A metamorfose da Universidade Pública: empreendedorismo, gerencialismo e inovação.
Uma introdução incômoda
Nem o carnaval resistiu. Depois que a população teve que sair mascarada de casa todo dia, até a festa perdeu o sentido. Na direção contrária, a máscara de determinadas instituições brasileiras foi caindo definitivamente, menos para os “terraplanistas” e “cloroquiners”, escancarando um país carcomido que sabíamos existir, mas que muitos evitavam encarar: um judiciário que perdeu sua pompa diante de tamanha covardia disfarçada de inoperância; forças armadas que exibem com orgulho seus generais incompetentes, burros e sem instrução; uma direita emergente que fala palavrão em público; um centrão que tem dificuldade de controlar seus cães de guarda – saudades de uma pasta rosa, né minha filha; e para coroar, uma determinada esquerda que confunde reforma com eleição e não distingue renovação de revolução.
Os resultados são devastadores. Centenas de milhares de pessoas perdendo a vida da maneira mais violenta enquanto a lógica lucrativa da desinformação se alimenta destes óbitos pelos caminhos mais tortuosos. Garantir o isolamento social é inviável sem auxílio emergencial real e continuado e, enquanto isso, a vacinação segue lenta e desorganizada; ao mesmo tempo, o resultado desta inoperância programada serve de argumento e álibi para ações que aumentam o contágio e as mortes a exemplo da escandalosa imposição de retorno das aulas presenciais nas escolas públicas e nas empresas privadas de ensino na pior fase da pandemia no Brasil… até agora. Falta oxigênio, não há garantias de uma segunda dose de vacina, o desemprego bate recordes.
Este breve retrato da recente crise social brasileira, entretanto, poderia ser pior. Na contramão da produção de tragédias, o serviço público de saúde organizado pelo SUS e as pesquisas realizadas por uma forte rede de universidades e institutos públicos federais e estaduais, também relacionados com o SUS, têm conseguido travar uma luta incansável, vencendo, através de sua eficiência e dedicação, várias batalhas em favor da vida, do cuidado, da solidariedade. Mas até quando teremos uma infraestrutura e trabalhadoras/es que darão conta desta tarefa?
Algo que deveria saltar aos olhos do debate da esquerda é que a estratégia eleitoral-institucional que captura a ação militante de boa parte dos partidos – sobretudo os que surgiram através das lutas da classe trabalhadora mas se converteram em partidos da ordem – não foi garantidora de uma ordem social capaz de assegurar a mínima condição republicana que se materializa na luta do SUS contra a Covid-19. Bastou um anúncio de crise para a classe dominante romper com o regime de conciliação e restabelecer seu rumo tradicional, levando consigo o poder judiciário, o aparato de vigilância, as legislações casuísticas (por exemplo, a normativa das listas tríplices para eleições de reitorias), os acordos de gabinete, a mídia privada, enfim, as vantagens e aliados temporários dos partidos de esquerda que ocupavam a institucionalidade.
Muito pelo contrário, foi a luta autônoma de trabalhadoras/es através de seus sindicatos e movimentos sociais, articulados com partidos que não abandonaram o viés classista, que mantiveram as universidades, institutos, e demais serviços públicos como garantidores de direitos, diminuindo perdas orçamentárias mais drásticas, assegurando alguns aspectos das carreiras de servidoras/es, e, principalmente, mantendo determinados fóruns de luta que nunca abandonaram as ruas e agora se mostram fundamentais. Como seria a luta pela derrubada da contrarreforma administrativa se não houvesse, hoje, o FONASEFE ou a CNESF[1]? Como se daria a luta pela autonomia universitária, se o projeto de desmonte do ANDES-SN, organizado pela criação do PROIFES[2], tivesse alcançado sucesso? O momento que enfrentamos hoje, entretanto, impõe uma combinação de novos problemas que precisam ser nomeados e enfrentados. Uma parte dele que será debatida adiante, é a fragilidade da estrutura pública que foi capaz de se manter nas instituições produtoras de ciência brasileira depois de tantos ataques nas últimas décadas. O que restou, e que resiste, ganha uma ameaça nova resultante do passado mais recente de desmantelamento do sentido público, sobretudo, das Instituições de Ensino Superior (IES).
