Sobre as novas formas de não lutar
Sobre as novas formas de não lutar[1]
Horácio: Ó dia, ó noite! Isso é espantosamente estranho!
Hamlet: Portanto, como estranho, deve ser bem recebido.
Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
Do que sonha a tua filosofia.
Mas, vamos lá;
Aqui, como antes, nunca, com a ajuda de Deus,
Por mais estranha e singular que seja minha conduta –
Talvez, de agora em diante, eu tenha que
Adotar atitudes absurdas –
Vocês não devem jamais, me vendo em tais momentos,
Cruzar os braços assim, mexer a cabeça assim,
Ou pronunciar frases suspeitas,
Como “Ora, ora, eu já sabia”, ou “Se nós quiséssemos, podíamos”,
Ou “Se tivéssemos vontade de, quem sabe?”
Ou “Existem os que, se pudessem…”
Ou ambiguidades que tais pra darem a entender
Que conhecem segredos meus. Não façam nada disso,
E a graça e a misericórdia os assistirão
Quando necessitarem. Jurem.
(Shakespeare[2], 2011, p.40-41)
Não deve existir spoiler para uma história com mais de 400 anos. Hamlet é assombrado pelo fantasma de seu pai, que assombra o castelo para revelar seu assassino ao filho, colocando o jovem em busca de uma vingança contra seu tio Cláudio, que se apossou do trono ao matar seu pai. A trajetória de Hamlet envolve toda a corte, de amigos leais a traidores, de companhias de teatro a cadáveres, de uma jovem oprimida a seus pais opressores. Em meio a um clima permanente de desconfiança, violência e loucura, a história termina com uma épica cena em que quase todos morrem (quem é Tarantino na fila do pão?) e com a chegada triunfal de Fortinbrás, um jovem que vivia uma história semelhante de assassinato de seu pai, rei da Noruega, mas desta feita pelo pai de Hamlet, e que batalhava para retomar seu reino, conseguindo o feito ao assumir um trono vazio sem muitos esforços cênicos ao encontrar o vácuo do poder de uma corte cadavérica.
Por favor, leiam a peça! Assistam às montagens cinematográficas (indispensável a de Kenneth Branagh) e, obviamente, vão ao teatro. Vocês encontrarão muito mais do que o breve (e simplório) parágrafo inicial deste texto. Hamlet é uma peça densa, irônica, inesgotavelmente divertida. Mas leiam logo! Antes mesmo de ler aquele próximo texto de Marx, de Engels, ou aquele outro do Florestan… A leitura é urgente para entender o cenário atual do debate eleitoral brasileiro porque me parece, cada vez mais, que a esquerda acha que persegue aquele fantasma que rondava a Europa, mas na verdade encontra-se assombrada por um rei da Dinamarca morto (vai ver é coisa da Opus Dei).
A esquerda hegemônica, incluindo o fortalecido PSB, tem adotado atitudes absurdas que também não podem ser comentadas nem apontadas, e ninguém pode dizer que conhece seus segredos… Mesmo quando não são segredo algum[3]!
Uma das partes mais instigantes desta obra de Shakespeare é quando uma companhia teatral passa pelo reino e Hamlet encomenda-lhe uma peça, solicitando a inclusão de algumas falas que são a exata encenação do assassinato de seu pai. O Rei, suando frio ao ver aonde a trama chegaria, pergunta ao príncipe “Você já conhece o argumento? Não há nenhuma ofensa?”; “Não, não, eles brincam, apenas; envenenam de brincadeira; absolutamente nenhuma ofensa” responde o jovem Hamlet. Mas quem foi que não se sentiu ofendido, ou quem foi que acreditou que o veneno era placebo ao ouvir as seguintes palavras proferidas há pouco tempo em outra encenação: “A luta sindical deu ao Brasil o maior líder popular deste país. Lula! Lula! Viva Lula! Viva os trabalhadores do Brasil”. A fala, vocês devem ter reconhecido, é de Geraldo. Quem não se espantou com a cena, quem não pronunciou frases suspeitas, ambiguidades? Quem não se revoltou com tanto cinismo, quem não perdeu a (já baixa) vontade de fazer campanha, quem não repensou seu voto, pelo menos no primeiro turno, quem não se viu com a tarefa de dizer: NÃO!? Mas o que prevaleceu foi, assim como na outra encenação: “Não façam nada disso/E a graça e a misericórdia os assistirão/Quando necessitarem. Jurem.”
Os puristas e sectários das urnas que me desculpem, mas é preciso falar e ouvir, seriamente, a respeito das candidaturas dos partidos da ordem em nome da esquerda e de seus desdobramentos em curto e médio prazos. E isso inclui ouvir o que têm a dizer as candidaturas da esquerda que corajosamente permanecem reivindicando o socialismo. Sua existência não é mero fruto de caprichos e arroubos de teimosia, mas resultam de uma combinação de autonomia temperada com a opção do monólogo petista que, como Hamlet, torna-se incapaz de escutar até mesmo a Horácio. Calá-las é o pior dos erros!
Não há dúvidas de que o lugar da construção de novas formas de poder democráticas, populares e socialistas não é atravessado pela disputa eleitoral organizada segundo as regras aceitas pela burguesia brasileira. Ali não há espaço para disputa por mudança da forma real de poder e, por isso mesmo, como já afirmei anteriormente, a esquerda socialista não deveria gastar tanta energia se desgastando ao torná-las a principal tarefa. Deveríamos estar debatendo entre nós como organizar um enfrentamento ao contexto atual de ataques a fim de ganhar musculatura para o que ainda virá nos próximos meses e, sobretudo, após as eleições (seja qual resultado houver). Mas a disputa de consciência pela via institucional, apesar de pouco eficaz, não pode ser encarada como um projeto contrário ao combate ao projeto neofascista de Bolsonaro como muitas forças e indivíduos de vários campos da esquerda têm apontado ao classificar candidaturas autônomas, com programas socialistas, como sendo sectárias, isoladas, caprichosas, meras marcadoras de posição etc., etc. A apresentação da pauta socialista em uma eleição burguesa não pode ser vista como inimiga da classe!
