Debate, Opinião
Bolsonaro e os cortes na educação superior: considerações preliminares (II)
O UàE está publicando uma série de textos de análise produzidos por Allan Kenji Seki, sobre os cortes na educação superior realizadas pelo governo Bolsonaro. Allan é Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Investigação em Política Educacional (GIPE-MARX). Pesquisador do laboratório Centre d’Économie de l’Université Paris Nord (CEPN) da Université Paris 13. Confira hoje, 11 de maio, a segunda parte.
Leia a parte I, a parte III, a parte IV, e a parte V.
Allan Kenji Seki* – Para o UàE – 11/05/2019
Pôr um fim às universidades públicas
Em 2017, o Banco Mundial publicou o documento Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil para dar apoio às reformas regressivas articuladas no âmbito do Estado brasileiro. Produzido por técnicos do Banco Mundial e do governo brasileiro, procurava justificar que a crise brasileira seria de natureza fiscal e, portanto, as demandas sociais por saúde, seguridade social, previdência e educação seriam as principais responsáveis pelos déficits públicos sucessivos. Buscava-se transformar falácias em verdades técnicas. No caso da educação, o documento é categórico: “as despesas com ensino superior são, ao mesmo tempo, ineficientes e regressivas”, pois os “gastos por aluno nas universidades públicas são de duas a cinco vezes maiores que o gasto por aluno em universidades privadas” (BANCO MUNDIAL, 2017). Para resolver essa situação, o Banco Mundial recomendava a extinção das universidades públicas, o fim da gratuidade de ensino e a ampliação dos financiamentos aos estudantes mais pobres em instituições particulares.
Essa proposta havia sido sintetizada em documento publicado pelo Banco Mundial em conjunto com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), em 2008, intitulado Conhecimento e Inovação para a Competitividade[1]. A argumentação, evidentemente falaciosa, foi rebatida por diversos críticos e o documento raramente foi mencionado entre os setores do governo ligados à educação na época. À luz das transformações que ocorreram na educação superior brasileira, hoje sabemos que desde então se articulava uma ofensiva dos setores privatistas contra as universidades públicas, mas pelo menos duas condições ainda eram necessárias e não estavam suficientemente desenvolvidas: (1) a financeirização do mercado de educação superior privado – com as consequentes desregulamentações da fiscalização, regulação e autorização de cursos, matrículas e modalidades de ensino; (2) a ampliação dos efeitos da crise mundial. Mais do que uma argumentação lógica ou sinal de uma mudança significativa na estratégia das classes dominantes, o “ajuste justo” pode ser mais bem compreendido como uma sinalização de conjuntura às classes dominantes brasileiras: o momento de start dessa nova fase de ofensiva neoliberal.
O governo não pode simplesmente determinar por decreto que as universidades públicas fechem as portas. As experiências precedentes contra elas indicam que atacá-las pode ser tão importante, quanto perigoso para um governo com suas características. Afrontar essas instituições pode ser uma forma de queimar rapidamente o apoio popular do governo, principalmente entre as frações médias. Enquanto a burguesia brasileira tem disposição de pagar pelo ensino superior, desde que todos tenham de fazê-lo e seus privilégios na distribuição desigual do conhecimento técnico e das diplomações profissionais permaneça intocável pela via da frequência às escolas de excelência, inclusive no exterior, para o restante da sociedade as universidades públicas representam a única forma apreensível de maneira racional para justificar certa expectativa de mobilidade social – embora o seja para uma pequena parcela dos jovens.
Aliás, talvez a educação pública possa ser considerada, em sua configuração precedente (com a gratuidade, as políticas de cotas e o apoio à permanência estudantil), a única explicação com certo grau de plausibilidade lógica para expectativas dessa natureza. Sem ela, fica evidente que a posição social dos indivíduos depende unicamente da propriedade (ou não) sobre os meios de produção ou de sua força social para detê-la (posição familiar, herança, roubo etc.).
Sem a forma ideológica do capital humano, que perpassou todos os governos desde a constituinte dos anos de 1980 (LEHER, 2018), estão dadas as condições à consciência de que a posição social dos indivíduos retorna permanentemente aos antagonismos fundamentais da sociedade capitalista. Isso significaria um curto-circuito nas coordenadas ideológicas, porque, embora a classe dominante possa dispor de uma infinidade de outros mecanismos para a acomodação dos conflitos inerentes à luta de classes, essa tarefa se tornaria cada vez mais hercúlea. Afinal, o controle sobre a classe trabalhadora no contexto de profundas desigualdades sociais experimentadas cotidianamente pela maioria do povo brasileiro é pressionado permanentemente tanto pelas contradições que a fase atual do capitalismo cria (especialmente em períodos de crises profundas e prolongadas, como a atual), quanto pelas particularidades do padrão de acumulação capitalista dependente.