Esta fragilidade, entretanto, ganha contornos dramáticos quando observada através das tendências recentes de expressão da crise estrutural do capitalismo relacionadas com seu viés biológico. Assumindo a reflexão apresentada pelo Coletivo Chuang[3], que dialoga com estudos de Robert G. Wallace – e que circulou bastante ano passado pelas redes sociais[4] – as epidemias e pandemias guardam fortes relações com o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo de tal maneira que é possível apontar uma continuidade pandêmica devido à necessária ampliação de áreas de intensiva produção agroeconômica e à ampliação das fronteiras agrícolas[5]:
O vírus por trás da epidemia atual (SARS-CoV-2) foi, como o antecessor de 2003 SARS-CoV, bem como a gripe aviária e gripe suína antes dele, gestado no nexo entre a economia e a epidemiologia. Não é por acaso que muitos desses vírus assumiram o nome de animais: a disseminação de novas doenças para a população humana acontece através da chamada transferência zoonótica, que é uma maneira técnica de dizer que essas infecções saltam dos animais para os humanos. Esse salto de uma espécie para outra é condicionado por questões como proximidade e regularidade do contato, que constroem o ambiente em que a doença é forçada a evoluir. Quando essa interface entre humanos e animais muda, também mudam as condições nas quais essas doenças evoluem. Para além das quatro fornalhas[6], então, encontra-se uma fornalha mais fundamental subjacente aos centros industriais do mundo: a panela de pressão evolutiva criada pela agricultura e urbanização capitalistas. (p.23)
Encontramo-nos em um momento em que a solução contra a COVID-19 ainda está longe de ser consolidada, apesar de haver um nebuloso horizonte, mas já é necessário fortalecer as reflexões a respeito de um futuro que, mantidas as condições de reprodução do capitalismo, representa a possibilidade de surgimento de outras pandemias. Dentre as inúmeras questões que surgem quando este horizonte realista e assustador paira em nossa frente, parece importante compreender se há condições para as universidades e os institutos de pesquisa públicos manterem a capacidade de resposta que conseguiram impor na atualidade. Aparentemente, uma resposta imediata partiria da noção de que houve um ganho simbólico de reconhecimento da finalidade pública destas instituições a tal ponto que impulsionaria uma pressão externa para manter estas atividades segundo os parâmetros atuais. Mas isso pressupõe reconhecer quais são os parâmetros atuais que, internamente, vigem nas universidades públicas. Não é uma reflexão fácil, mas precisa ser enfrentada.
A fragilização do caráter público das Instituições de Ensino Superior
A trajetória das IES públicas brasileiras é bastante complexa e contraditória, mas para fins de uma reflexão mais urgente, considero os últimos trinta anos como definidores de um caráter mais geral de seu funcionamento. De modo algum pretendo negar, por exemplo, o entulho autoritário da ditadura empresarial militar nas gestões, memórias, espaços e conteúdos ensinados nas universidades, mas tais permanências apenas agudizarão o problema exposto nas próximas linhas, portanto, o período pós ditadura deve ser suficiente para indicar certas urgências que exigem ação imediata.
As últimas três décadas envolvem muitas alterações no panorama universitário brasileiro, sobretudo se levarmos em consideração a ampliação do mercado da educação superior comercializada por empresas privadas que se tornam as principais ofertantes de matrículas (cada vez mais na modalidade EaD). Mas, além deste problema que tem sido amplamente debatido em nosso campo, existe uma outra questão, silenciosa, que precisa ser trazida à tona: a amplitude do esfacelamento dos laços de construção da coisa pública nas universidades.
É inegável que um determinado caráter público ainda predomina. Isso ocorre, sobretudo, devido à força de sua instituição (ou restituição) oriunda da luta de movimentos sociais e entidades (proto)sindicais no período pós-ditadura empresarial militar na década de 1980. O mais conhecido é a Constituição de 1988 que garantiu, dentre outras coisas, a autonomia universitária, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e a sua gratuidade; mas não deve ser diminuída a importância do Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos (Pucrce) que organizou a vida de docentes e técnicos segundo parâmetros relacionados com a isonomia, autonomia e a Dedicação Exclusiva.
Este par de regulamentações ajudou a conformar um ambiente de disputas e lutas nas IES na direção de uma construção da coisa pública, abrindo um espaço político de enfrentamento entre posições, projetos e propostas conflitantes no meio acadêmico, a respeito da finalidade da universidade. Como resultado, um vigor político que abriu espaço para experimentações democráticas, construções de formas de participação, conselhos, colegiados, atuação e consolidação de sindicatos como o Andes-SN e a Fasubra, ampliação do alcance do movimento estudantil… A universidade, longe de representar um lugar hegemonicamente libertário e autônomo, ou uma ilha de socialismo cercada por capitalismo selvagem por todos os lados, aparecia como uma possibilidade de experimentação, crítica e, sobretudo, ampliação da noção da coisa pública, do saber autônomo. Este momento conformou toda uma parte de geração de docentes, TAEs e estudantes (muitas/os hoje também docentes ou técnicas/os) que, de certa forma, vivenciaram as IES dentro de uma frágil, mas existente, margem de resistência ao processo de mercantilização da vida.