Hoje, com menos certeza do acerto, continuo defendendo o voto em Lula por ser ainda a única candidatura que se coloca capaz de afastar a milícia et caterva do lugar central do comando executivo federal (a milícia não estará fora do poder, mas certamente em um lugar subalternizado em relação ao do atual governo). Entretanto, ao contrário do que muitas/os têm afirmado, parece-me cada vez mais necessário que haja candidaturas representando a esquerda na medida em que a opção do Partido dos Trabalhadores tem sido fechar as portas para iniciativas socialistas, encaminhando-se cada vez mais para um lugar cinzento, incorporando figuras como o “companheiro Geraldo” e, obviamente, tudo que isso representa. Não se trata de purismo, os últimos candidatos a “vice” do PT não eram muito diferentes, e isso diz muito sobre como aquele partido se organiza há décadas. Entretanto, a escolha de (mais) um representante da tradicional política paulista surge como uma jogada eleitoreira para além da conquista de votos, isto é, trata-se de uma movimentação caprichosa para afundar o tradicional rival eleitoral do PT, o PSDB, e, ao mesmo tempo, fragmentar a esquerda partidária, levando ao extremo concessões programáticas e de princípios em nome do apoio a Lula, inclusive esfacelando ainda mais o que restava do PSOL. Isso vai muito além da importante e difícil tarefa que é derrotar Bolsonaro!
Geraldo não traz voto. Na última eleição presidencial ele foi um buraco negro das urnas. Esta escolha não é eleitoral como, por exemplo, poderia ter sido a de alguma liderança do agronegócio, ou de alguma mulher de cunho mais empresarial, (ou ambas), ou de alguma força que extrapolasse a esfera de São Paulo. A escolha de Alckmin é analisada apenas pelo viés da “ideia” Lula (que centraliza os erros e acertos), mas ela também é uma decisão programática do homem-sem-lábios que, aparentemente, pulou do barco afundado do PSDB para disputar o projeto de neoliberalismo com verniz sindical do partido dos (fundos de pensão dos) trabalhadores. Mas esta movimentação, incluindo a entrada no PSB – que vai ao encontro de todo um grupo que está saindo do PSOL, e com mais gente que sai sabe-se lá de onde –, ao fim e ao cabo faz parte da ampliação da hegemonia do projeto petista. O PSB se torna, cada vez mais, um repositório da volta dos que não foram: uma espécie de partido da saudade socialista brasileira, pronta para abrigar os barcos que evitaram atracar no cais.
No fundo, a questão política principal da organização desta movimentação toda reside em uma determinação inevitável: o fora Bolsonaro se tornou uma palavra de ordem estritamente eleitoral. Assim como o Fora, Temer o foi! Mas agora, ao invés do belo e pasteurizado Haddad, está de volta “o maior líder popular deste país”, pronto para atropelar Moro (aliás, aguardamos ansiosamente por essa treta), derrubar a milícia, retomar o crescimento do país e trazer até “a alegria de volta”. A estratégia do PT tem sido muito eficaz: derrubar Bolsonaro é imprescindível para qualquer projeto civilizatório do globo terrestre, pelo óbvio e, depois de todo esse tempo de movimentações mornas só nos restam as eleições. E como o PT de Lula se torna a única força possível para realizar essa tarefa, isto é, se não há rival nesta disputa, por que o partido dos trabalhadores se limitaria a esta pauta se ele pode ganhar ainda mais com essa situação que ele mesmo cultivou como projeto político? Esta pergunta nos leva a um entendimento muito importante para o momento; nós vamos votar em Lula em nome da derrubada de Bolsonaro; mas o projeto eleitoral do PT vai muito além disso. Acontece que aquele partido está acreditando que é Exu ao matar Bolsonaro ontem com uma pedra que só jogará em outubro. E diante desta certeza da vitória, já prepara seu terreno para 2023 de maneira ardilosa, sobretudo, combatendo agora a esquerda socialista.
Enquanto muitas/os acreditam que o projeto daquele partido se encerra no ForaBozo, uma espécie de sacrifício eleitoral para salvar a nação, o que está sendo traçado é, desde já, a consolidação do projeto de poder que o PT está organizando desde que perdeu a confiança da burguesia devido à demora para implementar todas as reformas necessárias para dar uma sobrevida ao capitalismo dependente deste país. A esquerda não tem saída para 2022 e o partido sabe disso. Assim, utiliza sua chance real (e exclusiva) de vitória contra Bolsonaro como lastro para fazer o que bem entender com a esquerda socialista, enfraquecendo sua oposição futura desde já. O PT, neste sentido, já está governando[4]! E esta é a grande encruzilhada na qual as/os socialistas estão colocadas/os,: é preciso votar em quem está nos desmantelando pois, caso Bolsonaro vença o pleito contra Lula, a situação será muito pior e a chance de reconstrução se aproxima da nulidade em um médio prazo. É o que temos para hoje! Por isso devemos ter tranquilidade em votar na única opção que nos restará, mas sem empolgação, e desde já nos organizar como uma forma de resistência necessária para o que vier, quando vier.
