Opinião
Entre o passado e o futuro, aqui estamos nós, trabalhadoras e trabalhadores
Aline Fortunato discute a fragmentação da história da classe trabalhadora no espaço urbano
Observo uma tendência geral, que hoje entendo como previsível, no estudo da história urbana e nas políticas de preservação do patrimônio cultural brasileiro. Essa tendência reside no fato de as narrativas por ambas construídas se apresentarem muitas vezes, e talvez no melhor dos casos, como fragmentos históricos desconexos, quando não assumem, pior ainda, uma história de mão única, a história dos grupos dominantes, instrumento de consolidação hegemônica destes últimos.
É como se juntássemos cacos. Gramsci, em um dos cadernos que escreveu enquanto esteve no cárcere[1], já observava esse caráter desagregado e episódico que marca a história do que ele chama de grupos subalternos, em contraponto à tendência unificadora percebida na história dos grupos dominantes, que se vê expressa na adoção de determinados adjetivos que reforçam, por sua vez, uma impressão de validade incondicional dessa história única – a história oficial, verdadeira, geral, tradicional, nacional, dentre outros termos.
Nas universidades e nos órgãos de preservação, os esforços são percebidos: aqui e ali vemos surgir estudos que contemplam alguns dos fragmentos que compõem a história dos grupos subalternos e que resgatam memórias relativas à classe trabalhadora, mas que não raro são engolidos pela confortável ideia do consenso, da coexistência harmoniosa, da multiplicidade de vozes e sujeitos, negando todo o aspecto conflituoso inerente à sociedade de classes.
Frente a uma história estruturalmente fragmentada, vemos sua fragmentação acontecer por mecanismos cada vez mais requintados e projetar um futuro difícil para nós. Fragmentação que se mostra presente no exercício da ciência, nas emboscadas teórico-conceituais com as quais nos deparamos ao longo de nossa formação profissional, e sobretudo na realidade que encaramos dia após dia e que incorpora cada vez mais as mudanças trazidas pelas tecnologias da informação e da comunicação, que já não podemos (e eu nem pretendo) negar.
Uma dessas mudanças se encontra na expressiva plataformização do trabalho, aliada a estratégias do que confusamente intitulam de marketing digital, que ganha feições das mais diversas nas redes sociais, usando para isso recursos sofisticados possibilitados pelo desenvolvimento científico, que vão desde a conexão em rede até técnicas avançadas de persuasão. Não por acaso, a mentirosa autonomia do trabalhador, agora empreendedor, se vê frequentemente acompanhada de uma solitária rotina que, de tão sobrecarregada de tarefas entre o acordar e o dormir, já quase não deixa brechas para atividades das mais cotidianas, como cozinhar, fazer compras, ir ao médico – mas não seja por isso! -, que agora são acessíveis e terceirizáveis em um simples deslizar de dedos pelo smartphone, aceitando diferentes formas de pagamento e todas as bandeiras de cartão de crédito.
Nossa história está fragmentada, mas ela não deixa de ser coletiva. Nossa realidade está se fragmentando em pedaços cada vez menores e menos palpáveis, menos visíveis – ao passo que nossos espaços de convivência e organização desaparecem, por exemplo -, mas ela não deixa de existir em sua totalidade, ainda que seja necessário o esforço de buscá-la e percebê-la.
Assim, é preciso olhar com atenção para essa rede de trabalhadores invisibilizados, com os quais, de tão pouco vistos, já quase não se tromba pelas ruas das cidades. É preciso encontrá-los (spoiler: mesmo que “invisíveis”, eles estão por toda parte, e é bem possível que você se reconheça, se já não o faz, como um deles). É preciso descrevê-los e analisar a sua realidade, identificar o modo como se dá a sua (a nossa) exploração diante da conjuntura social e econômica da atualidade, enfim, reconhecer a complexidade da classe enquanto categoria dialética (e, por isso, em constante transformação e em direta relação com o tempo e com o espaço), antes de tentar nos resumir precipitadamente em novos –ismos. É preciso superar imaginários já cristalizados, como aquele que resume a experiência da classe trabalhadora à experiência do operário fabril, homem, branco, em contrato CLT – os tempos são outros, e mesmo um olhar mais atento à história é capaz de mostrar que negros, mulheres, bem como a informalidade, estão longe de ser uma novidade na classe.
