Jornal socialista e independente

Lalo Minto

É professor da Faculdade de Educação da Unicamp. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Crítica Social (GEPECS). Autor de: A educação da miséria: particularidade capitalista e educação superior no Brasil e As Reformas do Ensino Superior no Brasil: o público e o privado em questão.

Educação superior mercantilizada: negócios animados, tragédia alargada

14 de abril, 2022 19:32

Não tardou para que os efeitos da reorganização das instituições privadas de ensino superior no pós-pandemia viessem à tona. Os casos mais recentes, envolvendo a Universidade Anhembi-Morumbi e a Universidade São Judas Tadeu, pertencentes ao grupo Ânima, geraram protestos estudantis, ganharam divulgação na imprensa brasileira e motivaram a realização de uma audiência pública[1] na Assembleia Legislativa paulista em 11/04/2022.

São casos emblemáticos do potencial nefasto das chamadas propostas inovadoras de organização do ensino, alargado em razão da generalização do ensino remoto durante a pandemia. As principais denúncias[2] ora em curso apontam para cursos presenciais sendo oferecidos em formato híbrido (mantendo as mensalidades do presencial), junção de turmas com estudantes de diferentes estágios de formação, superlotação de turmas e redução forçada dos conteúdos curriculares.

Se avaliarmos a atuação dos grandes oligopólios no ensino superior, nada indica que possamos supor que sejam casos isolados. Em termos gerais, explicitam um projeto que visa reduzir custos e potencializar a lucratividade do ensino aproveitando-se de rótulos como “ensino híbrido”, “modelo inovador”, entre outras variações. Representam uma boa imagem do que a privatização vem impondo a esse nível de ensino nos últimos anos, cuja força de grupos como o Ânima é uma das características.

O caso da Anhembi-Morumbi, ademais, é ilustrativo da própria história do ensino superior no país. Com cinco décadas de funcionamento, a instituição nasceu como “Faculdade de Comunicação Social – Anhembi”, tendo sido autorizada por meio do Decreto n. 70.157, de 17 de fevereiro de 1972. Sua existência foi um produto direto do arcabouço legal instaurado pela Ditadura, especialmente no pós-1968, com amplo estímulo às instituições não universitárias. Nos anos 1980, se fundiu com a Faculdade de Turismo do Morumbi, donde se originou o nome até hoje utilizado.

Em agosto de 1997, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a Anhembi-Morumbi protagonizou outro episódio emblemático dessa política moldada para favorecer a ação privada no ensino superior: tratava-se da sua transformação em universidade, podendo assim usufruir das prerrogativas constitucionais da autonomia universitária. Este movimento ocorreu, é bom lembrar, em um contexto em que se pretendia estender tais prerrogativas às instituições privadas sem que delas fossem exigidas maiores contrapartidas. Ou seja, exigências que pudessem afetar a rentabilidade do ensino como negócio. O imbróglio veio à tona por conta do pedido de demissão do então conselheiro do CNE (órgão responsável por esse tipo de autorização), José Arthur Giannotti, um aliado histórico do então presidente FHC, que junto com outros 5 membros do conselho tinham se oposto ao pedido por entenderem que a Anhembi-Morumbi não cumpria com os requisitos legais para tal transformação (sobretudo as atividades de pesquisa institucionalizadas) e que a decisão tinha sido motivada por “pressões políticas”.[3] Isso tudo ocorreu mesmo após o parecer desfavorável do primeiro relator do caso no CNE.[4]

Com os ventos favoráveis ao ensino privado dos anos FHC, continuados no governo Lula, a Anhembi-Morumbi também foi pioneira noutro importante episódio da privatização do ensino superior: em 2005, tornou-se a primeira instituição a ter seu controle passado ao capital estrangeiro, quando o grupo estadunidense Laureate adquiriu 51% de participação no capital da instituição. Na época, um negócio da ordem de 70 milhões de dólares. Em 2013, esse controle passou a ser de 100%, com destaque para o fato de que, apesar de estadunidense, os principais negócios da Laureate tinham como endereço justamente os países da América Latina; em 2017, ano em que o grupo fez seu pedido de abertura de oferta pública na Nasdaq, os negócios na região respondiam por cerca de 56% da receita do grupo, sendo 15% no Brasil.[5]