Contudo nada está garantido. Se de um lado é inegável a existência de um clamor popular (pelo menos de uma parte significativa da população) pelo retorno ao período da política do consumo expandido (ou do endividamento facilitado) que perdurou na “década” passada; ao mesmo tempo, é sempre bom lembrar, também se identifica em muitas camadas da população a exigência pelo retorno do passado desenvolvimentista-militaresco encarnado em Bolsonaro e na ala das Forças Armadas e da milícia que lhe apoiam.
Nada disso será resolvido de maneira definitiva com uma eleição disputada e com resultado apertado. Inclusive, é importante lembrar que, se dependesse apenas de “clamor popular”, as “Diretas Já” teriam sido aprovadas na década de 80, mas o que prevaleceu foi um projeto de transição conservadora que segue firme e precisa ser compreendido como tal. Assim, não deveria ser preciso afirmar aqui que, apesar de não ser suficiente, a eleição de Lula se torna necessária para que haja alguma possibilidade de construção mais consistente de enfrentamento ao que está sendo processado. Se a construção petista é desastrosa, a outra opção significa a confirmação de uma forma de violência total que ganhará mais espaço e enraizamento em todas as escalas de poder. Mais uma vez, não se trata de uma escolha muito difícil. Infelizmente, não basta declarar voto a Lula, os partidos da ordem exigem uma incondicional concordância a partir da chantagem do cenário futuro de derrota e aumento da barbárie que é, obviamente, uma realidade possível.
Esta intransigência que se dissemina em debates nas redes sociais, nas ruas, nas faculdades, botecos, etc, isto é, uma polarização entre a opção Lula e as demais táticas acaba por impedir o aprofundamento de uma outra questão. Votar em Lula, seja no primeiro turno (que ainda me parece, agora, a melhor proposta), seja no segundo (proposta que também deve ser levada em consideração, respeitada e disputada), não impedirá a conformação de um acordo que está ocorrendo há tempos no teatro da “governabilidade”. Existe uma força que tem se organizado nos últimos anos e que prepara seu desembarque como o Fortinbrás, um triunfo aparentemente sem esforço, acontecendo ao longe da encenação principal. Infelizmente, Hamlet se esqueceu de sua famosa consideração de que ”Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”.
Afinal de contas, a conversa para a qual “ninguém está preparado” é a de que a proposta de conciliação foi rompida em 2016 pela classe dominante e não pelo Partido dos Trabalhadores. E, agora, estas frações de classe, mais uma vez, estão reconstruindo a alternativa petista apenas por acreditar que, caso a sua terceira via não decole (e não decolará), será necessário ter um plano de voo mais seguro para não ficar refém da política Bolsonarista que, inclusive, atrapalha muitos planos neoliberais perseguidos por Guedes, o intocável.
Esse projeto de reconstrução do poder de frações importantes da classe dominante supõe que existe algo além do Palácio do Planalto que assombra as eleições deste ano também, isto é, apesar da aparência do retorno ao ano de 2002, o que estamos presenciando é um continuado aprofundamento do projeto de poder da burguesia brasileira. O desgaste das eleições, o enfraquecimento dos debates, a descrença no processo de escolha que, cada vez mais, sustenta-se pelo fetiche tecnológico de que nós temos a urna mais avançada do mundo, ocultando as regras mais retrógradas, enfim, tudo isso coloca um fator diferencial para as disputas de outubro que a diatribe Lula ame-o ou deixe-o não contempla, e até mesmo oculta. Nem tudo deveria ser sobre Lula. Mas para compreender como tem ocorrido a metamorfose da política eleitoral brasileira, que vai impactar diretamente no comportamento da democracia representativa burguesa, é necessário observar uma estratégia da classe dominante que inovou o ordenamento eleitoral e institucional de poder. Vamos observar como as forças de privatização da representatividade política estão se organizando.
“Há algo de podre no Estado da Dinamarca” (Shakespeare, 2011, p. 35)
Enquanto os partidos da esquerda brasileira travam disputas encarniçadas a respeito de suas candidaturas, depositando suas vontades no processo eleitoral de maneira exagerada, a classe dominante – que obviamente não acredita nas eleições que organiza – constrói sua estratégia de poder para além das disputas aparentes.
O pleito de 2022 não é uma disputa entre esquerda e direita. O que está dado é uma corrida para ver quem assumirá as rédeas do mesmo projeto neoliberal de sempre, isto é, trata-se de uma questão de estilo de governo: de um lado um centrão conservador e aparentemente republicano; do outro um conservadorismo miliciano-militaresco golpista raiz e muito pouco afeito a garantias das mínimas liberdades democráticas. É uma partida ruim entre aqueles que agora estão com o STF, com tudo; contra aqueles que acham que o “tudo” pode prescindir, inclusive, do STF.
Obviamente que o resultado não é indiferente para determinadas frações da burguesia que disputam aqui e ali formas de captura do fundo público e diferentes maneiras de aprofundar as reformas trabalhistas, previdenciárias, etc. Entretanto, já há algum tempo que setores da classe dominante estão trabalhando para diminuir os ruídos da diferença destes resultados. Se a conciliação de classes passava, principalmente, pelo alinhamento do ajuste programático dos partidos que apenas disputavam qual executaria com mais eficiência o mesmo projeto; a situação atual de ruptura da ordem político-eleitoral, isto é, o surgimento de novas forças partidárias que não são tão controláveis, apesar de jogarem no mesmo time, exige uma procura de novas formas de equilíbrio da “governança” das elites. Este projeto já começou há algum tempo, mas seu amadurecimento deverá ocorrer nesta eleição em que a privatização da política partidária deverá ocorrer de modo mais explosivo.