Para se ter um retrato da desigualdade no Brasil, lembremos que, em 2017, enquanto o salário mínimo era de R$ 937, a renda domiciliar média no estado do Maranhão, a mais baixa no país, ficou registrada em R$ 605. No mesmo ano, a remuneração mais alta no Brasil foi de R$ 4,87 milhões mensais, salário dos executivos da Vale – empresa de mineração responsável pelas tragédias em Mariana (2015) e Brumadinho (2019). Não estão muito distantes do salário de executivos da Kroton S.A. que no mesmo ano a eles pagou R$ 2,1 milhões. Excluídas as participações em capitais, isso representa uma diferença superior a 5,1 mil vezes entre a maior remuneração paga e o salário mínimo nominal. Ainda, em 2017, 14,83 milhões de brasileiros sobreviviam em situação de extrema pobreza (segundo a metodologia do IBGE, pessoas que vivem com renda igual ou inferior a US$ 57 mensais) e 18,2 milhões de pessoas em situação de pobreza (US$ 165 mensais).
Sendo assim, a privatização da educação superior pública no Brasil exigiria uma estratégia mais refinada e inteligente que o uso da força ou o simples estrangulamento de concursos e custeio. Essa estratégia é utilizada há anos, principalmente pelos governos estaduais, como nos casos do Rio de Janeiro e São Paulo, que sequer repassam o que seria obrigatório pela legislação tributária estadual. A redução do orçamento das instituições, o congelamento de concursos e o ataque sistemático pela mídia nos respectivos estados não conseguiu diminuir nem o prestígio das instituições, nem o tom crítico de seus intelectuais às contradições sociais e ao próprio governo.
Não queremos dizer que o governo Bolsonaro não fará uso dessas medidas. Além dos cortes anunciados no orçamento de investimento e custeio das IES, o governo pretende interditar a contratação de novos servidores. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) propõe o congelamento total dos concursos para servidores federais em 2020, inclusive impossibilitando a reposição dos aposentados. Com a determinação, agrava-se um quadro já bastante crítico. Segundo dados do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, em março de 2019 existiam 17.755 vagas aprovadas em lei e não ocupadas na educação superior. As situações mais críticas, são as da Universidade Federal Fluminense (UFF), com 571 vagas; do Instituto Federal do Ceará (IFC), 559; da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), 448 (BRASIL, 2019c). A tramitação da reforma da previdência poderá precipitar a aposentadoria dos servidores que concluírem o tempo mínimo estabelecido na legislação atual e dos que estão em abono permanência[2].
As ações em curso indicam que o governo manterá a estratégia de estrangulamento da política de educação superior, mas acrescentará uma campanha de desmoralização planificada de suas instituições. Não se trata somente da propaganda que visa identificar estudantes e professores universitários com todas as formas “degradação moral”.
O governo Bolsonaro é um método político
O anúncio do corte para todas as instituições de ensino superior federais, universidades e institutos, ocorreu basicamente em dois atos. O primeiro foi o anúncio estapafúrdio de que haveria uma seletividade, aplicando os cortes principalmente em três instituições. Essa seletividade não convenceu muito o observador mais atento, porque foi praticamente destituída de um sentido unitário. Digamos que Bolsonaro quisesse realmente retaliar as universidades que lhe fizeram oposição; não há outras universidades que abrigam intelectuais críticos ao governo? E não haveria nas três instituições escolhidas alguns dos defensores mais aguerridos da política econômica em marcha? Não há instituições fora dessa lista com dirigentes, e inclusive reitores, abertamente de esquerda? Não há outras universidades que realizam atividades artísticas, filosóficas e políticas até mesmo mais provocativas? De resto, a medida seria flagrantemente inconstitucional, pois violaria não só a autonomia formal da universidade como definida na Constituição Federal, mas também os princípios da impessoalidade, da isonomia e da probidade na administração pública. E veio o segundo ato: anunciou-se a isonomia no contingenciamento. Ou seja, foi ampliado para todas as instituições federais de ensino superior.
