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Acervo da Cinemateca Brasileira está em grave risco
Demissões em massa e ausência de repasses podem levar à extinção de importantes arquivos do cinema
Um conjunto de fatores colocam a preservação do maior acervo audiovisual da América Latina em risco. Em processo de sucateamento há anos, a Cinemateca Brasileira vem passando por um processo mais intenso de degeneração desde o final do ano passado, devido ao rompimento dos repasses do Ministério da Educação (MEC) à instituição. O assunto mobiliza setores preocupados com a produção artística e a memória brasileira, uma vez que o local mantém mais de 250 mil rolos de filmes em acervo. Os mais de 100 anos de história do cinema brasileiro estão em ameaça.
Sem receber salário desde o início de 2020, os funcionários da Cinemateca Brasileira realizaram greves em Junho e Julho devido ao não pagamento dos salários e em nome da preocupação com o acervo histórico conservado no local. Com exceção aos dias de mobilização, os trabalhadores do corpo técnico, mesmo após meses sem salários e em plena pandemia de Covid-19, mantiveram-se em atividade cuidando do espaço e dos arquivos.
No dia 7 deste mês, a Secretaria Especial de Cultura, sob chefia de Mario Frias, organizou uma ostensiva operação no prédio da Cinemateca, recorrendo à pressão com a presença de homens fortemente armados da Polícia Federal para buscar as chaves do espaço, que está agora sob responsabilidade da União. Essa intervenção ocorreu depois de seis meses de abandono do Governo Federal com o local, já que os repasses de verbas não ocorria desde dezembro de 2019, após o rompimento unilateral do contrato com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), Organização Social (OS) responsável pela gestão da instituição desde 2018. O rompimento foi realizado pelo então Ministro da Educação, Abraham Weintraub, que, na data, também encerrou o contrato com a TV Escola, sob gestão da mesma OS.
Segundo as promessas do Ministério do Turismo, um novo edital será lançado para convocar Organizações Sociais à gestão da cinemateca.
A OS exige o pagamento de uma dívida de 13 milhões de reais por parte do MEC, que não estava sendo repassada à instituição para pagamentos de serviços básicos, como funcionários e, até mesmo, manutenção predial. A Acerp demitiu os 52 funcionários da Cinemateca Brasileira.
Em Julho, o Ministério Público Federal havia entrou com uma ação contra a União pelo abandono da Cinemateca, pedindo à Justiça Federal que renovasse emergencialmente o contrato com a OS, garantindo a permanência do corpo técnico e um plano de gestão do espaço durante o ano de 2020. Apesar da decisão da Justiça negando a tutela provisória do MPF, este órgão protocolou um recurso no Tribunal Federal contra esta resolução.
A memória brasileira pede socorro
Criada na década de 1940 a e conhecida como a quinta maior Cinemateca em restauro do mundo, a instituição abriga diversos rolos de filme. São conservados películas de curta, média e longa-metragens, além de programas de televisão e registros de jogos de futebol. O embrião da Cinemateca Brasileira foi a prática cineclubista no Brasil. Foi fundada por Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado e Antonio Candido, com atividades realizadas dentro da Faculdade de Filosofia da USP. Após um ano, o clube foi fechado pela censura do departamento de imprensa e propaganda do governo de Getúlio Vargas, e passou a operar atividades clandestinamente na casa de seus membros. Com o fim do Estado Novo em 1946, o grupo sai da clandestinidade e cria a Cinemateca Brasileira. Inicialmente esteve vinculada ao Museu de Arte Moderna, entre 1948 e 1956. Em 1957, um incêndio destruiu parte de seu acervo e provocou a mudança para o Parque Ibirapuera. Em 1984 foi incorporada pela Fundação Pró-Memória. Hoje está ubicada em um prédio onde funcionava um matadouro na cidade de São Paulo.
O acervo da Cinemateca conta com materiais importantíssimos para a história brasileira, como o mais antigo filme brasileiro de ficção “O Óculos do Vovô” (Francisco dos Santos, 1913) e as películas dos primeiros estúdios brasileiros, Atlântida e Vera Cruz. Além disso, há também a gravação de cenas de cidades brasileiras no início do século XX e registros de datas comemorativas históricas do país. Importantes diretores têm suas obras conservadas no local, como o arquivo completo do expoente do Cinema Novo Brasileiro Glauber Rocha e o original de “O Cangaceiro” (Lima Barreto, 1953).
O abandono do espaço coloca em risco estes e muitos outros materiais, porque, dentre outras questões, os arquivos armazenados são compostos de nitrato, substância que pode entrar em combustão espontânea. O cuidado desse acervo requer corpo técnico capacitado para lidar essas especificidades.
A Cinemateca vem perdendo progressivamente quadros técnicos qualificados. Em 2016 por exemplo, houve um incêndio no local e muitos filmes foram perdidos. Tal como o que ocorreu com o Museu Nacional do Rio de Janeiro em 2018, o abandono gera destruição do acervo memorial brasileiro.
OSs e condições de trabalho
Desde de 2015 a Acerp presta serviços à cinemateca, mas foi a partir de 2018 que passou a ser responsável pela gestão integral dos núcleos de Preservação, Documentação e Pesquisa, Administração e Tecnologia da Informação. A Acerp comunicou a demissão de todos os trabalhadores dos quais mantinha a contratação, que, cuja manutenção dos contratos, segundo a instituição, não seria possível devido à crise atravessada pela OS.
A Cinemateca foi a primeira instituição cultural federal administrada por uma OS. Fruto dos processos de Reforma Administrativa da década de 1990, a Acerp pertence ao terceiro setor, dito “sem fins lucrativos”, e possui vínculo com o MEC. Esse tipo de organização surge para realizar a gestão de instituições do Estado sem ter as obrigações contratuais típicas do serviço público. Ou seja, sem necessariamente privatizar o setor, as OS estabelecem regimes de trabalho que são muito mais sensíveis aos cortes de pessoal vinculados às crises . No caso da Cinemateca, o tipo de contrato estabelecido entre a Acerp e os trabalhadores do local permitiu a imediata demissão desses trabalhadores que, além do rompimento dos contratos, ainda não receberam os salários atrasados.
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No caso do trabalho realizado pelos funcionários da cinemateca, o tema do vínculo de trabalho é ainda mais sensível, já que é requerido um tipo de operacionalização do material que requer capacidade técnica específica e uma transmissão de conhecimentos entre os trabalhadores para o manejo dos arquivos. Os regimes de trabalho típicos dos marcos contemporâneos, permitidos no interior das OS, dificultam vínculos estáveis e à longo prazo entre os trabalhadores e as instituições.
A Cinemateca é um espaço de manutenção importante da história do Brasil. A intensificação dos processos de degradação do local dizem bastante sobre a gestão governamental da memória brasileira e da condição dos trabalhadores no Brasil. O patrimônio que deveria estar sob cuidado da classe trabalhadora, é largado às traças pelos desmandos do Estado e suas íntimas relações com o dito “terceiro setor”.