Tomemos como exemplo a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS), criada em 2012[5]. De acordo com as informações de seu site, as eleições de 2010 (Dilma x Serra) foram um momento de preocupação a partir do qual lideranças sociais, políticas e empresariais entenderam que “um Brasil mais justo, com mais oportunidades, melhor qualidade de vida para todos e capaz de respeitar seus recursos naturais só seria possível com lideranças políticas capazes de assumir compromissos concretos com uma ação política inovadora, transparente, participativa, pautada na ética e na integridade e, principalmente, comprometida com o desenvolvimento sustentável”.
A avaliação histórica da política brasileira feita pela RAPS indica que as jornadas de junho mostraram “ao Brasil e ao mundo a insatisfação da população com a qualidade dos serviços públicos ofertados, com as instituições e, em certa medida, com a própria qualidade da representação política.” Completam a análise com o seguinte autoelogio: “Tais eventos, e aqueles que o sucederam, mostraram que estávamos certos no nosso diagnóstico”. Mais um dos produtos políticos oriundos de determinada captura do sentido complexo e contraditório de 2013 – que ganhou várias “narrativas” lineares, seja pelo campo liberal, seja pelos partidos da ordem que se dizem de esquerda – a RAPS vem, desde então, construindo uma atuação política ativa no cenário partidário nacional. Sem nenhuma surpresa, sua análise política prossegue sem fazer referência ao golpe de 2016 ou ao momento atual de crise, concluindo sua apresentação dizendo de forma meio coach, meio mestre dos magos: “De lá para cá, muita coisa aconteceu”. Ser ou não ser – eis a questão.
A RenovaBr[6], por sua vez, foi criada há menos tempo, em 2017, e seu site traz menos informações a respeito de sua breve história. Mas indica que a sua atuação, semelhante à RAPS, “seleciona e prepara pessoas comuns de diferentes origens e posicionamentos que desejam participar da Democracia Brasileira (sic). Nosso trabalho passa pela seleção de potenciais lideranças, construção de amplos e inovadores programas de qualificação, acompanhamento de ex-alunos, atuação e mobilização dos cidadãos em defesa da democracia.”
Estas duas agências não são as únicas atuando no fértil mercado eleitoral brasileiro. Mas provavelmente são as que já embolsaram a maior fatia dos parlamentares que estão à venda. O valor de troca de cada um não é necessariamente alto, alguns editais garantem auxílio midiático, bolsas, um tapa no Instagram e formação de redes de contato e, em troca, se comprometem a seguir uma agenda “suprapartidária” segundo os ditames neoliberais de sempre. No entendimento da mercantilização das candidaturas, ainda resta compreender qual é a correspondente útil do trabalho abstrato que tem produzido valor de troca intercambiável entre esses futuros mandatos, mas deixarei esta reflexão para a militância entusiasta e incansável de certas campanhas eleitorais responder.
Estas agências têm organizado seus times, disputado e ganhado aparatos partidários que organizam candidaturas vencedoras, isto é, cada vez mais se tornam uma espécie de consultoria de projetos eleitorais. Funcionam como uma equipe que naturaliza e domina com maestria a existência e o funcionamento de editais, inclusive participam de concorrências para ganhar bolsas de autopromoção; desenvolvem linguagem consumível nas redes sociais, de fotinhos a lives descoladas; assumem a sustentabilidade como saída para todos os problemas; temem a palavra socialismo, mas não acham estranho, aliás desejam, sentar à mesa com Lemann e, não tenhamos dúvida, sonham em dar entrevista ao Pedro Bial. Trata-se de um comportamento político eleitoreiro automatizado e refinado pelas regras eleitorais vigentes, um senso de adaptação que se torna a regra para tudo. Afinal, “será mais nobre sofrer na alma pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias – e, combatendo-o, dar-lhe fim?” (Shakespeare, p.67). Nenhuma das duas opções, a escolha pela morte da política nunca assombrou os sonhos desta turma.
A política se conforma, desta maneira, aos ditames eleitoreiros como um fim em si mesmo, isto é, a vitória nas urnas vale mais do que qualquer outro processo político, qualquer mesmo, seja uma campanha pedagogicamente politizante, seja um mandato que ajude a construir e disputar consciências contra a máquina neoliberal. Nada interessa, apenas a próxima eleição e a manutenção do compromisso com a agência. Desta forma, quaisquer adaptações necessárias dadas pela regra eleitoral devem ser seguidas sob a pena de perder a possibilidade de disputar a próxima eleição, que é o mais importante. Se as regras eleitorais diminuírem o tempo de exposição, a duração das campanhas, a realização de comícios, etc. etc., serão apenas menos gastos para alcançar o objetivo final: disputar a eleição, ganhar visibilidade, usar deste “capital simbólico” para disputar mais uma vez algum cargo[7] de destaque midiático para disputar a eleição, ganhar visibilidade e recomeçar o ciclo. E aumentar o círculo de colaboradores. Uma espécie de “pirâmide” eleitoral. Mas este ciclo Eleição-Visibilidade-Eleição’, rapidamente torna-se Visibilidade-Eleição-Visibilidade’ e o capital simbólico que surge deste ciclo do consumo da democracia, que tende a se tornar um par mais direto Visibilidade-Visibilidade’, será apropriado por quem, objetivamente, está fazendo a política que não dá as caras nessas organizações: o setor empresarial que a financia, organiza e comanda. Uma das maiores vitórias deste setor, obviamente, é eliminar as oposições “ideológicas” ao ter os seus infiltrados conquistando corações, mentes e cliques mesmo dentro de partidos que se consideravam de esquerda. O caso do PSOL merece mais avaliações ao longo do tempo, mas sua dissolução confirmada pela federação com a outra Rede passa pela atuação dessas agências.