Esse momento, entretanto, foi muito curto e não pode mais ser considerado como retrato da universidade contemporânea.
A universidade pública que encontramos hoje é mais frágil, sucateada e porosa ao mercado do que era há algumas décadas. A Constituição Federal não cumpriu sua promessa cidadã[7], e as inúmeras emendas que recebeu tornaram seu potencial de ampliação de direitos ainda mais restrito. Ao mesmo tempo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96) trouxe alguns aspectos bastante desfavoráveis que interferem na realidade atual das IES. Por fim, o Pucrce perdeu a validade para a carreira docente a partir promulgação da lei 12772/2012, fruto de imposição de um acordo de gabinete do governo federal com o PROIFES[8] para fragilizar a greve do Andes-SN de 2012.
As alterações constitucionais, da LDB ou da carreira docente, mantiveram uma mesma direção, a metamorfose das garantias da autonomia universitária em algo rígido, burocratizante e direcionado às parcerias público privadas, constituindo uma universidade cujo tripé indissociável se torna, cada vez mais: o empreendedorismo, o gerencialismo e a inovação.
Estas mudanças amadurecem no meio acadêmico e preparam as bases para uma universidade ao mesmo tempo competidora e competitiva, que abandona a esfera da solidariedade e da resistência em nome da mercantilização da educação e da ciência. Concomitantemente, outras mudanças surgiram nas bases formativas, sobretudo no campo da pesquisa e pós-graduação, forjando um ambiente material de trabalho de toda uma geração de estudantes envolto na precariedade, empurrando essas pessoas para uma condição de não realização da dedicação exclusiva. Houve uma naturalização da desvalorização do caráter público do trabalho docente em nome de um suposto reconhecimento mercantil amparado na falácia de um enriquecimento material através de um percurso aparentemente meritocrático.
Estas duas mudanças (normativas e formativas) devem ser entendidas de forma conjunta, e sua síntese representa um significativo dificultador para a manutenção de uma instituição adequada às demandas populares e globais que surgem a todo instante. A resistência às novas expressões da crise do capital exige solidariedade científica universal, caráter público das finalidades das pesquisas e produção de conhecimento não mercantil. A universidade pública brasileira não está se movendo nesta direção.
O novo tripé das universidades: empreendedorismo, gerencialismo e inovação.
Milton Santos, ao debater o conceito de técnica como conformadora do espaço-tempo, dialoga de maneira profunda com a noção de trabalho em Marx. De forma breve, sua interpretação sobre a maneira como os processos de trabalho e suas alterações conformam a história das sociedades, pode ser identificada a partir de uma historicização das técnicas em ação no espaço. Técnica, entretanto, não deve ser pensada como sinônimo exclusivo de tecnologia, pois inclui também sistemas de ação, tais como as formas de organização dos processos de trabalho.
Assim, a materialidade que nos rodeia e absorve, a nossa espacialidade, é cercada por técnicas de todos os lados, de todos os tipos. Se queremos compreender, portanto, como o espaço torna-se e reitera-se público (em se tratando de Brasil é fundamental partir de um pressuposto histórico de tendência constante de privatização dos espaços), é necessário compreendermos se as técnicas hegemônicas e seu sistema de objetos estão relacionadas com um sistema de ação pública. Cada vez menos essa correspondência é regra, e todo um sistema normativo conformador de determinadas ações está metamorfoseando o espaço universitário no local da expressão das Parcerias Público Privadas (PPP).
Portanto, o mero fato da universidade ser nomeada como pública, ou mesmo ter vivenciado um recente período histórico de hegemonia de um caráter público de seu funcionamento não garante, de fato, a sua manutenção como tal. As ações tomadas a respeito destas IES estão, aliás, organizadas de modo a metamorfosear o próprio sentido de público. O espaço desta universidade está, cada vez mais, recheado de conteúdo privado[9].
Esta privatização tem ocorrido de forma gradativa, abrangente e constante. Primeiramente, alguns aspectos normativos serão apresentados para depois tratarmos de um aspecto material formativo que tem sido muito pouco debatido, as bolsas de iniciação científica e seu significado formador de empreendedorismo.