Sobre os novos -ismos, aliás, quando falamos de empreendedorismo, e mais especificamente de empreendedorismo digital, os recortes de gênero e raça se mostram urgentes nesse processo de reconhecimento, na medida em que a precarização se estabelece mais intensamente entre mulheres e negros, que cumprem papéis estratégicos no sistema de produção capitalista e que se mostram historicamente invisibilizados. Os fragmentos de sua história e suas memórias também fazem parte da totalidade, ainda que tenha sido comum esquecê-los pelo caminho.
O próprio crescimento do empreendedorismo digital na última década tem sido impulsionado pelo desemprego e pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho formal, fatores que se mostram frequentes nesses grupos, por conta das desigualdades sociais e do racismo. Estamos falando, por exemplo, de pessoas que encontram em bicos e em trabalhos freelances a possibilidade de gerar renda, ainda que esporádica e incerta, e, assim, suprir as necessidades básicas para a sobrevivência de sua família. No caso das mulheres, o empreendedorismo digital se alia a outra condicionante que marca a realidade das mães no Brasil, que é a necessidade de conciliar múltiplas jornadas de trabalho – incluindo aqui o trabalho não remunerado, vale lembrar -, de modo a ser possível suportar, em um penoso malabarismo, o trabalho reprodutivo em suas inúmeras formas, junto a outros tipos de trabalho que possam oferecer, por sua vez, fontes de renda direta para o sustento da casa.
E não para por aí. A crescente transformação da informação em mercadoria tem atingido formas, escalas e velocidades de circulação nunca antes experimentadas. Vivemos na época das plataformas digitais, da venda de dados, das criptomoedas, do marketing digital e de afiliados, dos streamings, dos e-books, do ensino à distância e dos cursos on-line (incluindo os polêmicos cursos para vender cursos), dentre outras expressões que essa transformação tem apresentado de modo criativo e diversificado.
Assim, está mais do que na hora de exercitar com mais frequência e consciência esse olhar para o passado em busca de fragmentos muitas vezes escondidos e de revisitar criticamente a história forjada pela hegemonia das classes dominantes, como Gramsci apresenta ao discorrer sobre uma concepção dialética da história. Mais que isso, também parece um momento importante para refletirmos sobre como vamos contar a história que se vê em curso, frente aos erros até aqui cometidos, às dificuldades enfrentadas, e pensando em um projeto de futuro que possa incorporar as tecnologias, hoje em disputa, como aliadas.
Convidamos aqueles que se interessam pelo tema da classe trabalhadora no espaço urbano e história da classe trabalhadora que participem do Circulação da Balbúrdia nesta quarta-feira, dia 17 de agosto de 2022. A Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora (EFoP) Vânia Bambirra receberá a doutoranda Aline Cristina Fortunato Cruvinel para debater o tema do seu artigo intitulado “Memória, trabalho e cidade: contribuições para o debate contemporâneo sobre o lugar da classe trabalhadora”, publicado em 2021 na revista Cantareira.
O artigo foi escrito juntamente com o professor Cláudio Ribeiro, colunista deste jornal e orientador de Aline no mestrado. A atividade será das 19h às 21h, online. As inscrições podem ser feitas no site da EFoP.
Aline é arquiteta e urbanista formada pela Universidade de São Paulo (2010-2016) e pela École Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble (2013-2014). Mestre em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ (2018-2020), atuando em pesquisas sobre patrimônio cultural, classe trabalhadora, memória operária e espaço urbano periférico no capitalismo dependente. Doutoranda em Urbanismo no PROURB/UFRJ (2022), atualmente desenvolve pesquisa sobre classe, tecnologias digitais e espaço urbano.
[1] No Caderno n°25, Gramsci traz uma breve, mas importante, análise a respeito da história do que ele chama de grupos sociais subalternos, através da avaliação crítica de acontecimentos e de produções intelectuais e seus respectivos contextos histórico-sociais, bem como da estrutura social italiana em diferentes momentos da sua história, traçando diferenças e semelhanças entre os grupos subalternos estabelecidos no Império Romano, na Idade Média e na Itália enquanto Estado moderno.
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