A esquerda cordial e a hipótese neoliberal
Parte 1 – uma esquerda cordial
“A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas” (Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, p.160 – edição de 1999)
Não é à toa que Antonio Candido considerou, em seu famoso prefácio, que Raízes do Brasil se tornara um clássico de nascença. Passados quase cem anos da obra incontornável de Sérgio Buarque de Holanda, permanece a impressão de que o Brasil se torna, cada vez mais, um conjunto de mal-entendidos no qual sempre impera uma democracia lamentável. Mesmo quem serve aos donos do poder tem se confundido bastante, como no caso recente do derretimento de Paulo Guedes, o cringe. O mercado chegou a revelar que acreditava que a milícia ia respeitar a lei de responsabilidade fiscal, como se também fosse signatária, de caneta BIC, de uma espécie de carta aos brasileiros. Ora, quando eles batem cabeça temos duas reações simultâneas: na aparência, podemos até nos divertir com os deslizes dos trapalhões poderosos, mas na essência sofreremos as piores consequências que nos lançarão em condições de reprodução social ainda mais miseráveis, injustas e brutais – e dá-lhe consumo de osso, xepa de caminhão de lixo, aumento de desemprego, austeridade seletiva radicalizada, massacres. Estamos há anos vivendo um jogo em que as brigas das frações burguesas conduzem a totalidade das decisões políticas, sem espaço para qualquer manobra distributiva, nem mesmo para qualquer tentativa ou desejo de conciliação.
E como tem se comportado a esquerda? Afinal, qual a parte do lamentável mal-entendido que nos cabe? A pergunta mais precisa talvez seja: estamos dispostos a reconhecer que existe um mal-entendido entre nós em relação à democracia brasileira? Mas, infelizmente, a esquerda parou de exercer a solidariedade da crítica, insistindo em viver de certezas que somente quem está no poder é capaz de dispor. Torna-se, cada vez mais, um espelhamento da direita, mimetizando-a sem possuir as condições materiais e simbólicas para tal. A esquerda se aproximou de tal maneira da forma conservadora de fazer política que agora passa a absorver também parte de seu conteúdo.
O conceito de cordialidade[1] construído em Raízes do Brasil se apoia, dentre outras coisas, em uma estratégia de sobrevivência de grupos e pessoas oprimidas que, diante de uma elite que não constrói regras explícitas de hierarquia (típico de uma autocracia que conhece os limites da democracia que quer utilizar), precisa escolher um opressor para chamar de seu. Diante da disputa entre frações do poder, os mais vulneráveis se aproximam de um dos lados para sobreviver às pressões daqueles que podem lhe impingir perda maior. Resta ao oprimido sem direitos, portanto, uma imediata aproximação pela via da submissão concordante e sorridente do seu explorador-opressor-protetor. A noção de cordialidade surge exatamente daí, isto é, seria devido à ausência de regras impessoais, democráticas e racionais de proteção (o termo cordial surge para contrapor determinada racionalidade contratual); ou seja, diante da ausência de garantias normativas prevaleceria o “coração”, uma submissão forjada como se afeto fosse. Como bem cantou o filho Chico Buarque em Ópera do Malandro, a escolha do patrão cordial[2], esta sim, é uma escolha muito difícil:
Quando tu quebrava
E tu desmontava
E tu não prestava mais não
Eu comprava outra, morena
Se eu fosse o teu patrão
Pois eu te pagava direito
Soldo de cidadão
Punha uma medalha em teu peito
Se eu fosse o teu patrão
(Se eu fosse o teu patrão – Chico Buarque)