Docentes universitários, hoje, chegam a seus cargos após uma formação bastante precarizada, na medida em que realizam suas pós-graduações (mestrado e doutorado) sem direitos trabalhistas reconhecidos, isto é, sem férias, sem contribuição para aposentadoria, com bolsas sucateadas, sem décimo terceiro, etc. É importante destacar que a vulnerabilidade de trabalhadoras/es da educação e pesquisa em processo formativo conformará um ambiente material que estimula seu comportamento alheio à lógica da dedicação exclusiva. Este processo de trabalho naturaliza ações de empreendedorismo complementares às suas pesquisas, articuladas totalmente a elas, ou simplesmente bicos aleatórios informais como uma saída para a crise material do/a pesquisador/a. As bolsas de mestrado e doutorado[10] (valores do CNPq), por exemplo, não sofrem reajuste desde 2013 e equivalem a R$1500,00 e R$2200,00 respectivamente. Caso houvesse pelo menos uma correção inflacionária segundo o IPCA, as bolsas instauradas no surgimento o Plano Real (1995) alcançariam as cifras de (em dezembro de 2020) R$ 3963,52 (M) e R$ 5869,29 (D), um valor próximo ao salário mínimo reivindicado pelo DIEESE, que é de R$ 5.304,90.
Esta condição precária dialoga com o sentido de alteração na lei da carreira docente imposta em 2012, retirando os docentes do PUCRCE. Enquanto este previa que a progressão funcional seria feita “mediante avaliação de desempenho”[11], a nova lei insere[12], dentre outras coisas, “a assiduidade, a disciplina, o desempenho didático-pedagógico, a capacidade de iniciativa, produtividade e responsabilidade” (grifo meu).
Este empreendedorismo, fruto do produtivismo que é estimulado, sobretudo, na perversa lógica de funcionamento da pós-graduação, carrega consigo a tendência da mutação do trabalho docente que antes se orientava segundo uma lógica forjada no tempo e no espaço público para um trabalho “abstrato” organizado, e medido, cada vez mais, segundo a temporalidade da produção, da intensificação da produtividade, da valorização (formação do valor). As características oriundas do empreendedorismo, como a ideia do “self made man” que carrega consigo inclusive seus instrumentos de trabalho, tornava-se, antes da questão pandêmica, cada vez mais comum entre docentes nas universidades. Simbolicamente, muitos cursos receberam contêineres (símbolo da efemeridade just-in-time da acumulação flexível) para cumprir o papel de salas de aula como se isso fosse, inclusive, uma inovação tecnológica interessante[13]. Iniciativa, contêineres, home office, aulas gravadas, a migração do docente para uma espécie de telemarketing conteudista anda a passos muito largos.
Outra alteração normativa significativa foi a implementação da “inovação” nos domínios da ciência e tecnologia. Segundo material organizado pelo Andes-SN[14], a emenda constitucional nº 85/2015 introduziu o conceito de inovação, alterando os artigos 218 e 219 da Constituição e estendendo o financiamento público de C&T para a “inovação nas empresas”. Esta emenda criou a possibilidade de compartilhamento de pessoal, recursos financeiros e materiais do setor público com o privado, que mais tarde, início de 2016, teve sua regulamentação garantida pelo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei 13.243/16).
Assim, o empreendedorismo forjado pelas condições de trabalho vai encontrar seu par nesta perestroika acadêmica, impulsionando as parcerias entre empresas e universidades, onde aquelas se apropriam de material e “recursos humanos” para capturar para si o resultado lucrativo das pesquisas. Um exemplo interessante é a relação entre o Idor[15], a FINEP, a Faperj e a quantidade de profissionais deste Instituto que possui relações com universidades públicas. O Idor pertence à maior rede hospitalar privada do país, cujo proprietário é um dos principais bilionários brasileiros.
Mas o empreendedorismo e a inovação ganham reforço, também, com a asfixia política das universidades brasileiras. Cada vez mais estas instituições tomam decisões rápidas, diminuindo a disputa em seus conselhos, sobretudo em tempos de plenárias remotas. Mas existem várias razões para uma ausência de experimentações de formas políticas mais arejadas nas universidades. Amarrações não faltam, como a famigerada lista tríplice[16], mas também existe uma utilização de cargos como forma de complementação de renda ou de requisito para progressões funcionais (empreendedorismo arrivista) ou mesmo intervenções diretas que implementam modos privados de gestão como foi o caso da EBSERH, imposta na base da violência policial quando foi preciso, e que retirou os hospitais universitários do universo político democrático das universidades, alterando a forma da escolha de seu quadro de dirigentes que não precisa mais passar por um processo eleitoral, mas por indicações.