No mesmo dia do anúncio da ampliação do corte para 30% do orçamento, associado à sua extensão a todas as instituições federais (30/4)[3], o Ministro publicou um vídeo nas redes sociais no qual, além de comparar falaciosamente os supostos gastos com estudantes de graduação com os alunos da pré-escola, falou diretamente ao “cidadão pagador de imposto”. As medidas estariam em pleno acordo com o programa de campanha de Bolsonaro, não sendo possível entender por que “agora” os mesmos que o elegeram estavam se voltando contra “o nosso plano de governo”. Para o Ministro, acabar com os recursos da educação superior não seria um gesto sem causa; afinal isso permitiria favorecer a abertura de vagas em creches para “crianças geralmente mais humildes, mais pobres, mais carentes”. Nessa altura, há uma sutil mudança no tom do Ministro e a câmera se aproxima em efeito de zoom in dramático, ao que a personagem pergunta: “o que você faria no meu lugar?”.
O tipo de linguagem da edição do ministro é bem conhecida dos brasileiros porque é exatamente a mesma de um famoso vídeo da Empiricus Research sobre o caso Betina[4]. Lembremos que a Empiricus foi multada em R$ 40 mil por propaganda enganosa e por induzir o consumidor ao erro, dado que não existe investimento na bolsa de valores com retorno de 65.000% em três anos. Mas a empresa teve o mérito de popularizar esse estilo de edição visual no qual dois planos de filmagens são alternados, produzindo um efeito de zoom in e zoom out rápido, a fim de conferir solidez, coerência e virtude às falas da personagem. Esse tipo de narrativa cria uma atmosfera de intimidade dramática, implicando subjetivamente o expectador na narrativa.
A mensagem que o governo transmite ao “cidadão de bem”, “pagador de impostos” é a de que esse episódio foi apenas mais um capítulo da batalha contra a “balbúrdia” e em favor do “cidadão de bem”, fiel “pagador de impostos” e, sobretudo, de que nessa guerra o governo estaria perdendo em razão do enraizamento profundo, no âmbito do Estado, de elementos vinculados à “esquerda”, ao “marxismo cultural”, aos “comunistas” (como o ministro da educação se acostumou a dizer em seus pronunciamentos).
A inteligência que reside aí é que o governo Bolsonaro parece ter percebido que não basta produzir uma propaganda ficcional sobre uma guerra ideológica entre “virtuosos” cidadãos de bem contra os “imorais” comunistas que assaltaram o Estado; para ter efetividade, o governo precisa agir não só como se essa guerra realmente existisse, mas, ao mesmo tempo, como se estivesse perdendo uma a uma todas as batalhas. À medida que, um a um, os setores atacados forem se levantando e organizando-se para resistir às investidas neoliberais excruciantes, a narrativa ficcional trabalhará por sua própria autoconfirmação. Cada ato de resistência apenas confirmará que o governo realmente estava lutando contra inimigos muito poderosos, razão de ter perdido e recuado tantas vezes.
É o que parece quando assistimos o governo conseguir não apenas anunciar um corte de R$ 7,96 bilhões no Ministério da Educação, mas fazer isso ao mesmo tempo em que reforçou sua tese sobre a necessidade de desconfiança paranoica contra as instituições da República e da imposição de um regime de exceção. Ao fim e ao cabo, Bolsonaro não apenas avança em direção às reformas neoliberais com as quais está comprometido, mas prepara-se para solidificar mais as bases de seu governo.
[1] Precedida por variadas articulações, esta foi a retórica para a educação superior dos países dependentes desde pelo menos o final dos anos de 1980. Nos anos de 1990, é possível encontrar diversas notas técnicas e conferências multilaterais a respeito da suposta necessidade do fim da gratuidade e, finalmente, do fim da universidade pública enquanto tal.
[2] De acordo com o El País (2019), em 2017, durante a tramitação da reforma da previdência do governo Michel Temer (2016-2017), 22.458 pessoas se aposentaram ou deixaram seus cargos.
[3] “O corte realizado pelo governo nas dotações orçamentárias das universidades federais foi diferente para cada uma delas, variando de 12,79%, no caso de instituição do Amapá, a 52,47% para a universidade do Sul da Bahia” (OLIVEIRA, 2019).
[4] Betina é uma personagem que representa uma jovem brasileira de 22 anos que afirmava ter começado a investir apenas 1.520 reais; três anos depois teria acumulado um patrimônio superior a um milhão de reais aplicando em fundos, credenciando-se, pois, para oferecer relatórios sobre investimentos. A personagem foi criada pela Empiricus Research, sobreposta ao nome de uma pessoa real, que trabalha para a empresa de consultoria de investimentos no mercado mobiliário e fundos diversos e parece mesclar, dessa forma, realidade e ficção para criar uma história publicitária destinada às frações médias da população que possam investir ao invés de aplicar suas pequenas reservas financeiras nas poupanças.
* O texto é de inteira responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do Jornal.
Leia a parte I, a parte III, a parte IV, e a parte V.