O colapso do sistema de saúde brasileiro das últimas semanas reflete não apenas a ausência leitos de Unidade de Tratamento Intensiva (UTI) disponíveis em um grande número de estados, mas também, a falta de Equipamento de Proteção Individual (EPIs) e de cilindros de oxigênio. Soma-se a isso, falta de perspectivas para a vacinação em massa da população bem como de uma política séria de contenção da pandemia. O processo atravessado pelo Brasil ao longo desta pandemia tem escancarado não apenas a gestão negligente e suicidária do Governo Bolsonaro, mas os problemas sérios da dependência tecnológica no Brasil. O resultado tem sido não só os números assustadores em óbitos e casos, mas um verdadeiro terror vivido nos hospitais.
Segundo dados levantados pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, gestores de ao menos 1068 municípios – dos 2411 que responderam à pesquisa – relataram preocupação sobre o estoque de cilindros de oxigênio. A situação é gravíssima e pode indicar risco de desabastecimento nos hospitais. Isso significa que um dos principais instrumentos para tentar garantir a sobrevivência de pacientes graves acometidos pela Covid-19 pode faltar.
Além dos cilindros, o balanço feito pelo conselho também levantou dados sobre a ausência de estoque de materiais de proteção básicos, como máscaras, luvas e aventais. Todos esses são itens fundamentais para garantir a execução do trabalho de profissionais de saúde.
A ausência de instrumentos básicos para o enfrentamento da pandemia é um reflexo da política de extermínio do governo. Em agosto de 2020, o governo federal cancelou a compra de medicamentos que formam o “kit intubação” para pacientes de Covid-19. De acordo com o Conselho Nacional de Saúde, o motivo não foi explicitado.
Em um levantamento realizado pela Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) divulgado na última quarta-feira (07/04), 75% das instituições ligadas a esse setor enfrentam dificuldades com abastecimento de insumos para pacientes com Covid-19. Os itens que mais faltam são oxigênio, anestésicos e os medicamentos do “kit intubação”.
Informações divulgadas hoje (13/04) por um levantamento feito pela Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes revelam que, no estado de São Paulo, cerca de 300 hospitais filantrópicos e Santas Casas de São Paulo têm estoque de remédios desse kit por apenas mais três dias.
Essa situação calamitosa da falta de medicamentos, além da especulação nos preços de remédios, tem gerado mudanças nos protocolos de atendimento, tornando o terror da intubação um momento ainda pior. O chamado “kit intubação” conta com três tipos de medicamentos: analgésicos (que são bastante comuns mas tem faltado); um sedativo e um bloqueador muscular (que paralisa alguns músculos e impede que a respiração natural atrapalhe o ventilador mecânico). Durante todo o período da intubação, o paciente depende desses medicamentos. Contudo, com a falta de sedativos, os pacientes têm sido amarrados nos leitos, para que não sofram uma queda ou retirem o tubo manualmente.
Em meio a essa crise por falta de insumos para intubação, há cerca de duas semanas, o ministro da Saúde, Marcelo Quiroga, fez uma fala pública defendendo que se realizasse uma campanha para promover a economia de oxigênio nos hospitais. Esta fala demonstra abertamente a intenção do Governo em poupar esforços para salvar vidas.
Em audiência pública realizada ontem (12/04), a comissão do Senado que debate a Covid-19 apresentou dados que revelam a falta de insumos nos hospitais em 90% dos 300 maiores municípios do país. Nesta sessão, aprovou-se a realização de uma audiência pública para buscar ajuda internacional para o Brasil. Além disso, foi aprovado um requerimento para que senadores possam visitar fábricas de imunizantes veterinários que poderiam ser utilizadas na produção de vacinas contra a covid-19. Esta tentativa desesperada em recorrer às fábricas ligadas à indústria veterinária diz respeito à saída que se adequa ao padrão adotado pelo Brasil nas últimas décadas na indústria farmacêutica.
A indústria farmacêutica entre 1996-2014: algumas tendências*
Apesar de a partir de 1988, com a Constituição Federal, o direito universal à saúde no país ter sido estabelecido legalmente, na década de 1990, a política de saúde sofreu retrocessos. No campo da indústria farmacêutica houve uma série de mudanças econômicas que impactaram a política protecionista do setor até então.
Ainda que o Brasil seja um dos 13 países em todo o mundo que têm uma indústria capaz de fabricar Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) e de que há altos índices de consumo interno de medicamentos, a produção interna de IFAs é pequena e tem diminuído. Cerca de 90% das necessidades do setor farmacêutico são supridas atualmente por importações (dados da Associação Brasileira da Indústria Farmoquímica e de Insumos Farmacêuticos).
A produção de medicamentos é um setor estratégico para a acumulação de capital. Não à toa, as grandes indústrias farmacêuticas mundiais possuem sua sede em países de capitalismo central – como Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido. Durante os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, houve a retirada da proteção externa à indústria farmacêutica bem como alterações na política de patentes. Essas mudanças pioraram as condições para a produção local de fármacos e medicamentos.