Mas uma das regulamentações que mais estimula um enrijecimento político, que desaguará num gerencialismo pragmático, é o Parágrafo Único do artigo 56 da LDB[17], responsável por criar uma regra draconiana que impede a execução de qualquer experimentação democrática efetiva: “[…] os docentes ocuparão setenta por cento dos assentos em cada órgão colegiado e comissão, inclusive nos que tratarem da elaboração e modificações estatutárias e regimentais, bem como da escolha de dirigentes”. Esta regulamentação carrega, pelo menos, um duplo problema. Em primeiro lugar, reforça uma falsa imagem de uma democracia meritocrática iluminada, na qual as pessoas detentoras de maiores títulos de educação formal seriam, necessariamente, as mais capazes politicamente de gerir uma universidade. O corolário é tautológico; docentes que, cada vez mais, são organizados segundo a lógica empreendedora que joga a política para o escanteio em nome do gerencialismo tornam-se, cada vez mais, detentores e condutores da hegemonia política das comunidades acadêmicas. Surge uma retroalimentação política em que grupos que possuem um maior potencial de financiamento (oriundos das áreas mais “inovadoras”) tornam-se cada vez mais poderosos politicamente, alimentando a falsa impressão de meritocracia, neutralidade científica e distinção.
Como a carreira atual estimula, ao mesmo tempo, o empreendedorismo e o carguismo gerencialista, a tendência de esvaziamento das lutas políticas organizadas pelas entidades de representação da classe trabalhadora, como os sindicatos, perde força para uma tendência à ocupação de cargos institucionais, criando uma passividade que esvazia um conteúdo de vigor político outrora experimentado, construindo uma universidade pública com tempero privatista.
Assim, a política, a participação, a criação de novos problemas, de novas pautas e de novas formas de organização ficam a reboque, tornam-se marginais e perdem a capacidade de impactar na academia, arejando-a. A inovação só pode ser tecnológica e mercantil, já uma transformação política que instaure alguma radicalidade democrática não é nem estimulada, nem desejada. Um dos pontos mais perversos resultante desta condição é a dificuldade de reivindicação do movimento estudantil, de graduação ou pós, ou das/os ocupantes de cargos Técnicos Administrativos em Educação (TAE) que, constantemente vêem suas pautas decididas por uma maioria docente que pode ou não ser sensível às pautas, conformando uma espécie de docentismo.
Como consequência, determinados problemas dificilmente ganham visibilidade apesar de sua gravidade. Um destes problemas, que opera na esfera formativa, tem relação direta com o caráter público das pesquisas que futuramente serão desenvolvidas nas universidades: visitemos o curioso caso das bolsas de iniciação científica (IC).
A geração REUNI: os cérebros-de-obra.
Dois fatos recentes, relativamente superficiais, chamaram a atenção em debates das redes sociais travados pela comunidade universitária país afora: uma matéria não assinada de um suposto docente que qualifica uma nova geração de estudantes como sendo “neoliberais de esquerda” e a participação de um doutorando no “reality” Big Brother Brasil. Obviamente que não deve ser atribuído a posts de Facebook o papel de indicador rigoroso da existência de um debate sistemático sobre qualquer tema, mas não pode ser negado que se trata de um apontador dos rumos que o senso comum tem construído nas esferas do “home office” universitário.
Independentemente da qualidade duvidosa do texto, método e argumentos utilizados pelo autor (ou autora) na revista Piauí[18], e longe de querer entrar na polêmica anual a respeito do esquerdômetro que mede quem assiste ou não BBB; chama a atenção o fato de que em ambas as situações, faltou uma avaliação mais realista da condição de reprodução de estudantes de pós-graduação, isto é, das condições materiais de realização do trabalho formativo em ensino e pesquisa.
A escolha do doutorando de se afastar, ainda que temporariamente, de seus estudos para participar de um programa de TV voltado para o enriquecimento individual através da superexposição espetacular não deve ser avaliado de maneira isolada, individual. Não interessa aqui julgar a decisão do jovem doutorando que preferiu o paredão às bancas. Existe algo mais profundo nesta situação que é a naturalização do rompimento da finalidade pública da pesquisa, e da formação docente em torno dela, e que era expresso no conceito de Dedicação Exclusiva. Ao invés do reconhecimento e estímulo a respeito da importância de um ganho estável e constante capaz de garantir um trabalho dedicado à produção de conhecimento, o que está presente há algum tempo para pós-graduandas/os é um rebaixamento deste sentido do trabalho para sua equivalência a qualquer outra esfera da produção. Mas isto está bem longe, é bom demarcar, de um despertar classista da docência, isto é, de um reconhecimento do professor universitário como um trabalhador comum, um sujeito social capaz de se organizar coletivamente em torno da solidariedade da classe e lutar contra sua exploração. O que ocorre é uma substituição da realização social da profissão segundo parâmetros públicos, por uma localização empreendedora onde a carreira docente se torna uma chance a mais de algum tipo de enriquecimento material e pessoal, a depender das oportunidades que surgirem, isto é, uma dominação mercantil plena.