E não tem sido esta a opção de uma parte crescente da esquerda brasileira? Estamos diante de uma estrutura democrática explicitamente burguesa. As eleições têm regras que cada vez mais promovem uma disputa injusta, aproximando-se de forma muito veloz da falsa ideia disseminada pelo mercado em relação a tudo na vida, ou seja, existiria uma escolha livre e meritocrática para o consumo das mercadorias – e das candidaturas. A última eleição geral se apoiou em uma fraude jurídica para retirar Lula da disputa; movimentos e entidades da esquerda denunciaram a “seletividade da justiça” e muitos bradaram que eleição, apenas sem ele, era fraude… Tempos depois, a fraude foi confirmada pelas mesmas forças que antes a forjaram, em um movimento que só parece incoerente para quem se esquece que a única regra válida é a obediência aos interesses das frações burguesas que estão no poder. A esquerda, diante de toda essa explicitação do poder de classe, de todo esse método golpista de ação, diante da hegemonia burguesa sem superego, tenta se adaptar, até de forma afetuosa, remando nesta maré como se fosse a única, ou a principal, ação possível. Ao mesmo tempo, corolário da cordialidade, trata com ódio e inimizade qualquer crítica que surja, sobretudo de camaradas que trilham a estrada contra o capital. Faz parte da adesão afetuosa demonstrar que não divide o amor com mais ninguém, sobretudo com quem duvida do bem-amado. Antes de escolher seu patrão, a esquerda apressada deveria escutar a canção até o final, em que todas as vozes se unem para encerrar o forró:
Mas se tu cuspisse no prato
Onde comeu feijão
Eu fechava o teu sindicato
Se eu fosse o teu patrão
(Se eu fosse o teu patrão – Chico Buarque)
Obviamente, é bom explicitar para promover o diálogo desejado, caso haja eleição em 2022 e a disputa seja entre Lula e Bolsonaro a escolha não vai ser nada difícil. Se votamos em Haddad em 2018 e o dedo não caiu, votaremos em Lula sem problemas. Isso nem devia estar em discussão. Se o Partido dos Trabalhadores está disposto a assumir a institucionalidade burguesa e geri-la sem orçamento, sem garantias democráticas de ação social, sem um legislativo forte e nem mesmo reformista, e com o STF, com tudo; se a opção de luta já foi abandonada por eles e a democracia burguesa é a única saída que enxergam, desejam e defendem: ao vencedor, as batatas! Mas será preciso malhar mais do que coxas para manter unido o arco de Delfim Netto a Manuela d’Ávila, passando por Renan Calheiros, Kátia Abreu e movimentos como o MST. Lula se consolidará como um Colosso de Rodes cordial, com seus pés fincados em inúmeras ilhas. Mas, sem sombras de dúvidas, melhor enfrentar um Colosso do que um mito.
O problema abordado aqui não é este. Muito pelo contrário, a questão é que este se tornou o principal problema da esquerda brasileira. Colocar como sua maior disputa a escolha sobre qual ramo da ordem ajudará a eleger é um lamentável mal-entendido e apenas nos conduz a aproximações com patrões (o que necessariamente nos afasta da classe). Se houver eleições com a possibilidade de enfraquecimento do campo que constrói abertamente a construção de um regime neofascista no país, qual a dúvida? Não devemos nos desgastar em função disto, alguém quer estar no lugar do PT para disputar as eleições? A pergunta que a esquerda socialista precisa fazer para sair desta novela mexicana, ou melhor, desta série coreana é: quais ações políticas construídas pela classe trabalhadora são possíveis e devem ser organizadas neste momento?
Não sabemos a resposta. E qualquer debate sobre isso tem sido classificado de forma mais ou menos desonesta, e fortemente dualista: apoie o Lula incondicionalmente ou cale-se para sempre! Eis uma das características da cordialidade, um dualismo que é uma herança da aristocracia rural-colonial, uma espécie de permanência pré-hegeliana, um mal-entendido… Assim, os caminhos se tornam óbvios e limitados demais, escolha qual lado você vai apoiar e, por favor, trate-o bem, com sorrisos e agrados, apelidos e elogios para que, quem sabe, ele possa te enxergar e acenar, curtir tua postagem, mandar uma foto e, de quebra, reivindicar a tua pauta ao invés de redigir uma nova carta aos banqueiros brasileiros.
