Opinião
Parceria público-privada coloca UFC a serviço do mercado de saúde suplementar: a inauguração do CEREIA junto à Hapvida
Centro de IA para saúde é impulsionado por edital do MCTI e políticas de empreendedorismo da UFC
No dia 20 de março, jornais burgueses noticiaram com empolgação a inauguração de um Centro de Referência em Inteligência Artificial (CEREIA) na Universidade Federal do Ceará (UFC), voltado para uma parceria público-privada da universidade com a Hapvida NotreDame Intermédica, uma das maiores operadoras de planos de saúde no Brasil hoje.
Desde 2020, com a pandemia de Covid-19, a Hapvida vêm atuando com telemedicina e tem expandido a oferta desse serviço, mesmo com o retorno das atividades presenciais, na esteira dos que viram uma “oportunidade” numa das maiores tragédias que marcaram a década que estamos vivendo.
O projeto junto à UFC envolve a participação de mais uma universidade pública e duas privadas: Universidade Federal do Piauí (UFPI), Universidade de Fortaleza (Unifor) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). As instituições irão dividir seis linhas de pesquisa: predição de doenças crônicas, apoio à avaliação de exames radiológicos, engajamento de pacientes, monitoramento remoto de pacientes, anamnese assistida por inteligência artificial (IA) e interfaces para ciência de dados na saúde. Ou seja, as linhas se desdobram sobre procedimentos de acompanhamento e triagem de pacientes em serviços de saúde.
Segundo a Hapvida, o projeto para a CEREIA é atuar com internet das coisas (IoT), big data, transformação digital e tecnologias de ponta na prevenção, diagnóstico e terapias de baixo custo. Tal intuito evidencia o interesse de utilizar recursos da universidade pública em pesquisas e produção de “tecnologias” voltadas para a redução de custos com procedimentos de saúde ofertados como mercadoria para a classe trabalhadora.
As pesquisas com foco em Inteligência Artificial para os ditos problemas da área da saúde; problemas do ponto de vista das empresas que querem lucrar cada vez mais tratando saúde como mercadoria – também teriam como propósito formar profissionais para atuar nesse mercado. Assim, garantir a força de trabalho demandada por esse nicho.
É importante destacar que a Hapvida realizou uma fusão junto à Intermédica em 2021, durante a pandemia de Covid-19, mesmo ano em que foi firmado o projeto junto à UFC. Segundo o jornal Valor Econômico, neste início de 2023 a empresa acumulou perdas de 47,2% no mês até o fechamento de 17 de março da bolsa. Isto porque depois da fusão, a companhia apresentou resultados abaixo do esperado em seu relatório do quarto trimestre de 2022.
Os recursos advindos da Hapvida, serão de R$ 1 milhão por ano, e os recursos dos órgãos públicos serão de mesmo valor, pelo mesmo período, totalizando R$10 milhões destinados ao projeto e podendo ter prorrogação de mais cinco anos.
A porta de entrada da iniciativa privada na UFC
A CEREIA ocupará um espaço de 380m² em um andar do Condomínio de Empreendedorismo e Inovação da UFC, que foi inaugurado em 27 de Agosto de 2020, pelo reitor-interventor Cândido Albuquerque. Este foi nomeado no governo Bolsonaro e segue na direção da universidade até hoje.
O Condomínio possui cinco andares e abriga o Centro de Empreendedorismo da UFC (CEMP/UFC), o espaço INOVE Quixadá, o Programa Empreende UFC, salas para Empresas Juniores que não possuem sede própria, incubação de empresas pelo Parque Tecnológico da Universidade Federal do Ceará (PARTEC/UFC), a Escola Integrada de Desenvolvimento e Inovação Acadêmica (EIDEIA), a Pró-Reitoria de Relações Internacionais e Desenvolvimento Institucional (PROINTER), a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PRPPG).
Além disso, também estão presentes no Condomínio como parceiros externos a Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC), Fecomércio-Ce e Sebrae.
Segundo a própria UFC, o escritório de projetos do Condomínio é a porta de entrada da iniciativa privada na UFC “que recebe demandas do setor produtivo e encaminha para a respectiva área”. Trata-se de uma comissão interdisciplinar para articular com apoio técnico e jurídico as parcerias público-privadas nas atividades realizadas pela universidade de acordo com o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, instituído no governo petista de Dilma Rousseff.
O financiamento de Centros de Pesquisa Aplicada em Inteligência Artificial
O financiamento público da CEREIA advém de um consórcio entre Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
A UFC foi uma das seis universidades selecionadas em um edital que foi lançado em 2019 e teve seus resultados divulgados em 2021. O edital é voltado à instalação de Centros de Pesquisa Aplicada (CPAs) em Inteligência Artificial que estão sendo constituídos no modelo de parceria público-privada para pesquisas aplicadas em tecnologia na área da saúde, agricultura, indústria e cidades inteligentes.
Dentre as selecionadas, outras três são universidades públicas: UFMG, USP e Unicamp.
Na UFMG foi criado o Centro de Inovação em Inteligência Artificial em Saúde (CIIA-Saúde) e R$10 milhões serão fornecidos pela Unimed-BH, Kunumi, Intel e Grupo Splice para pesquisas. Os eixos trabalhados serão: prevenção e qualidade de vida, diagnóstico e rastreamento, medicina terapêutica e personalizada, gestão de sistemas de saúde e epidemias e acidentes
O Centro de Pesquisa Aplicada (CPA) em Inteligência Artificial BI0S (Brazilian Institute of Data Science) da Unicamp iniciou sua operação em novembro de 2022. Terá financiamento privado de R$5 milhões do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, da Fundação para Inovações Tecnológicas (FITec) e da Fundação CPQD. Seu foco será em pesquisas nas áreas de diagnósticos médicos voltados à saúde da mulher, agricultura de precisão e otimização do uso de recursos agrícolas, entre outros. Também há o intuito de criar um repositório de dados voltado especificamente para a saúde usando o histórico médico de pacientes.