A escolha, portanto, entre doutoramento e BBB deixa a esfera da qualidade do trabalho e adentra de maneira acabada na esfera da quantidade. O que mais impressiona é a incapacidade de parte do meio acadêmico em perceber isso, transformando o debate em uma questão moral sobre ser ou não ser um “brother”. O tamanho da perda do sentido da profissão que está contido na mera existência deste tipo de debate revela o quanto a privatização da universidade, que altera a finalidade de sua profissão, é pouco compreendida, apesar de bastante aceita. A escolha entre o BBB e o PHD já estava sendo feita há muito tempo por uma geração que nunca experimentou sequer algo parecido ao reconhecimento social da pesquisa como uma forma plena de trabalho.
Longe de atribuir uma classificação grotesca como “neoliberalismo de esquerda”, como acusou o texto apócrifo publicado na revista dos herdeiros, que não procura compreender as movimentações coletivas de estudantes e algumas de suas “rebeldias conservadoras” atuais, parece importante entender melhor a maneira como se processa esse esvaziamento de um sentido público da profissão docente. Apontaremos, portanto, algumas evidências que, se não explicam sozinhas o que alimenta um certo comportamento permissivo da academia contemporânea, não podem ser dispensadas para compreender o fenômeno.
Deve ser destacado que, na segunda década do século XXI, estamos acompanhando o processo de doutoramento mais intensivo das primeiras gerações que entraram nas universidades públicas pelo sistema de cotas. Levando em consideração o pioneirismo da UERJ e da UnB que implementaram estas políticas nos anos de 2003/2004, as primeiras defesas de tese devem ter acontecido a partir do ano de 2014[19]. Portanto, em 2021, estamos presenciando a consolidação de um número mais robusto de carreiras acadêmicas que são fruto da consolidação das cotas (a Lei de Cotas é de 2012) e que começam a integrar a pós-graduação de forma cada vez mais intensiva[20].
Acontece que, junto com esta política de inclusão, houve determinadas ações contraditórias que construíram um ambiente material que, ao mesmo tempo em que acolheu um leque mais amplo das camadas sociais brasileiras para suas salas de aulas e laboratórios, sucateou a universidade ofertada. As cotas chegam, mas também chegou o REUNI, em 2007, com a promessa de ampliação das universidades públicas, porém, sem um lastro orçamentário condizente com a ampliação estimulada, o que deveria incluir aumento significativo de concurso para docentes, e sem capacidade estrutural de realização. O resultado foi o surgimento de cursos junto às ruínas do REUNI que estão espalhadas em quase todos os campi federais do país, e, é claro, a utilização de contêineres como solução…
Mas o ano de 2007 carrega uma outra determinação que não costuma ser reivindicada e debatida como é feito com o tão “celebrado” REUNI. Este ano marca o início de um período que ainda não terminou e que manteve congelado o valor das bolsas de iniciação científica no Brasil. Este dado passa silencioso nos corredores das instituições, talvez haja alguma vergonha de docentes em divulgar as chamadas de seleção para preenchimento de vagas, cheio de exigências, mas com um valor pago pelo trabalho de dedicação à pesquisa de meio turno (20h) irrisório. Mas não passa disso. O que é possível afirmar é que, de fato, mês a mês, há 14 anos, estudantes universitárias/os iniciam suas carreiras de pesquisadoras/es recebendo R$ 400,00. O valor das bolsas de mestrado e doutorado não são reajustados – desde 2013, como já foi mencionado acima – mas foi nos idos de 2006 a última vez que, ao haver reajuste de bolsas, foram também contempladas as de IC.[21]
Não podemos afirmar que isso foi uma reserva de gastos para distribuir com as bolsas de permanência de estudantes que seriam necessárias pós REUNI, confirmando sua fragilidade orçamentária, mas podemos confirmar que significa uma defasagem monetária assustadora, pois a atual bolsa de IC representa apenas 30% do valor corrigido pelo IPCA tomando como base reajustes continuados desde 1995 (plano Real), o que representaria uma bolsa de R$1.321,14, um pouco menos que a atual bolsa de mestrado.
Portanto, a geração que hoje chega à pós-graduação, provavelmente vivenciou uma experiência de bolsas profundamente precarizada, o que estimula uma naturalização da impossibilidade de realização da Dedicação Exclusiva. A não ser que a/o estudante possua um suporte familiar que propicie sua reprodução, reiterando a ideia de que pesquisa é um não-trabalho, a/o bolsista deverá trabalhar para a pesquisa nas horas vagas de seus outros trabalhos, obviamente atropelando a assinatura de documentos que exigem a dedicação de 20h como pressuposto de recebimento das bolsas. Até mesmo a lógica contratual de ruptura com a DE é simulada e ensinada.
