Texto escrito pelo UFSC à Esquerda em 21 de junho 2015.
“Acreditamos honradamente que nosso esforço tinha criado algo novo, que pelo menos a elevação de nossos ideais merecia algum respeito. Assombrados, contemplamos então como se coligavam para arrebatar nossa conquista os mais crus reacionários” (MANIFESTO DE CÓRDOBA, 1918).
Em 1918, na Argentina, os estudantes universitários de Córdoba protagonizaram aquele que foi o primeiro questionamento contundente à universidade latino-americana. Esse acontecimento se tornou um marco histórico decisivo para compreendermos os processos de reformas universitárias em outros países da América Latina, como: Peru, Cuba, Chile, Uruguai entre outros.
A reforma de Córdoba iniciou-se como uma rebelde insurreição contra a nomeação de um interventor para ocupar a direção da universidade, mas transformou-se rapidamente em um processo de reforma modernizadora da universidade. Caracterizou-se, então, pelas propostas de co-gestão (administração compartilhada entre professores e estudantes), autonomia universitária plena, liberdade e periodicidade de cátedra, não obrigatoriedade de frequência às aulas, estabelecimento de concursos para o ingresso na carreira de professores. Depois, se incorporaram outras pautas como a gratuidade do ensino. Marcou uma forte posição da juventude contra o domínio ideológico cristão, às oligarquias e o imperialismo.
É fundamental compreender que não foi um acontecimento sem precedentes. A primeira grande guerra mundial levou o projeto civilizatório europeu ao desmoronamento de sua face ideológica. Ao mesmo tempo em que enquanto a modernidade propagava que a classe trabalhadora era, em si, anti-civilizatória e moralmente corrupta, a Revolução Russa colocava concretamente essa face do imperialismo à beira do precipício. A classe trabalhadora passara a construir uma experiência histórica civilizadora de novo tipo. Essa expectativa atingiu em cheio os corações e mentes da juventude em todo o mundo.
Diante desse quadro, e da eleição em 1916 de um governo progressista na Argentina, a oligarquia e a igreja recrudesceram suas formas de dominação e os conflitos se transformaram gravemente. Em maio de 1918, os reitores foram destituídos dos cargos, houveram intervenções federais, golpes e contragolpes voltados contra as demandas democratizantes dos estudantes. Foi então que os estudantes de Córdoba se declararam em greve estudantil, impediram a eleição de interventores pelos conselhos universitários e nomeando representantes seus para a reitoria. O apoio alastrou-se por toda a América Latina: “estamos com vocês no espírito e no coração”, como dizia o manifesto de apoio da Federação de Estudantes da Universidade de Buenos Aires.
E foi nesse contexto que o Manifesto de Córdoba, de 21 de junho de 1918, foi redigido. Um texto brilhante no que diz respeito à ideia de liberdade, a defesa do conhecimento, um forte caráter anticlerical e uma clara consciência da posição da juventude diante da tarefa de construir um sentimento latino-americano.
É importante demarcar que não foi um movimento homogêneo. Liberais, positivistas, socialistas, anarquistas, anti-imperialistas de vários matizes saíram à disputa do sentido do movimento. Contudo, foi a posição à esquerda que prevaleceu, mesmo que em um espectro amplo.
Evidência disso é que o movimento rapidamente se aproximou do movimento operário, o que representou um evento absolutamente original nas lutas produzidas por estudantes de famílias de rendas médias e altas. Foi a presença dos socialistas que conseguiu atribuir um caráter fortemente anti-imperialista ao movimento, através de enormes lutas internas. De modo que essa fração logrou recolocar a questão nacional e o lugar da América Latina diante da dependência econômica, cultural e social, o que criou condições para a construção de um pensamento marxista latino-americano original: Ingenieros, Ponce, Mella e Mariátegui.
Foi essa combinação brilhante de concepções que conferiu um sentido magnífico à luta dos estudantes de Córdoba, voltando-se para a educação popular, o caráter e a função social da universidade, a presença do proletariado dentro da universidade, compromisso com os problemas nacionais, co-governo universitário, autonomia plena e uma perspectiva anti-imperialista. E é por isso que as frações mais reacionárias reagem fortemente para apagar os vestígios da Reforma de Córdoba, pois ela abriu espaço para um pensamento vivo que nos tirou dos trilhos das universidades europeias e, mais tarde, das universidades norte americanas.
De muitas formas, os conservadores procuram apagar o radicalismo dessa geração da juventude latino-americana: ou procurando esquecer e fazer com que essa história não seja contada, ou reproduzindo o nome – “21 de junho”, “Cordobazo” e etc – sem reivindicar absolutamente nada da essência e da radicalidade dessas lutas, e muitas vezes, inclusive, esquecendo até mesmo dessa data tão importante.
Tanto uma forma, como outra devem ser combatidas como aquilo que são: não se trata de mero lapso, mas de escolhas políticas conservadoras e obliteradoras do real sentimento radical da juventude. Essa é a melhor forma de seguir relembrando a luta dos nossos colegas de Córdoba, sem deixar que seja obliterada por neoconservadorismos ou esquecida como se nada significasse.
Portanto, seguir adiante conduzindo essas tarefas para o presente e para as futuras gerações dos movimentos universitários, ou como disse Mella: “Triunfar ou servir de trincheira aos demais. Até depois de nossa morte somos úteis. Nada de nossa obra se perder”!
Viva a juventude de Córdoba! Viva a Universidade Latino-americana! Povo livre, venceremos!