Na USP, o Centro de Pesquisa Aplicada em Inteligência Artificial Recriando Ambientes (CPA IARA) tem como objetivo fomentar o surgimento de cidades inteligentes no Brasil e no exterior, com foco em cinco aspectos: educação, mobilidade, meio ambiente, saúde e cibersegurança. Segundo matéria do site da USP, o projeto terá algumas cidades como laboratórios. A primeira experiência será no município Canaã dos Carajás, localizado na região sudeste do Pará e que possui a maior província de mineração de ferro do mundo.
O investimento privado previsto nos primeiros cinco anos é de R$7 milhões. Mas para além do Centro de Pesquisa Aplicada, IARA contará com financiamento de empresas como Intel, TIM, Ericsson, Vale, Grupo Splice, Cidade dos Lagos, Jacto, Axxonsoft, Stellantis (que inclui marcas como Fiat, Chrysler, Jeep, Peugeot e Citroën) , NESSHealth, Compesa, Instituto Eldorado, Instituto Inova, Inatel, FITec, CRIE e ATI.
Função social da Universidade Pública
O que se pode observar é que diante do desmonte dos serviços públicos de saúde e educação, operado a partir da EC 95, que impôs o teto de gastos, a universidade vem perdendo seu espaço de produção de ciência crítica, com autonomia e voltada para todas as etapas da construção do conhecimento (pesquisa de base, pesquisa teórica, pesquisa aplicada etc.) e é colocada em uma função de meramente contribuir com interesses dos capitais na ampliação de seus negócios e redução dos custos de produção. Negócios que atentam diretamente contra a vida de nossa classe.
No caso de pesquisas aplicadas de Inteligência Artificial para o setor de saúde complementar, é uma contribuição que também vai na direção de fortalecer o desmonte da saúde pública, pois o fortalecimento da atuação da rede privada concorre diretamente com os investimentos e a manutenção da rede pública de saúde.
Um exemplo disto são as desonerações tributárias do setor de saúde complementar, que fazem com que o estado perca parte das arrecadações que constituem o fundo público e poderia ser destinado, por exemplo, à saúde pública. Em 2019 foi constatada uma renúncia de mais de R$400 bilhões em impostos, em 12 anos, em benefício da saúde privada no Brasil, segundo matéria de Wanderley Preite Sobrinho, no site UOL. A reportagem destaca que a cada ano, a renúncia fiscal em saúde privada equivaleria a um terço do orçamento do Ministério da Saúde e que a maior fatia dessas renúncias diz respeito à saúde complementar.
Entre as empresas financiadoras dos projetos de CPAs, chama atenção a presença da Vale em um projeto de cidades inteligentes que irá atuar na maior província de mineração de ferro do mundo. Esta empresa é responsável pelos terríveis crimes socioambientais de Mariana e Brumadinho e a forma como seus negócios violam a vida de comunidades inteiras no território nacional é brutal.
Que tipo de compromisso é este que a universidade pública está se direcionando a assumir frente ao domínio e violência com que os capitais vêm impondo contra a vida da classe trabalhadora em nosso país?
Future-se segue presente
O caráter do financiamento do CEREIA na UFC e do edital lançado pelo MCTI, Fapesp e CGI se coadunam com o que estava previsto no projeto de lei Future-se, lançado pelo governo Bolsonaro em 2019 e amplamente rejeitado pelas comunidades acadêmicas nas universidades federais de todo o país. Inclusive, o edital em questão foi lançado no mesmo ano em que o projeto veio à tona.
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Embora o Future-se tenha sido formalmente barrado até o momento, a verdade é que o modus operandi que o projeto visava ampliar e intensificar tem se constituído no interior das universidades brasileiras há décadas. E no momento, parece seguir avançado, de maneira parcelada, em propostas como a tratada neste texto.
A expansão de parcerias público-privadas para aquisição de recursos para pesquisa, com foco na pesquisa aplicada e voltadas para projetos de PD&I, dentro dos parâmetros do Marco Legal de CT&I estavam previstos no projeto do Future-se.
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Outros aspectos que indicam um possível parcelamento do Future-se é a concessão do espaço público da universidade para a iniciativa privada, como está acontecendo na UFRJ, o que é uma forma de colocar em prática o previsto no projeto de Weintraub e Bolsonaro.
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Além disso, chama a atenção a expansão do credenciamento de novas unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (EMBRAPII) nas universidades públicas a partir de 2020.
A EMBRAPII é uma organização social ligada aos ministérios de educação, saúde e da ciência e tecnologia que já atua há 9 anos com universidades e institutos federais.
Na época de lançamento do Future-se, ela foi apresentada como o modelo ideal organização social voltada a área de inovação, junto a este projeto, pelo ministro Abraham Weintraub.
A partir de 2020 as Embrapii passaram de seis para 27 unidades sediadas em 23 universidades federais. Segundo anúncio em coletiva de imprensa realizada em 2020, logo que Weintraub caiu de seu cargo, 50 milhões foram destinados para o credenciamento de universidades com unidades EMBRAPII, para estimular a relação entre universidades e empresas.
Desse modo, é importante se atentar como os projetos que buscam alterar o caráter da universidade pública seguem avançando a todo vapor, independente do governo vigente. Lutar pela universidade pública é também atentar aos mecanismos de privatização indiretos, como as entradas de recursos privados e os projetos que a colocam à serviço dos capitais, destruindo a pouca autonomia que lhe resta para resguardar e produzir conhecimento socialmente referenciado.
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