Não há saída: ou a/o bolsista adentra a informalidade rompendo o contrato da DE, ou amargará um pagamento que mal consegue repor as passagens de ônibus, quanto mais estimular a formação de uma biblioteca pessoal inicial. Obviamente que outra saída começará a ser organizada: vender sua inteligência de pesquisa para alguma empresa que quiser comprar suas ideias, ou melhor, usar de sua capacidade crítica para solucionar problemas que serão definidos segundo a lógica empresarial. Está armada a cilada, a materialidade da construção da carreira docente, vista através de seu braço de pesquisa, é uma formação que permite que o capital se aproprie, aliás de forma barata, de pensadoras/es que acabam sendo tratadas/os como verdadeiras/os cérebros-de-obra: trata-se da expropriação da curiosidade científica em nome de uma racionalidade pragmática. Milton Santos chama esse fenômeno de perversão das ciências. Mas pode também ser apontado como mais um traço de conformação do neoliberalismo – que, aliás, dispensa adjetivação.
A continuidade desta formação segue com a precarização durante o mestrado e o doutoramento para, ao adentrar na carreira docente, o jovem ingressante poder usufruir da estrutura universitária para empreender, inovar e gerenciar.
Para completar o ciclo, a maior parte destas/es estudantes da geração REUNI concluirá seu doutoramento após 2016, isto é, após a implementação da Emenda Constitucional 95 que estabeleceu o teto de gastos e aprofundou o sucateamento, sobretudo, da educação e da saúde. A contrarreforma administrativa, caso aprovada, deverá coroar o ciclo. Trata-se de uma trajetória pouco afeita às garantias de um trabalho organizado segundo a lógica pública.
Retornando ao questionamento inicial deste texto a respeito das condições de manutenção de um satisfatório caráter público das instituições de ensino superior no Brasil, estamos muito distantes de produzir uma resposta positiva. Temos assistido ao crescimento de um antiintelectualismo que se alimenta da morte do tempo público no ensino, pesquisa e extensão. As condições de realização de investigações científicas cada vez mais se tornam dependentes de um mercado que é organizado por um capitalismo dependente. E a criatividade questionadora da universidade cada vez mais é reconhecida, medida e celebrada segundo valores oriundos da lógica do mercado que ocupa, inclusive, e de forma crescente, comitês científicos das revistas e editoras de divulgação acadêmica.
O enfraquecimento do sentido público como uma finalidade da educação, seja na graduação, na pesquisa ou extensão, tem repercussões perversas que dificultam a manutenção de um sujeito coletivo de investigação de problemas, e organizador de soluções, genuinamente populares.
A escancarada guerra comercial e financeira da produção, do patenteamento e da distribuição (comercialização) das vacinas que são capazes de proteger a população mundial contra os males gerados pelo SARS-CoV-2 é um indicador cristalino do quão distante estamos da construção de uma política humanitária global de cuidados e solidariedade em nome da vida.
O esfacelamento da condição pública de nossas universidades brasileiras, em conjunto com o enfraquecimento do combalido e resistente SUS, representa uma derrota de amplitude internacional. Somente uma coordenação política global e de caráter público de produção de vacinas, que inclui a necessária quebra de patentes, será capaz de garantir um mundo que não seja dividido por fronteiras sanitárias entre territórios pobres-covidianos e ricos não-covidianos. Da mesma maneira, somente uma política pública, socialista e internacional será capaz de combater a gestão ou a disseminação de uma próxima pandemia. Caso seja compreendido o lugar possível das universidades brasileiras neste jogo estratégico global, a retomada das realizações públicas é urgente. E não será disputando a mesa diretora da câmara dos deputados que vamos conseguir estes resultados.
[1] FONASEFE: Fórum das Entidades Nacionais dos Servidores Públicos Federais. CNESF: Coordenação Nacional das Entidades de Servidores Federais.
[2] Braço sindical criado pelo PT na tentativa de substituir e combater o ANDES-SN, que havia deixado a base da CUT em 2005. Hoje em dia, esta entidade defende que docentes do ensino superior furem a fila da vacina contra a COVID-19, e que disputem a direção da FUNPRESP a fim de gerir melhor os fundos da “previdência privada”.
[3] https://chuangcn.org/blog/
[4] Aqui o link para a publicação do texto em formato de blog, e que possui também link para download no formato de ebook (cuja numeração de páginas é a adotada aqui neste texto): http://afita.com.br/outras-fitas-contagio-social-coronavirus-china-capitalismo-tardio-e-o-mundo-natural/
[5] A crescente “desindustrialização” brasileira torna a nossa condição ainda mais dramática na medida em que o agronegócio ganhará maior centralidade, inclusive, sob a benção de toda a desregulamentação da “boiada” ambiental.