O homem cordial tem medo de ficar sozinho, tem medo de conviver consigo mesmo. Esta insegurança se expressa na esquerda à medida em que ela deixa de fazer debates entre suas diferentes forças a partir de suas próprias definições políticas dialéticas, operárias, radicais, socialistas. A esquerda começou a acreditar que união é sinônimo de consenso e, cada vez mais, tornou-se gerencialista, resiliente, pós-moderna. A esquerda abandonou o conflito como fermento da luta, fortalecendo a busca por grandes conciliadores, quando devíamos nos tornar, cada vez mais, especialistas em rupturas, em transformações, em revoluções, o que não pode ser confundido com um divisionismo atomizante. Temos tratado mal nossas discórdias ao procurarmos suprimi-las quando devíamos superá-las; precisamos exacerbar as origens das nossas diferenças dissecando nossas possibilidades de divergência. É neste exercício que encontraremos distintas maneiras de apreensão, resistência e tática de combate às várias formas de opressão, diversificando e fortalecendo nossas ações, tornando mais abrangente e ao mesmo tempo radical a nossa capacidade de intervenção na luta de classes.
Precisamos, com urgência, retomar o debate pelo viés da classe trabalhadora, com todas as suas pluralidades advindas do mundo do trabalho e da luta contra as opressões de gênero e raça. É urgente um autorreconhecimento da classe enquanto um sujeito social capaz de construir formas políticas próprias que se tornem determinantes para a ruptura social necessária. A esquerda precisa romper com a cordialidade, deixando de temer a convivência conflituosa consigo mesma, debatendo de maneira visível, aberta e solidária suas diferenças programáticas sem que o melindre eleitoral se torne um super-trunfo que sirva para silenciar as divergências. Isso não significa negar as disputas de poder que existem no campo crítico, mas compreender que a forma de poder em disputa é outra, o que inclui alterar, também, a forma de disputa pelo poder. As armas da direita não podem ser incorporadas pela esquerda: menos eliminação (ou cancelamento) e mais dialética e superação… entre nós!
Somente reconhecendo, imaginando e praticando outras formas de poder seremos capazes de sair da armadilha eleitoral que nos persegue. Isso exige uma tática continuada e permanente de organização. A fórmula de apertar o botão de quatro em quatro anos, lembremos, é a continuidade do lamentável mal-entendido de nossa democracia que tem raízes na manutenção de privilégios de uma aristocracia rural-colonial. Serve mais para nos desorganizar. Movimentemos nossas formas de poder com a inventividade rebelde da classe trabalhadora, ou nos restará uma metamorfose de adaptação cada vez mais acelerada para uma espécie de esquerda empreendedora que mede suas conquistas a partir de vitórias nas urnas, de alianças eleitorais, ou de bolsas recebidas por editais organizados por aparelhos privados como RenovaBR et caterva. A esquerda não pode temer a derrota, tampouco deve se apegar a ela, mas aprender, sobretudo, e saber construir os campos de disputa em que pode voltar a vencer. Estamos muito longe disso, e seguimos nos afastando.
Parte 2 – A hipótese neoliberal
Alain Badiou apresenta uma importante interpretação a respeito das tentativas, derrotas e fracassos da esquerda ao longo da história pela superação do capitalismo. Longe de botar panos quentes nos episódios revolucionários, com suas variadas durações, conquistas e derrotas, o filósofo reivindica estas experiências como ocorrências históricas fundamentais de realização de uma hipótese do comunismo. Importa mais a continuidade do processo de transformação revolucionária e menos a busca a priori de uma fórmula mágica e estanque de mudança definitiva.