Esta questão nunca foi inevitável. Miton Santos já alertava sobre o risco do cidadão se tornar um consumidor mais que perfeito, inclusive de votos, e, pelos resultados que temos observado, o geógrafo não foi nem um pouco escutado, mas seu acerto é inegável e precisa ser reafirmado de forma peremptória pelos quatro cantos. Se queremos resgatar a possibilidade de reconfiguração de alguma política de ruptura, o ciclo eleitoral que nos foi imposto precisa ser superado. Quero dizer com isso que ele precisa ser superado pela militância e organizações de esquerda enquanto uma finalidade maior da disputa social na medida em que as eleições, da forma como estão organizadas, nunca serão favoráveis à construção do socialismo. Isso não significa uma postura dualista de negação da existência de processos eleitorais, tampouco um afastamento total, pois a mediação com a realidade do senso comum precisa ser feita para abrir canais de disputas; entretanto, esta deve se tornar apenas mais um dos elementos da avaliação da ação organizativa e da luta, não o elemento central.
No atual momento, por exemplo, para pensar qualquer ação organizativa é preciso levar em consideração que o cenário de ação da classe trabalhadora em um segundo governo Bolsonaro é absolutamente diferente das suas condições de realização em um governo de centro como será o do PT-PSB et caterva. Estes cenários precisam ser avaliados de maneira séria. Uma segunda vitória de Bolsonaro depois de tudo que já ocorreu – e com tanta coisa ainda por vir – não pode ser encarada como mera repetição do processo vivenciado nos últimos quatro anos.
Entretanto, um dos elementos importantes da avaliação do atual cenário eleitoral não está contido nas diferenças entre a vitória de Lula ou da milícia. Trata-se de avaliar aquilo que, pelo contrário, não será modificado independentemente do cenário final das eleições. As forças de privatização eleitoral estão atuando de maneira cada vez mais eficiente, e fazem com que os partidos da ordem não disputem, de fato, nem mesmo as eleições entre si, mas apenas se candidatem a conduzir uma política que nunca foi feita por eles; enquanto isso, como a esquerda revolucionária acaba acreditando na disputa eleitoral, deixa de fazer a política de disputa pelo socialismo por outras vias (o que não é feito por mais ninguém). O resultado é que as plataformas de privatização eleitoral e adestramento político têm alcançado resultados expressivos como indica este resumo da RAPS[8]: “No Congresso Nacional, são 8 senadores e 37 deputados federais, o que representa 8% do Parlamento. Adicionalmente, há 46 deputados estaduais, 2 deputados distritais, 2 governadores, 91 vereadores, 30 prefeitos e 12 vice-prefeitos”. Estes dados do sucesso destas agências, entretanto, não deve gerar uma corrida eleitoreira para a reversão deste processo, pelo contrário, deve indicar como esta arena de disputa está corroída e não serve como forma política de construção de uma saída radical, socialista, libertária e popular.
Se estes dados estão corretos, a RAPS seria a quinta bancada no Senado, maior que a do próprio PT (provavelmente incluindo alguns dos seus/suas senadoras/es); e ao mesmo tempo a 8ª bancada de deputados federais, similar ao MDB e maior que a do PSDB (incluindo deputadas/os de ambos os partidos pelo óbvio). Estes números divulgados pela RAPS não demonstram apenas um retrato estático da força do grande capital brasileiro no cenário eleitoral, mas revela também a velocidade de seu crescimento. Se levarmos em consideração o relatório da RAPS de 2018 (feito logo após as últimas eleições), ela possuía “apenas” 16 deputados federais eleitos, e mesmo se somarmos aquelas/es oriundos da RenovaBR[9], o total era de 21. Os dados atuais indicam um crescimento de 76%, representando adesões ao longo do último mandato (2018-2022) e confirmando o case de sucesso.
A seguir, para ajudar a compreender este fenômeno, apresentarei alguns dados extraídos dos relatórios de 2018 e 2020 das duas agências. Espero ajudar a elucidar o fato de que, enquanto partidos estão preocupados em manter uma estabilidade de disputa eleitoral através da submissão às “federações partidárias”, as adesões programáticas de fato estão ocorrendo sem nenhuma mediação das instâncias internas dos partidos, ou pior, com sua total concordância, na direção de um alinhamento neoliberal. Muita gente ficou espantada com o crescimento do perfil de “liberal na economia, conservador nos costumes” nos últimos anos, mas o espanto seria maior se elas soubessem como anda o perfil “liberal nos costumes, neoliberal na economia, autoproclamado de esquerda”. Entretanto, como em Hamlet, a encenação se constrói num jogo de reflexos em que a percepção da tragédia fica evidente, entretanto, mais difícil é capturar qual é o elemento da farsa. Dados não resolverão a questão, mas podem indicar um caminho possível para a compreensão do fenômeno esquecido.