[6] A cidade de Wuhan é conhecida coloquialmente como uma das “quatro fornalhas” (四大火炉) da China por seu verão opressivamente úmido e quente, compartilhado com Chongqing, Nanjing e, alternadamente, Nanchang ou Changsha, todas agitadas e antigas, localizadas perto ou ao longo do vale do rio Yangtzé. (p.15)
[7] A CF, de modo geral, mesmo garantindo aspectos importantes de cidadania, por exemplo, no campo da educação, representou uma trajetória bastante tímida de ampliação democrática para o país naquele momento. Cf. texto anterior desta coluna: https://universidadeaesquerda.com.br/coluna/nos-que-la-estivemos-por-vos-esperavamos/
[9] Em textos futuros abordarei, de forma mais direta, outro aspecto grave da metamorfose em curso que é a potencial privatização efetiva do espaço das universidades públicas através da mudança da destinação de seus campi.
[10] Sobre a situação da pós-graduação e suas bolsas, conferir estes dois excelentes textos oriundos da luta das APG do estado do Rio que se organizaram em um comando estadual de greve em 2012. O primeiro, de Esther Majerowicz Gouveia traz elementos quantitativos incontornáveis para entender do achatamento das bolsas ao longo do período de existência do Plano Real: https://revistacantareira.files.wordpress.com/2012/09/ultimo-artigo1.pdf O segundo, de André Coutinho Augustin, atualiza alguns dados para anos posteriores à greve de 2012 até 2016 https://enquantoseluta.wordpress.com/tag/cnpq/.
[11] Conferir: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d94664.htm
[12] Conferir: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12772.htm
[13] Pausa para uma anedota. Certa vez, quando ocupava a presidência da Adufrj-ssind, fui convidado e debater terceirização na universidade com um representante do Sintufrj, um reitor e um ex-reitor. Organizei a fala a partir da crítica aos contêineres, debate que realizava já há algum tempo na comunidade acadêmica. Em determinado momento, o então reitor me interpelou, defendendo aqueles espaços efêmeros inovadores, reivindicando que arquitetos defendiam seu uso como uma forma contemporânea de projeto espacial high tech, etc. A defesa do impossível era tão necessária e automática que apenas ao final da fala o reitor lembrou-se que seu debatedor e crítico daqueles espaços removíveis…também era arquiteto (justiça seja feita, ele reconheceu o fato e retirou seu argumento do debate assim que lembrou do importante detalhe).
[14] Conferir material do Andes-SN a este respeito em: https://issuu.com/andessn/docs/imp-doc-1508946885 (ou baixe o mesmo material diretamente no site do Andes em formato pdf: www.andes.org.br)
[15] https://www.rededorsaoluiz.com.br/instituto/idor/o-instituto/conheca-o-idor
[16] A reivindicação de revogação da lei 9192/95 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9192.htm), pautada nas greves docentes, nunca foi acatada pelos governos democraticamente eleitos após FHC que a implementou (e usou de forma autoritária na UFRJ). Bastava uma “canetada” para evitar as várias BIC que têm sido usadas para nomear reitorias biônicas atualmente. Agora é tarde.
[17] Da mesma forma que a lista tríplice, apesar de ser pauta de várias greves, nenhum governo concordou em retirar nem mesmo este parágrafo único de um artigo da LDB, numa demonstração de incapacidade dialógica ímpar. Conferir: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
[18] Algumas possibilidades de desdobramento do referido texto que talvez identifique quem o escreveu: será que ele estará disponível no Academia.edu em algum perfil (fake?); será publicado em lívro caça-níquel, desses que até promoção de black-friday nos enviam para constar em publicações valorizadas pela CAPES; ou será que a Piauí vai receber um Qualis e se tornar a Lancet das ciências sociais brasileiras?
[19] Tomando como caso hipotético de realização sem interrupções de graduação, mestrado e doutorado (dez anos no total 4+2+4). Sabemos que isso é a minoria da realidade universitária, apenas adotamos este marco para pontuar um recorte temporal.
[20] Apesar de vários cursos de pós-graduação, inclusive o meu, ainda não ofertar cotas em seus editais de seleção, o que gera um certo represamento de entrada na pós. Houve já esforços do governo federal em acabar com essa política, ou com seu estímulo. Conferir: https://educacao.uol.com.br/noticias/agencia-estado/2020/07/18/presidente-da-capes-pediu-para-mec-acabar-com-incentivo-a-cotas-na-pos-graduacao.htm
[21] Em todos os gráficos há arredondamento de valores, retiramos as casas decimais para facilitar a visualização. Da mesma maneira, foi considerado como valor de 2021 do IPCA a correção relativa a dezembro de 2020 que já estava disponível quando este texto foi escrito.
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