Jornal socialista e independente

Lalo Minto

É professor da Faculdade de Educação da Unicamp. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Crítica Social (GEPECS). Autor de: A educação da miséria: particularidade capitalista e educação superior no Brasil e As Reformas do Ensino Superior no Brasil: o público e o privado em questão.

“A esperança vai vencer o medo”: notas sobre a conjuntura

29 de setembro, 2022 21:05

Não é fácil conjecturar sobre o que vamos enfrentar no Brasil nos próximos anos. As peripécias da extrema-direita no poder, despojada de grande parte de suas roupagens outrora menos explícitas, é uma das mais emblemáticas expressões da crise do modo de produção capitalista. Com esta, as ‘soluções’ classistas abraçadas por esses setores adquirem configurações ainda mais violentas, até mesmo para países periféricos e dependentes, já tão habituados a elevados graus de violência estatal e de classe. E refiro-me, aqui, sobretudo aos figurinos pragmáticos e concretos que têm caracterizado a expansão e a permanência dessas forças políticas no contexto do neoliberalismo. Em cenários como esse, um dos riscos que se corre é o de que o protagonismo da extrema-direita e suas composições políticas sejam caricaturizadas em demasia, desprendendo-se (na aparência) de suas orientações classistas.

Tornada quase um bordão, a tarefa de derrotar o (neo)fascismo sem dúvida é urgente. Mas, como é que se derrota? Um tipo de análise tem sido predominante: avalia a vitória eleitoral da oposição como um ‘respiro’ suficiente para bloquear as pressões e capacidade de permanência das forças políticas que ora caracterizamos como (neo)fascistas. Forja-se, assim, uma situação em que o combate parece se dar apenas no interior de uma estreita forma de expressão dos conflitos de classe, dando vazão à ideia de um poder (quase) mágico capaz de conciliar disputas inconciliáveis. O slogan “a esperança vai vencer o medo” expressa isso de maneira muito peculiar, justamente, porque a substância da “esperança” é algo como o “medo do medo”. E dá para ter esperança por meio do medo, sem projeto claro e apontamento de futuro?

Florestan Fernandes foi um dos que melhor analisou a maneira pela qual frações das classes dominantes no Brasil conseguiram ajustar as estratégias de defesa dos seus interesses aos parâmetros e perspectivas democráticas que se abriram nas lutas contra a Ditadura: de apoiadoras de primeira hora do golpe de 64 e do regime que se sucedeu a ele, transfiguraram-se em defensoras do Estado de direito, do parlamento como ‘casa do povo’, etc. Se fizeram lá atrás, por que não o fariam novamente?

Mas não se trata, aqui, de fazer uma comparação direta, pois os termos históricos são bastante distintos: ali havia movimentos sociais e sindicais em ascensão; segmentos importantes da classe trabalhadora se levantavam contra o regime, além de setores mais amplos, das camadas médias e até mesmo do interior das frações burguesas insatisfeitas com as ‘soluções’ da ditadura. Poderíamos, então, nos perguntar: a forma atual de organização das forças de classe dominantes no poder perdeu sua vitalidade e capacidade de seguir gerindo os interesses dominantes ou estamos diante de uma disputa por reposicionamento entre forças políticas, sem alterar o plano de fundo dessas disputas?

A conjuntura é nebulosa e trai olhares menos atentos. Na imprensa convencional, alguns de seus principais veículos adotam a estratégia de contrapor-se à permanência do atual espectro de forças políticas colocando todo o foco numa identidade, diuturnamente repetida: ataques às instituições democráticas, questionamento das urnas eletrônicas e do sistema eleitoral vigente. Nesse diapasão, todos os problemas vitais do país e, principalmente, da classe trabalhadora brasileira (fome, saúde e educação públicas, (super)exploração da força de trabalho, dependência econômica, crise, etc.) se tornam secundários ou, quando muito, são acusados de uso eleitoreiro. Em suma, toda a insatisfação é canalizada contra o perfil golpista do atual ocupante da presidência, mas não necessariamente contra outros problemas existentes, sobre os quais se opta por falar o mínimo possível.

Uma das expressões disso do ponto de vista político-partidário é que, embora hoje se possa referir ao governo atual como de extrema-direita, segue-se preservando a identidade política e ideológica dos principais grupos políticos que apoiam o governo, insistente e convenientemente chamados de “centrão”. A exceção são os grupos de aguerridos empresários, líderes religiosos, milicianos e outros, aos quais se deposita na vala comum do “ataque à democracia”.

Já na imprensa dita alternativa e de esquerda, celebra-se o que seria uma ampla insatisfação com o atual esquema político que governa o país. Até os banqueiros estariam insatisfeitos com isso, já disse um desses veículos, entusiasmado pelas recentes cartas e manifestos em favor da democracia. Pouco – ou nada – se diz sobre a estratégia classista que as reveste: bancos que, entra governo sai governo, seguem batendo recordes de lucratividade; uma economia cada vez mais predatória, seja por sua ênfase primário-exportadora, seja por sua relação genética com as formas mais brutais de exploração da força de trabalho e extração de mais-valia (devastação ambiental, quebra de restrições legais, etc.); mecanismos de destruição de tudo o que possa ser considerado como campo dos direitos sociais; as ‘soluções’ privatizantes; a ladainha do empreendedorismo; a mística da inovação como orientação das políticas científicas e tecnológicas. Em tempo: a necessidade “governar com o centrão”.