Após este período, a política industrial do Estado brasileiro focou apenas na produção de três tipos de medicamentos: engenharia reversa restrita aos antirretrovirais; a produção de genéricos e as parcerias de desenvolvimento produtivo (PDPs). As PDPs são acordos firmados entre o Ministério da Saúde e laboratórios privados, no qual são transferidas tecnologias do setor privado para o laboratório público durante cinco anos. Em troca, a União garante que os laboratórios privados tenham exclusividade na compra desses produtos durante o mesmo período. Ou seja, além de depender da tecnologia do setor privado, a produção de medicamentos que deveriam suprir a demanda do SUS é vendida ao setor privado.
Além disso, entre os anos de 1996-2014, ao analisar as receitas líquidas de vendas e a transformação industrial de áreas ligadas à indústria de fabricação química, percebe-se que o maior crescimento durante o período ocorreu nas empresas de fabricação de defensivos agrícolas, adubos e fertilizantes e medicamentos de uso veterinário.. O setor de medicamentos humanos também apresentou um crescimento significativo. Já a área de produção de farmoquímicos apresentou o menor crescimento. Esta última, segundo classificação do IBGE, é considerada como uma indústria de média-alta intensidade tecnológica. Ainda que os dados obtidos não estejam completamente atualizados, eles indicam uma tendência da produção industrial brasileira. Esse último fator ajuda a explicar o porquê da estratégia debatida na sessão do senado do dia 12/04 seja a de visitar fábricas de produção veterinária na busca por insumos para produção de vacinas contra a Covid-19.
Sendo assim, as áreas que maior cresceram são setores ligados à produção de commodities – defensivos agrícolas, adubos e fertilizantes e medicamentos para uso veterinário. Já o setor de farmoquímicos, que é a base para a indústria farmacêutica, ocupa um lugar figurante na produção de medicamentos no Brasil. Esse fato revela a vulnerabilidade do parque industrial do país. Do ponto de vista sanitário, esses dados representam uma catástrofe, tanto pela dependência de importação das IFAs – mais de 90% – quanto pelas consequências no abastecimento de medicamentos. Em momentos como este, a crescente dependência de importação de farmoquímicos é paga com a vida de brasileiros.
As estratégias definidas como prioritárias para o setor – engenharia reversa restrita aos antirretrovirais, genéricos e PDPs – apresentam baixa capacidade de transformação dessa tendência e não alteram nem a situação dos fármacos nem a tendência à importação de medicamentos acabados.
É sob a base dessa estrutura tecnológica e econômica que o Brasil tem enfrentado essa pandemia. O balanço de vacinação da última segunda-feira (12/04) revela que apenas 11,26% da população recebeu a primeira dose da vacina contra a Covid-19 e 3,49% a segunda. Informação fornecida pelo Ministro Queiroga hoje (13/04), revela que 1,5 milhão de brasileiros estão com a segunda dose atrasada. Atualmente, apenas duas vacinas estão sendo aplicadas por aqui: AstraZeneca (que conta com tecnologia inglesa) e CoronaVac (que conta com tecnologia chinesa).
Conforme apontou Lalo Watanabe em sua coluna para o Universidade à Esquerda, a questão das vacinas escancara o problema da dependência tecnológica. A ausência de autonomia para a produção tem sido falsamente solucionada com a transferência tecnológica. Pouco efetivamente se debate sobre as razões estruturais ligadas a ela. Ainda que existam setores que produzem conhecimento científico que contribui para o enfrentamento da pandemia, há décadas a capacidade produtiva brasileira – inclusive o setor de pesquisas – tem se voltado para atender a um projeto de desenvolvimento no qual o Brasil se insere de forma subordinada. Para o professor, há dois elementos estruturais combinados: a reestruturação da economia brasileira nas últimas décadas (com a re-primarização da economia e especialização da produção) e o desmonte das instituições públicas de pesquisa para atender às demandas de “internacionalização” e “inovação”, que passam ao largo das necessidades do povo brasileiro.
Sendo assim, para além das graves questões técnico-operacionais que estamos enfrentando no Brasil, o elemento da dependência é um fator crucial. Para que o povo brasileiro possa ter o tratamento de saúde do qual é digno, com vacinação em massa, tratamento humanizado nos hospitais e todos os cuidados que uma pandemia dessa magnitude exige, é preciso que as forças políticas que lutam pela transformação desta desastrosa realidade coloquem como centro da estratégia o enfrentamento dessa política subordinada.
*Discussão baseada no artigo de RODRIGUES, Paulo Henrique Almeida; COSTA, Roberta Dorneles Ferreira da; KISS, Catalina. A evolução recente da indústria farmacêutica brasileira nos limites da subordinação econômica. Physis, Rio de Janeiro , v. 28, n. 1, e280104, Mar. 2018 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312018000100401&lng=en&nrm=iso>.
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