A doença transmitida para os povos indígenas foi utilizada, inclusive, de maneira consciente como um meio para o seu extermínio. Era prática comum no século XIX deixar roupas infectadas com sarampo e varíola na mata ou “presenteá-las” para diversos membros das aldeias, fazendo com que estes ficassem contaminados e consequentemente espalhassem o vírus em suas comunidades.
A violência e assimilação destas práticas, com seus tons de inevitabilidade para um “desenvolvimento” civilizatório macabro, justificadas por interesses garimpeiros, fundiários e missionários, operam uma marcha de apagamento e tentativa de extinção desses povos que perdura até os dias atuais.
Após a ditadura empresarial-militar (período que deixou ao menos 8,3 mil índios mortos), um dos artigos Constituintes de 1988 foi o de número 231, onde os direitos das comunidades indígenas foram pautados e os processos de demarcação das terras indígenas tinham uma previsão para 5 anos. A Fundação Nacional do Índio, (FUNAI), fundada em 1967, passou a ter uma função mais ativa após a redemocratização, e após um ano foi criado o IBAMA. No governo Lula foi criada a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), para atenção da saúde básica para índios.
Ainda que os avanços nas lutas em relação ao reconhecimento de terras indígenas e certos amparos institucionais tenham aparecido neste período, o processo de reconhecimento oficial destas se arrasta há décadas sem tréguas. A vida de diversos indígenas tem se perdido em disputas que resultam em assassinatos encomendados, especialmente seus líderes.
Além das mortes de indígenas causadas por garimpeiros, foram sucessivas as desapropriações por causa de obras. Na instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, 10 mil famílias de povos indígenas, ribeirinhos, agricultores e moradores das áreas urbanas foram removidas, segundo os números do Movimento dos Atingidos por Barragens.
Ao refletir sobre a situação das comunidades indígenas neste período de governo Bolsonaro, cabe ressaltar o que aconteceu em Caruaru como um episódio simbólico: escolas e postos de saúde indígenas foram incendiados em Pernambuco “misteriosamente”, após sua eleição.
Diversas declarações do atual Presidente deixaram claros seus projetos para as terras durante e após as eleições. Em seu governo entrou em vigor um processo de desmonte da FUNAI. A responsabilidade da fundação foi transferida do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura e as demarcações de terras indígenas foram entregues nas mãos dos ruralistas.
Outra modificação é que o SESAI parou de atender indígenas nas comunidades urbanas, por exemplo, e passou a enxergar estes como não índios. Esta política, hoje, reflete-se na divergência dos dados atuais sobre os números de infectados e óbitos por Covid-19 nas comunidades indígenas. Na plataforma do SESAI os dados atuais seriam de 10.130 contaminados e 209 óbitos. Já na Instituição Social são 13.801 contaminados e 438 mortos.
A pandemia do Coronavírus, essa nova Xawara, traça um horizonte mórbido, com diversos fatores que colocam em risco ainda maior as comunidades indígenas.
Vetor chamado “Garimpo”
Não se trata somente das políticas de expropriação de terras. A Covid-19 também é levada para dentro das comunidades indígenas através dos garimpeiros ilegais, que seguem suas explorações neste momento. A estimativa feita pela Fiocruz, é de que mais de 20 mil garimpeiros ilegais ocupam e exploram reservas; entram e saem sem nenhum controle. Em março, a Funai lançou uma portaria que restringia a entrada em Terras indígenas, mas não garantiu a proteção dos invasores de garimpeiros e madeireiros.
A Covid-19 se espalha na Terra Indígena Yanomami entre indígenas que vivem perto de zonas de garimpo ilegal de ouro. Em junho, o Instituto Socioambiental (ISA) lançou um relatório que alertava para o risco de contaminação na TIY caso o governo não atuasse para retirar os garimpeiros do território.
Somente no mês de junho foram identificados 109 hectares degradados, ante 39,1 hectares do mês anterior. As regiões onde foram observados aumento foram: Araçá, Waikas, Kayanaú – as mesmas onde foram notificados os caso da Convid-19. Também foram encontradas novas áreas em em Uxiu, Parima, Uraricoera e Homoxi. O aumento em Waikas e Araçá, porém, foram significativamente maiores.
Em abril, os alertas de desmatamento na amazônia aumentaram quase 30% durante a pandemia. O que levou a uma operação do IBAMA para tentar fiscalizar o aumento das áreas de desmatamento. O governo respondeu com a exoneração de seu diretor, por não ter limitado a fiscalização.
Outros fatores que contribuíram para as contaminações foram os indígenas que necessitaram trabalhar e voltar para suas aldeias, como foi o caso dos trabalhadores nas fábricas frigoríficas da JBS. Assim como a busca pelo auxílio emergencial, onde muitos indígenas que não possuíam internet tiveram que se deslocar até as cidades, enfrentando filas e aglomerações para sacar os benefícios, expondo-se ao covid e voltando contaminados para suas comunidades.