A essa altura do campeonato – com a ampla liberalização do mercado de ensino superior no Brasil, políticas públicas que potencializaram a ação dos grupos (Fies e Prouni, sobretudo), a sua concentração e crescente financeirização, que também foi decisiva para a centralização dos capitais (por meio das compras e fusões entre instituições), além é claro do histórico contingenciamento do ensino superior público – a estratégia traçada pelo grupo Laureate para sua expansão no Brasil era, principalmente, a da expansão no segmento do ensino à distância. Em 2014, o grupo anunciou a intenção de triplicar a oferta nessa modalidade.[6]

Outro fato ajuda a ilustrar a dinâmica desses negócios e de como se movimentam as frações burguesas que investem no setor: um dos fundadores da Anhembi-Morumbi, Gabriel Mário Rodrigues, já fora da sua instituição original, foi um dos responsáveis pela concretização de um dos maiores negócios da história da educação mundial: a fusão dos grupos Anhanguera e Kroton (2013-2014), da qual passou a ser o presidente do conselho de administração, permanecendo nessa posição quando da sua transformação em Cogna.

Embora tivesse anunciado a ampliação dos negócios no Brasil, em 2018[7], época em que a Laureate obtinha receita da ordem de R$ 1,7 bilhão com suas 12 instituições no país, pouco tempo depois o grupo colocou à venda os seus ativos no campo educacional no mundo todo. No Brasil, recorde-se, isso se deu em meio a denúncias de práticas irregulares e bastante graves, cujo conteúdo foi exposto na matéria “Laureate: o raio-x de uma fraude para reconhecer uma graduação no MEC”, que nos informa que:

A ação do MPF foi motivada por reportagens da Agência Pública e por denúncias feitas pelo mandato do deputado estadual por São Paulo Carlos Giannazi (Psol), que reuniu num dossiê denúncias e documentos de ex-professores do grupo educacional. As denúncias se referem a atas de reuniões que teriam sido forjadas para o reconhecimento de cursos no MEC e à atuação de docentes em cursos fora de sua área de formação, sem que os alunos soubessem. Também se refere ao uso de robôs para correção de provas no lugar de professores sem que os alunos soubessem.[8]

Essas denúncias tiveram repercussão no MEC, que curiosamente “puniu” as instituições do grupo proibindo-as de firmarem novos contratos Fies ou Prouni.[9] Ora, nota-se aí uma mudança no discurso oficial do ministério, haja vista que programas que vinham sendo tratados predominantemente como políticas de benefício aos estudantes e de “democratização” do ensino, agora eram tratados sob a lógica (já apontada tantas vezes!) do ganho financeiro essencial desses programas para as instituições. Nada como a história para nos ensinar.

O encerramento das atividades da Laureate foi a ocasião perfeita para que outros gigantes do setor passassem a disputar a aquisição dos seus negócios. Ser Educacional e Cruzeiro do Sul foram os primeiros a demonstrar interesse. A aquisição pelo grupo Ser já havia sido, inclusive, noticiado pela imprensa quando, após processo cheio de idas e vindas[10] e até contestações judiciais, o grupo Ânima acabou faturando o negócio por um valor de cerca de R$ 4,4 bilhões.

A Anhembi-Morumbi passava, então, ao controle de outro grupo amplamente financeirizado, com capital aberto na bolsa de valores e valor de mercado estimado de quase R$ 2 bilhões na época da aquisição. Não havia nenhuma razão para achar que os problemas da controladora anterior seriam levados junto com ela.

Casos como o atual se somam a um largo rol de ações que precarizam o ensino superior, impondo uma lógica predatória de funcionamento: com a financeirização, as atividades desses grupos passam ser cada vez mais pulverizadas, seu controle – mesmo quando diversificado – é direcionado para os ganhos financeiros desses capitais, o que faz com que suas estratégias de negócios sejam cada vez mais agressivas e pautadas única e exclusivamente nessa lógica. Potencializar a lucratividade desses grupos, portanto, não se reduz a estratégias de ensino, mas se torna uma meta permanente que se desdobra em ações e práticas (a tal “governança”) sempre em nível tal que possa compensar as exigências de remuneração – crescentes e insaciáveis – dos investidores financeiros.