A RAPS indica que está presente em 29 partidos, e nos relatórios que levantamos já conseguimos captar sua participação (em conjunto com a RenovaBR) em 28[10] legendas:
Estes gráficos representam a totalidade de eleitas/os, aplainando a importância e peso de determinados cargos, posto que concentram vice-prefeitos e senadores com o mesmo peso. Mas, sobretudo, estes dados ajudam a compreender o amplo espectro ideológico abarcado pela agenda empresarial. De toda maneira, para compreender a diferença de alguns cargos, em 2018 já havia, por exemplo, dois governadores eleitos pela RAPS, Eduardo Leite (PSDB-RS) e Renato Casagrande (PSB-ES). Da mesma maneira a lista de Senadores já era assim em 2018: Maria Gabrilli (PSDB-SP), Rodrigo Cunha (PSDB-AL), Alessandro Vieira (Cidadania-ES), e o “radical de esquerda” Randolfe (Rede-AP).
O levantamento mostra, na liderança de candidaturas vitoriosas, a fina flor do neoliberalismo – Novo + PSDB – em conjunto com importantes legendas consideradas de aluguel que, de fato, honram o nome. Os partidos que são lidos de forma mais consensual como sendo de esquerda, como PT e PSOL, mostravam-se menos permeáveis a essas entidades – pelo menos em 2018 ou, pelo menos, entre as/os suas/seus candidatas/os eleitos. Obviamente que, para as próximas eleições, esta aparente blindagem já foi resolvida pelas coligações, alianças, federações e que tais; sem contar que os dados atualizados de adesões a essas agências[11] devem ter ampliado bastante a atuação de todos os partidos da ordem. Para se ter uma ideia, as colunas em vermelho indicam o conglomerado da esquerda da ordem em conformação nessas eleições. Se somarmos o PSB, Rede, PT e PSOL obtemos um número de 37 eleitos, o que seria a maior bancada do suprapartido RAPS+RenovaBR.
Para ajudar a entender o rumo da mercantilização eleitoral, a lista de prefeitas/os pode interessar, repetindo o padrão de ausência dos partidos que formam o arco da atual esquerda da ordem (a tabela a seguir segue ordem alfabética das siglas partidárias):
Partido | Nome | Estado | Cidade |
Cidadania | João Dieguez | MG | Nova Lima |
Dem | Igor Santos | MG | Paracatu |
Dem | Lucielle Laurentino | PE | Bezerros |
MDB | Edilson Tavares | PE | Toritama |
MDB | Eudes Araújo | GO | Novo Planalto |
MDB | Miguel Coelho | PE | Petrolina |
Novo | Adriano Silva | SC | Joinville |
PDT | Axel Grael | RJ | Niterói |
PDT | Edvaldo Nogueira | SE | Aracaju |
PODE | Caio Cunha | SP | Mogi das Cuzes |
PODE | Guto Issa | SP | São Roque |
PODE | Kayo Amado | SP | São Vicente |
PODE | Luís Eduardo Falcão | MG | Patos de Minas |
PODE | Mario Hildebrandt | SC | Blumenau |
PP | Cristiano Gerardão | MG | Capitólio |
PP | Luiz Paulo | MG | Curvelo |
Progressistas | Eduardo Boigues | SP | Iaquaquecetuba |
PSB | João Campos | PE | Recife |
PSD | Arao Josino | SC | Ascurra |
PSD | Bruno Cunha Lima | PB | Campina Grande |
PSD | Guti | SP | Guarulhos |
PSDB | Paula Mascarenhas | RS | Pelotas |
PSDB | Raquel Lyra | CE | Caruaru |
Republicanos | Major Renato | MG | Araguari |
SD | Alysson Bezerra | RN | Mossoró |
SD | Fernando Bezerra | RN | Acari |
SD | Tarcísio Torres Pedreira | BA | São Gonçalo dos Campos |
Estes cargos do executivo ajudam a demonstrar uma certa capilarização destas agências de privatização política em andamento, pois não se trata apenas de pequenas prefeituras, mas de uma variedade de escalas e localizações das cidades. Municípios de peso na estrutura político-urbana brasileira estão submetidos a este arco eleitoreiro: Recife, Aracaju, Niterói, Campina Grande, Pelotas, Guarulhos, Petrolina, Blumenau, Nova Lima, por exemplo, são cidades que compõem configurações metropolitanas estratégicas ou mesmo centros regionais destacados. Assim, com grandes, médias e pequenas cidades espalhadas por quase toda as regiões (a única exceção é a Norte), a gestão municipal que ganhou centralidade e poder na constituição de 1988 vai, aos poucos, sendo privatizada de maneira silenciosa. Vale conferir como a distribuição geográfica, reunindo os dados de todas as pessoas eleitas em 2018 e 2020 ocorre:
Naquele momento, eram 24 estados que já possuíam pelo menos um caso de vitória eleitoral. As posições majoritárias de São Paulo e Minas Gerais não surpreendem por serem estes os dois maiores colégios eleitorais do país; mas a concentração da ação em Santa Catarina e Espírito Santo, por exemplo, chama a atenção de que algo mais grave pode estar ocorrendo por ali, o que requer, também, estudos mais aprofundados. Afinal, o comportamento das legislaturas destes estados está mais propenso aos acordos empresariais conciliatórios? Quais projetos de lei têm sido apresentados por estas bancadas? Como se comportou o crescimento das adesões nesses lugares?
Para trazer à tona um exemplo que chamou a atenção quando a planilha foi preenchida, Balneário Camboriú e sua vizinha Camboriú, têm 3 vereadores eleitos: Marlon Borsatto (Camboriú – Cidadania – RenovaBR); André Meirinho (Balneário Camboriú – PP – RAPS) e Lucas Gotardo (Balneário Camboriú – Novo – RAPS). Vale uma breve aproximação para compreender as formas soft de ação dessa política.