A saúde das comunidades indígenas
A doença se propaga rapidamente dentro das aldeias pela maneira como são estruturadas e pela falta de acesso aos hospitais e postos de saúde. Tanto em função da distância, bem como por seu caráter restrito.
Com leitos de UTI que colapsaram já no mês de abril, em Manaus, e os três meses de atraso dos lotes de testes rápidos que estão chegando à região agora, onde estão os índios do brasil mais próximos da Colômbia, a contenção da pandemia se torna ainda mais difícil. Ainda mais quando o próprio plano de medidas de contingências lançado pelo SESAI tomou como base as medidas genéricas da ANVISA, sem conjecturar o caráter específico das comunidades indígenas e suas necessidades. A FUNAI, que recebe mais de 11 milhões para recursos emergenciais para a proteção dos povos indígenas, gastou menos da metade (39%).
A letalidade é muito maior entre estas comunidades, como é o caso da comunidade Xikrin, em que é o povo mais afetado no Pará (uma morte a cada quatro dias) e a Comunidade kaiowá (MS) onde em 17 dias o número de indígenas infectados cresceu de 1 para 75 casos. Essa falta de estrutura hospitalar na região é gritante: como atender 18.000 indígenas para o sistema público de saúde que conta com apenas 35 leitos de UTI, no município de Dourados?
Além disso, cabe ressaltar que a fatalidade é comum principalmente entre as lideranças das aldeias, como os caciques e pajés, que costumam ser os mais velhos, fazendo parte do grupo de risco.
Na quarta-feira passada (08/07), foi sancionado o Projeto de Lei 1142/2020, que reconhece os povos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais como “grupos de extrema vulnerabilidade”. Entretanto, foram vetados especificamente os trechos que preveem que o Governo seja obrigado a fornecer acesso a água potável, distribuição de cestas básicas, distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e de desinfecção para as aldeias. Além da oferta emergencial de leitos hospitalares e de terapia intensiva e a obrigação de comprar ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea para essas comunidades. Ou seja, é uma política vazia, sem nenhuma implicação efetiva para mudar a grave situação em que essa população se encontra.
As mortes por homicídios também continuam ocorrendo durante esse período, como o caso do indígena Ari Uru-eu-wau-wau, de 33 anos, morto na madrugada de sábado (18) em Tarilândia, distrito de Jaru (RO). Ele já vinha sofrendo ameaças há meses, segundo uma liderança indígena Karipuna. Se tratava de uma liderança que registrava e denunciava as extrações ilegais de madeira dentro da aldeia, pois fazia parte do grupo de vigilância do povo indígena Uru-eu-wau-wau.
Essas mortes, sejam por assassinatos ou por negligência do poder público, possuem um impacto simbólico significativo para as comunidades, pois são mortes consequentes de intenções de amordaçar a luta da defesa de direitos destes povos. Bem como enfraquecem e os desarticulam política e culturalmente, como é o caso da morte de anciões.
O luto interrompido e suas marcas
Ao falar sobre as perdas culturais, apagamentos e silenciamentos, uma das principais questões de dor contida em diversos relatos de comunidades indígenas se dá por causa da suspensão de diversos rituais para tentar frear o contágio nos territórios. Com base em orientações da Organização Mundial da Saúde, o Brasil determina que mortos pela Covid-19 sejam enterrados com caixão lacrado ou cremados, sem velório longo ou aglomeração, para evitar novos surtos.
Os perigos de uma doença grave como esta, e para a qual ainda não há remédios, é reconhecido na comunidade. Entretanto, os rituais que são realizados são feitos para que quem faleceu e quem ficou possam seguir em frente.
Os abraços, as pinturas, festas com flautas e chocalhos, entre tantos outros elementos destes ritos dão um sentido coletivo para a morte, como é o caso da cerimônia Kuarup, a última cerimônia para chorar os mortos. Os participantes tocam flautas e chocalhos. Troncos de madeira são colocados no centro da aldeia para representar os líderes mortos, que são chamados para receberem, mais uma vez, as pinturas que lhe serviram de adorno no outro mundo. Após chorar por horas, cânticos são entoados pelos homens mais fortes da tribo. Quando o Kuarup termina, acaba também o luto. Mas a festa que aconteceria neste ano foi adiada para o ano que vem por conta da pandemia.
Esses rituais e processos de luto coletivos para boa chegada do falecido em seu novo mundo e as homenagens feitas para homenageá-los, deixam agora um buraco na memória e muita dor nestas comunidades, que não encontram consolos.
Não há consolo dentro da estrutura vivenciada em um país fundado em silêncio e sangue.
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