Sobre o campo educacional, área a qual dedico a maioria dos assuntos tratados nesta coluna, é muito provável que veremos um amplo silêncio quanto ao que de mais nefasto tem sido operacionalizado no atual governo, mas que não é original do atual mandatário e de seus ministros caricatos; tampouco tem sido protagonizado por seus aliados mais explícitos (a mal chamada “ala ideológica”), a exemplo do que tem feito o Conselho Nacional de Educação, que se tornou uma espécie de “gabinete paralelo da educação”, com forte influência do empresariado e seus aparelhos privados, e sob hegemonia de parte da intelectualidade tucana que, aliás, foi protagonista das reformas educacionais nos governos FHC e, para citar outro exemplo importante, nos governos paulistas de Geraldo Alckmin e José Serra.

Nada indica que haverá sequer espaço para questionamentos de fundo sobre os processos de privatização e financeirização da educação em todos os segmentos; o uso indiscriminado da educação à distância como (falsa) solução para problemas de acesso e expansão; a adesão acrítica a políticas que fomentam o uso de indicadores e avaliações em larga escala como parâmetros exclusivos da qualidade educacional; a adesão às agendas ditadas pelo empresariado, seja diretamente ou por meio de seus diversos aparelhos de classe. Talvez se consiga reverter a tendência de intervenção direta em instituições públicas, tão marcadas no governo atual, mas mantendo, é claro, a “ordem das coisas” (listas tríplices, autonomia relativa, estrangulamento orçamentário, entre outras).

Há sinais, por sua vez, que apontam para a tentativa de continuar tudo o que já não deu certo, como indica a excitação do mercado financeiro com as ações que um governo petista retomaria na educação, turbinando os conglomerados privados e sua rentabilidade.

O que se viu até o momento são eleições que correm sob um leito esvaziado de debates políticos vitais, rumo à autopropalada “derrota do bolsonarismo”. Parte da esquerda brasileira, agregando organizações que ainda merecem tal denominação, adotam a tática do “primeiro derrotar o atual governo para, depois, lutar contra o que vem pela frente”. Difícil não notar a linha tênue que separa esse posicionamento de um provável “vamos seguir derrotando por mais quatro anos pois logo vêm as eleições de 2026 e o bolsonarismo pode voltar”. A fragilidade, ademais, se faz patente pelo desvio que as próprias campanhas eleitorais da oposição promovem em relação à questão de fundo que anunciam como urgência: não se propõe nada de concreto para derrotar o bolsonarismo/(neo)fascismo.

Quando tudo se torna questão de urgência, secundarizando até mesmo os objetivos que a justificam, devemos nos perguntar se o que está sendo apontado como urgente não reproduz, exatamente, aquela estratégia – da conciliação de interesses inconciliáveis – que caracterizou o projeto político que foi derrotado pelo (neo)fascismo na sua vertente bolsonarista.

Ora, não se trata de simplificar, mas é patente que em contextos assim reflexões mais radicais, não circunscritas às demandas do curto prazo e da pequena política, passam longe das estratégias políticas das forças que almejam substituir o poder instalado. Dão lugar a discursos e manifestações genéricas que, se não se pode negar sua relevância, também são feitas sob a condição de que sejam, elas próprias, indicadoras dos seus limites. Defesas genéricas da democracia, do direito ao voto, das instituições democráticas, da liberdade de imprensa e, assim por diante, agregam apoio e formam frentes amplas apenas – e tão somente – na medida em que se limitem a esse generalismo.

A campanha eleitoral que ora se encaminha para o fim do primeiro turno, foi pautada em sua absoluta maioria por esse generalismo. Se já não havia perspectivas importantes de que as condições concretas que nos trouxeram até aqui sejam colocadas em questão, ou que se expressem em projetos políticos com força para disputar o pleito eleitoral, sequer o período eleitoral foi utilizado para promover esse tipo de debate.

O fato é que, mesmo diante da possibilidade efetiva de derrota eleitoral de Bolsonaro nas eleições presidenciais, nenhuma das forças políticas de maior expressão na conjuntura brasileira têm explicitado como pretende derrotar o (neo)fascismo. O pior que pode acontecer é que, após outubro, se esqueça também que o (neo)fascismo não chegou ao poder por tudo aquilo que fala e pensa sobre si próprio, mas por meio das regras (contraditórias e possíveis de manipulação, é claro) do regime vigente; e porque, por muitas razões, tornou-se uma resposta considerada boa por parte das forças políticas dominantes no país. E estas continuam por aí, entoando loas à democracia, com o Supremo e com tudo.

As opiniões expressas nas colunas são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.

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