilegiada de construção de uma universidade mais voltada para as demandas e necessidades da classe trabalhadora, assim como um importante espaço de formação profissional para um novo tipo de intelectual, nos termos de Gramsci (2000).
Ao mesmo tempo, é necessário, ante o intenso processo de privatização interna e desfinanciamento das universidades públicas, que se tenha muito cuidado para que a curricularização da extensão não se torne uma ‘fonte de renda’ para as instituições e cursos. Assim como é necessário cuidados para que as atividades extensionistas, que passam a ser obrigatórias, não sejam descaracterizadas e ‘confundidas’ com ações de ensino e pesquisa, de forma a cumprir apenas administrativamente, as exigências da normatização.
Tão importante como refutar cursos pagos de extensão será a defesa do incremento de ações extensionistas nas grades curriculares que estejam comprometidas com uma perspectiva de formação integral e voltada para os segmentos populares, assim como para o desenvolvimento de ações que perpassem os muros das universidades chegando até os territórios populares, equipamentos públicos, movimentos sociais e profissionais em busca de formação permanente. Assim, compreender a extensão universitária como uma estratégia para que avancemos na construção de uma universidade popular, é uma tarefa central no processo de debate e implementação de sua curricularização.
Bibliografia:
ANDES. Proposta do ANDES-SN para a Universidade Brasileira. Cadernos ANDES, número 2, 4ª ed. Brasília/DF: janeiro/2013.
Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e
SESu/MEC. Plano Nacional de Extensão Universitária, 2001 e 2012.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 2. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2000.
INEP. Censo Educacional de 2019. Resumo Executivo, Brasil, 2020.
MÉSZÁROS, Isteván. A Educação para além do Capital. São Paulo: Editora Boitempo, 2005.
[i] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/02/lei-de-cotas-tem-ano-decisivo-no-congresso#:~:text=A%20Lei%20de%20Cotas%20(%20Lei,5%20sal%C3%A1rio%20m%C3%ADnimo%20per%20capita. Acesso: 25 de abril de 2022.
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