Em muitas universidades o ano letivo mal havia começado. Calouros ainda comemoravam seu ingresso, a comunidade acadêmica se reencontrava após as férias e, em poucas semanas, as universidades iniciaram suas longas quarentenas em prol de salvaguardar sua comunidade do contágio do Covid-19.
Como em diversas outras situações sanitárias difíceis que este país já enfrentou — como zika vírus e chikungunya, e que continua enfrentando como no caso da dengue —, as universidades públicas prontificaram-se em fazer o que se espera delas: debruçaram-se a entender o quadro das suas regiões, a debater sobre os cuidados necessários em meio a pandemia, iniciaram pesquisas sobre o vírus, construíram respiradores, etc.
Mesmo os cursos que não são ligados às ciências da saúde se colocaram a pensar os efeitos diversos da pandemia, do isolamento e de tudo mais o que surge na conjuntura que pudessem dispor seu conhecimento à análise.
A fim de manter uma comunicação dinâmica, muitos professores entraram na nova moda das lives que tantas outras personalidades aderiram. E como há muito não acontecia, a universidade se abriu de modo muito singular para que qualquer um pudesse ter acesso a “balbúrdia” por ela realizada. A facilidade de abrir o vídeo e deixar tocar e a possibilidade de fazer interlocuções para além da própria comunidade universitária diversificou ainda mais o leque de ouvintes que os professores tinham.
Em contrapartida, as instituições privadas prontamente introduziram em todos os seus cursos os sistemas de ensino a distância (EaD) que já possuem, dizendo que deixariam as atividades práticas para quando fosse “mais seguro” — inclusive, para algumas dessas instituições, esse momento de retorno à normalidade já chegou e as aulas presenciais que não puderam ser transpostas para o “ensino remoto” já voltam a acontecer. O ensino básico também foi, logo em seguida, tomado pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), agravando a situação já precária de trabalho dos professores.
Não à toa que as universidades públicas são assediadas pelo empresariado, através dos jornais locais, especialmente, para que retornem às atividades curriculares, oferecendo inclusive doações de materiais para os alunos que não tiverem acesso para a realização das atividades de ensino remoto. Vistas como um empecilho à “livre concorrência”, não é de hoje que as instituições privadas buscam tirar do caminho as universidades públicas, seja por meio da competição pelos recursos públicos, através de programas como o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Programa de Financiamento Estudantil (Fies), ou por meio de políticas como o Future-se, que buscava destruir em todas as esferas das instituições públicas de ensino o seu caráter público.
Para a classe dominante, a pandemia é tratada como mais uma oportunidade de enriquecer. Logo, fazer com que o Estado compre e distribua por todo o país o produto que vendem é uma ótima maneira de se aproveitar desse momento tão difícil para todos e fazê-lo virar dinheiro.
O interesse dessas grandes empresas da educação e do empresariado não é que a universidade pública se empenhe em buscar soluções para resolver aquilo que a pandemia impõe — no fundo não importa se o conhecimento produzido será de qualidade, só importa que isso gere-lhes algum tipo de ganho e que não destrua o crescimento das vendas de matrículas, ou que elas sejam destruídas de uma vez por todas.
Consequentemente, quando a universidade pública consegue encontrar o caminho para se recolocar em sua função social, ela precisa ser desautorizada, deslegitimada. E o argumento da vez é que são antiquadas e não conseguem se adequar a realidade — que seria formar alunos para o mercado de trabalho e não pensar nas questões fundamentais de seu tempo. O discurso de Michel Temer se repete: não pense em crise, trabalhe.
Infelizmente, mesmo dentro da universidade tal discurso se prolifera, em especial entre os próprios professores. Muitos estão diretamente envolvidos em suas pesquisas com os setores do empresariado que lucrarão com este “novo normal” imposto a todo o custo e pressionam por dentro das instâncias deliberativas que essa decisão seja tomada logo, atropelando os debates que precisam ser travados para que se compreenda o que tal decisão significa, não só para a universidade, mas também para o ensino como um todo — do fundamental à pós-graduação.
Por isso que a defesa da universidade pública não pode partir de um caráter acrítico, sem compreender as contradições que existem em seu interior. As relações público-privadas minaram a autonomia tão sutilmente que, aos olhos menos treinados, quase passam despercebidos os interesses por trás de professores e gestores que defendem saídas para a universidade alinhadas aos interesses das grandes empresas de educação e seus aparelhos de hegemonia.
É necessário que se façam as perguntas adequadas ao momento: qual a universidade que queremos? Uma universidade que se dedique a criticar, questionar e buscar respostas, ou uma universidade que se atenha a formar profissionais técnicos, que saibam no mínimo buscar em um manual uma resposta pronta para o que está colocado à sua frente? E quais são os meios que nos levam a esse objetivo?
Certamente, a quem escolhe por uma universidade crítica, o ensino remoto não é a ferramenta essencial, bem como se ausentar nesse momento de crise não é. As opções que temos não são apenas ter ensino remoto ou “não fazer nada” — muito pelo contrário, há uma série de universidades escancarando que não são só nas aulas que se constrói o conhecimento.
Mas para que seja possível seguir esse caminho, é preciso que se pense o trabalho docente nas universidades públicas para além das aulas, que se retome as pesquisas e permitam que os pesquisadores sejam, nesse momento, pesquisadores. Que possam se dedicar integralmente às tarefas exigidas e, se em um ou outro curso não existam demandas da pandemia, que estes professores e estudantes se ocupem em oferecer para a sociedade o conhecimento que estão construindo, que possam, na medida do possível, retomar os laços perdidos entre a população e a própria universidade. Sem sombra de dúvidas temos muito o que discutir além das salas de aula.
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