Lucas Gotardo, “o parlamentar mais jovem da legislatura […] tem como diretrizes que norteiam sua atuação […] a eficiência na produção legislativa, desburocratização, a defesa da liberdade e a transparência.”[12] Já André Meirinho[13] “tem como foco o desenvolvimento sustentável. É preciso pensar no melhor para hoje e para as futuras gerações”. Por sua vez, Marlon Borsatto tem como principais bandeiras a educação, o desenvolvimento econômico, e a “causa animal”.[14] Estas pautas são bastante comuns e representam um discurso liberal disseminado por inúmeras candidaturas, daí sua maleabilidade e sua capacidade de adesão. A atuação parlamentar se alinha, por exemplo, em votações favoráveis à diminuição da câmara de vereadores de Balneário Camboriú (em nome da eficiência, economia de recursos, etc.); mas também se concretiza em projetos de lei apresentados de forma conjunta. Gotardo e Meirinho, por exemplo, apresentaram um projeto para a “Proteção do Patrimônio Cultural do Município de Balneário Camboriú e dá outras providências”[15]. Dentre outras providências, está a previsão de que “proprietários de imóveis declarados como de valor cultural poderão contar com os seguintes incentivos, […] a fim de assegurar-lhes a sua conservação, preservação e manutenção”: “incentivos construtivos; e parceria entre poder público e a iniciativa privada”, tais como “autorização para ser edificada construção acima dos limites previstos pela legislação em vigor, mediante compromisso formal do proprietário do imóvel de valor cultural, histórico ou arquitetônico de preservá-lo”.
Quem conhece a história da criação e flexibilização de instrumentos de preservação do patrimônio cultural imobiliário sabe que isso não é nenhuma novidade, muitas cidades promovem estas e outras políticas problemáticas há anos em nome da “preservação da memória”. A justificativa será positivada, como sempre, pelo discurso da “sustentabilidade financeira”. Meirinho[16] afirma que o projeto de lei “É uma forma de promover a proteção do patrimônio cultural do Município de Balneário Camboriú, […] propondo instrumentos e mecanismos para facilitar o resgate histórico, a valorização paisagística, ecológica e dos bens materiais e imateriais que compõem a identidade do município, fomentando inclusive o turismo: aliando os aspectos econômicos, sociais, ambientais e culturais, ou seja, de forma sustentável.” Encenando a mesma peça, Gotardo declama: “Preservando e reconhecendo o valor do patrimônio cultural, Balneário Camboriú fortalecerá sua estrutura para mobilizar diversas áreas da economia, como o turismo, a economia criativa, entre outros.”
Não devemos subestimar a naturalização que a mercantilização da história significa para as cidades e para a memória da classe trabalhadora. Mas tudo isso pode parecer muito barulho por nada. Uma política de pequeno alcance diante do tamanho do problema que temos pela frente. Mas é exatamente disto que se trata. O fato do neoliberalismo se apresentar de maneira organizada e capilarizada no país é que precisa ser compreendido como uma resultante do processo eleitoral que ganhará muito mais adesão nestas próximas eleições. Isso decorre de um fenômeno exemplificado pelo fato de que, enquanto os questionamentos dos militares sobre a fragilidade da urna eletrônica terem sido corretamente combatidos pelo TSE e por parte da grande mídia, a simplificação e diminuição do processo das campanhas eleitorais, a criação de federações, ou a própria existência destas agências de privatização da política não são vistas como um problema real.
O que importa, neste momento, é identificar o quão distante políticas como estas de Balneário encontram-se de qualquer ideário de esquerda moderada reformista que se possa imaginar. A tendência do desaparecimento das discordâncias partidárias é evidente! Em breve haverá o Centrão contra o Centrão do B, e o consenso assumirá de uma vez por todas o lugar do conflito, mas se realizando como confronto para cima da população pobre e sem direitos. Esta talvez seja a síntese da tendência do resultado eleitoral que nos espera em 2022…se tudo der certo.
O que precisa ser compreendido é que, daqui para a frente, o jogo partidário adquire um outro papel na conciliação de classes na medida em que a intervenção programática, as pautas, etc., têm sido costuradas diretamente por aparatos da classe dominante que conseguiu, de maneira eficaz, penetrar de forma ativa em praticamente todos os partidos brasileiros. Não há bandeira de esquerda socialista que sobreviva a sucessivos processos eleitorais organizados desta maneira. A liquidação do PSOL, que se submeteu à federação com a Rede, é um passo muito importante para eliminar qualquer ilusão de quem acredita na via parlamentar no Brasil contemporâneo. O que nos retorna a uma questão inicial: a disputa que está dada nas urnas não é entre esquerda e direita; mas entre uma fração da burguesia que deseja exercer sua dominação sem outro golpe e, para isso, escolhe Lula mais uma vez para administrar sua agenda neoliberal, e, do outro lado, frações mais conservadoras que desejam um golpe mais tradicional para continuar a impor sua agenda neofascista miliciana. A privatização eleitoral por estas agências serve para diminuir atritos entre essa disputa da classe dominante.
E, no meio disso tudo, parte da esquerda está procurando o espectro do comunismo enquanto o fantasma que lhe assombra é outro. Assim, perdida ao tentar assumir o papel de Hamlet, de Ofélia, de Rosencrantz ou Guildenstern[17], esquece que existe um Shakespeare e que a pergunta principal deveria ser: qual a próxima peça? Duvido que seja “Sonhos de uma noite de verão”.
Fortinbrás: Onde é o espetáculo?
Horácio: O que é que esperavas ver?
Se é um quadro de horror e infelicidade,
Não procures mais.