Não se trata, aqui, de uma característica peculiar a um grupo ou outro, mas à lógica contemporânea da gestão privada (e financeirizada) de atividades educacionais, que se espraia para o conjunto do ensino privado. Demissões em massa (antes, durante e depois da pandemia), hibridização forçada das atividades, mesmo em cursos formalmente presenciais, intensificação do trabalho, substituição por máquinas à título de “inovação”, superlotação de turmas, entre outras, serão roteiro cada vez mais repetido nesse setor. Um ótimo motivo para desfazer, de uma vez por todas, o mito neoliberal de que a iniciativa privada traria eficiência ao ensino superior, restando ao Poder público a tarefa de regulamentação e fiscalização dessas atividades, impondo sanções quando fossem necessárias. Lá se vão décadas e ainda não vimos nada disso acontecer no Brasil.

Para as/os estudantes subordinados à tragédia da hibridização forçada no caso da Ânima, o prejuízo à sua formação é incomensurável. No plano geral, as expectativas também são muito negativas, haja vista que hoje a oferta de vagas no ensino à distância (outra área completamente descontrolada) é bastante superior ao presencial: somente em 2019[11], 7,8 milhões de novas vagas foram ofertadas nessa modalidade, sendo 7,7 milhões no setor privado.

Com o intuito de dar visibilidade aos protestos organizados por estudantes da Anhembi-Morumbi e São Judas Tadeu nas redes sociais, adotou-se a hashtag “desanima”, menção mais do que justa ao nome do grupo empresarial que gere essas instituições. Igualmente desanimador é observar que, para uns, todo o processo que trouxe o ensino superior até esse estágio pode ser simplesmente esquecido. Considera-se que as perspectivas eleitoreiras desse 2022, por si só, são animadoras e superam todos esses problemas. Na lavra modesta deste texto, propomos exatamente o oposto: que ao invés de jogar a história para debaixo do tapete, tomemos mais esse exemplo de destruição e barbárie na educação superior como ponto de partida para uma reavaliação radical das políticas educacionais em curso.

Tragédias como essa não são construídas da noite para o dia, tampouco têm origem apenas nas mesas de negociação das empresas do setor. Trata-se de uma longa construção da qual fizeram parte o Estado brasileiro, as políticas de sucessivos governos em favor da privatização, o desinvestimento sistemático no ensino público, bem como a própria condição econômica subalterna do Brasil no plano internacional e os interesses das classes dominantes. Em favor do que vamos nos posicionar?


[1] Além das muitas notícias veiculadas na imprensa, o vídeo da Audiência Pública realizada na ALESP pode ser consultada em https://www.youtube.com/watch?v=suZWPMg9drU.

[2] Ver em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/04/11/alunos-reclamam-de-faculdades-particulares-de-sp-que-cobram-mensalidade-de-aulas-presenciais-mas-continuam-em-ensino-hibrido.ghtml

[3] Sobre isso, ver https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff220824.htm

[4] Para saber mais sobre as idas e vindas desse processo é bastante indicada uma consulta ao Parecer CES n. 469/97, disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=218851-pces469-97&category_slug=abril-2014-pdf&Itemid=30192

[5] Dados consultados em matéria do Jornal Valor. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2017/01/19/dona-da-anhembi-morumbi-entra-com-pedido-de-ipo-na-nasdaq.ghtml

[6] https://valor.globo.com/empresas/noticia/2014/12/17/laureate-vai-triplicar-rede-de-ensino-on-line.ghtml

[7] Ver https://valor.globo.com/empresas/noticia/2018/01/16/sob-novo-comando-laureate-amplia-operacao-no-brasil.ghtml

[8] https://apublica.org/2020/11/laureate-o-raio-x-de-uma-fraude-para-reconhecer-uma-graduacao-no-mec/

[9] https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/mec-proibe-10-faculdades-de-firmarem-novos-contratos-com-fies-e-prouni-apos-suspeitas-de-irregularidades.html

[10] https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/10/22/laureate-escolhe-anima-e-ser-vai-a-justica.ghtml

[11] Dados do Censo da Educação Superior 2019.

As opiniões expressas nas colunas são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.

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