(Shakespeare, 2011, p.139)
[1]A montagem digital que acompanha o texto, feito sobre uma cena de Hamlet interpretada por Kenneth Branagh (minha versão preferida no cinema) carrega um sentido que merece uma nota mais longa. Muitos irão interpretá-la tendo ao fundo o famoso monólogo do “Ser ou não ser – eis a questão…”. Acontece que, assim como na política, nem tudo é o que parece. Na peça original, o tal monólogo não acontece durante a famosa cena em que Hamlet segura um crânio. Trata-se de uma ilusão do senso comum que reúne a fala mais famosa com a imagem mais reconhecida. Como na política, a ideia de Hamlet simplifica a realidade da peça e cria-se uma ilusão, como se as coisas que chamam mais a atenção andassem sempre de mãos dadas, impedindo sempre o entendimento do detalhe. A título de curiosidade para quem não conhece ainda a peça, a fala desta cena é sobre um bobo da corte, Yorick, que o príncipe conheceu quando criança e cujo crânio recebe das mãos de um coveiro e, olhando-o, proclama coisas assim: “Mil vezes me carregou nas costas; e agora, me causa horror só de lembrar! Me revolta o estômago! Daqui pendiam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Yorick, onde andam agora as tuas piadas? Tuas cambalhotas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa explodir de gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura? Que falta de espírito!”. Que falta de espírito.
[2] Diversas obras de Shakespeare (e de diversos outros autores teatrais) foram traduzidas por Millôr Fernandes no Brasil. Hamlet foi uma delas. Utilizo como referência a edição da L&PM Pocket e, por vezes, a tradução difere da maneira como jargões oriundos de Shakespeare costuma nos acompanhar na memória coletiva. Assim, “Há mais coisas entre o céu e a terra do que julga (ou supõe) a nossa vã filosofia” se torna “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, Do que sonha a tua filosofia” ou “Há algo de podre no reino da Dinamarca” se torna “Há algo de podre no Estado da Dinamarca”, etc, etc…
[3] Enquanto este texto estava em fase de finalização ocorreu um ataque midiático acusatório à drag queen Rita von Hunty por colocar em questão a necessidade de votar em Lula no primeiro turno. O importante debate que isto significa foi deixado de lado em nome de uma reivindicação daquele voto como a única saída possível de luta contra o golpe em curso. Um típico caso da “esquerda cordial” agindo de maneira insistente e disseminada.
[4] Quem acha que isto é exagero talvez não conheça um pequeno, mas significativo gesto. No final de 2021, quando a luta contra a segunda tentativa de implementação da EBSERH na UFRJ estava ganhando força; uma luta contra uma empresa que está hoje nas mãos de um general que foi importante para a condução do governo miliciano; o “senhor PPP” Fernando Haddad enviou um áudio de whatsApp para conselheiras/os da UFRJ reivindicando a aprovação das negociações com aquela empresa que ele ajudou a criar, mas que não havia conseguido emplacar na maior universidade federal do país. Aprová-la agora não se tratava de um favor a Bolsonaro e seus milicos; em sua cabeça, obviamente, tratava de resolver questões inacabadas que a gestão de seu partido não quer retomar ao “assumir a presidência” em 2023.
[5] https://www.raps.org.br/nossa-historia/
[6] https://renovabr.org/o-que-fazemos/
[7] Vários tipos de cargo. Um dos colaboradores da RenovaBR, considerado um “professor” (sic) que ministra cursos de formação sobre o “case cidade do Rio de Janeiro” é o eterno secretário de urbanismo de Eduardo Paes, o Lacerda pós-moderno Washington Fajardo que organiza políticas de captura de pautas do trabalho para usar a favor do capital.
[9] Os números atuais da RAPS podem ter incorporado os da RenovaBR, na medida em que muitas/os parlamentares já pertenciam às duas organizações. Dos 21 levantados nos relatórios de 2018, 4 pertenciam às duas. E um número maior de vereadoras/es e deputados estaduais, etc., também figuravam assim, o que pode ser uma tendência.
[10] O levantamento foi feito através da tabulação dos nomes de pessoas eleitas nas eleições de 2018 e 2020 fornecidas pelos relatórios destas duas entidades. Quando a RAPS indica estar presente em 29 partidos, por exemplo, isso não significa que seja com membros necessariamente eleitos (apesar de ser bastante provável que haja mesmo aumentado o número de partidos com pessoas eleitas que se juntaram a elas). Da mesma maneira, a instituição indica que está presente em 26 Estados e no DF, mas o levantamento realizado indica “apenas” 24 estados, e sem representante eleito no DF naqueles anos. A tabela com os nomes levantados está no seguinte link para quem desejar: https://docs.google.com/spreadsheets/d/1aexKpeZDneCXotu17iRINBLWP4Rx2DA9uWSkQtYzPn4/edit?usp=sharing Pode haver alguma imprecisão na distribuição dos partidos porque não me dei ao trabalho de atualizar os nomes das marcas partidárias, mantendo as denominações tal qual apareciam nos respectivos relatórios.
[11] Esta lista não foi encontrada e demandaria um levantamento ainda mais trabalhoso que aquele já realizado para a produção deste texto. Mas é um trabalho que precisa ser realizado.
[12] https://novo.org.br/eleitos/lucas-gotardo/
[13] https://www.andremeirinho.com.br/
[14] https://www.marlonborsatto.com.br/
[15] https://www.balneariocamboriu.sc.leg.br/proposicoes/Projetos-de-Leis-ordinarias/0/1/0/110781
[16] https://www.balneariocamboriu.sc.leg.br/imprensa/publicacoes/Materias-dos-Gabinetes/43/2015/47181
[17] É bom lembrar: que já estão mortos!
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