Sua formulação coloca em perspectiva um passado comum das lutas revolucionárias, conectando a classe trabalhadora a partir de sua memória de luta, ponto essencial para reverter uma propaganda derrotista que faz com que a esquerda crie ojeriza de termos (e sujeitos e ações) como classe trabalhadora, revolução, socialismo, luta. Enxergar uma força transformadora e pulsante na criação, ousadia, atrevimento e coragem de trabalhadoras e trabalhadores organizados em diversos lugares e momentos é urgente para que a ruptura com o modo de produção capitalista se torne um horizonte não apenas necessário, mas desejado e possível.
A partir desta experiência de Badiou, mas com algumas subversões, proponho dois movimentos que podem ser pedagógicos para certos debates dentro da esquerda: em primeiro lugar, manter a perspectiva histórica das lutas contemporâneas, mas no intuito de apontar a limitação de algumas experiências recentes não revolucionárias, que têm sido retiradas do debate geral, sem balanço, e apontadas como dignas de repetição; em segundo lugar, apresentar a hipótese neoliberal como um alerta, apresentando uma possibilidade concreta da continuidade do que já está ocorrendo caso as lutas permaneçam no mesmo ritmo.
Para o primeiro movimento, há um exemplo inescapável, mas que é subestimado nos debates atuais, que é a “campanha” pelo Fora Temer! Talvez por desconforto, poucas pessoas assumem que se tratou de uma plena derrota. Temer, afinal de contas, não foi retirado do poder, mas passou a faixa segundo os ritos da democracia brasileira ao seu sucessor eleito. Em algum momento, talvez desde o início, o grito por Fora Temer!, que se tornou quase uma obrigatoriedade cotidiana[3], ganhou um significado de Eleições 2018! A fórmula para o fracasso das lutas estava pavimentada.
Em agosto de 2018 (antes do STF rejeitar a candidatura de Lula), em um encontro organizado pelo Labcrítica – um laboratório de pesquisa e extensão do curso de Dança da UFRJ[4] – propus uma reflexão que, infelizmente, mostrou-se acertada em relação à opção da esquerda hegemônica e que retomo aqui de forma resumida. A estratégia adotada naquele momento conturbado foi de retomada da ordem. Isto acabou produzindo uma posição política de repetição, ou reconstrução, de uma coreografia que restabelecesse a dança que havia sido interrompida pelo golpe. Ou seja, mesmo após a ruptura da ordem burguesa ocorrida pelo ilegítimo impeachment, a movimentação das forças da esquerda com maior possibilidade de mobilização do país não optou por produzir outras formas de ruptura, ou mesmo por construir uma suspensão de movimentos através de uma possível paralisação a fim de estruturar um reposicionamento mais forte. Pelo contrário, pretendeu restaurar o caminho anterior e recolocar a ordem na agenda do dia, e assim restabelecer o lamentável mal-entendido. Essa estratégia esvaziou, dentre outras coisas, o sentido da reivindicação Fora Temer!, posto que o processo eleitoral exige, como movimento consensual, a entrega de faixa presidencial, o que significava a permanência do impopular condutor de contrarreformas até o final de seu prazo de validade. A direita nunca esteve tão confortável… E se agora impera certo desconforto, não é por interferência da esquerda, mas por desentendimentos internos em relação ao que fazer com Bolsonaro, que já fritou até mesmo Guedes.
Acontece que, desde 2016, havia uma possível movimentação popular que já tinha dado demonstrações de força capazes de alimentar ações na direção de um horizonte de ruptura. De forma breve, duas ações ocorridas após o impeachment interessam ser resgatadas aqui. A luta contra a aprovação da PEC 241 ou 55 – do teto de gastos, a atual EC95 – em 2016 e a greve geral contra a reforma da previdência em 2017. A movimentação contra a PEC reuniu, sobretudo, entidades do campo da educação pública (Andes, Fasubra, Sinasefe e Une) em atos que começaram a unificar forças que estavam divididas no período anterior por desacordo sobre a avaliação dos governos de conciliação de classe. A unidade entre o Andes e a Une naquele momento, por exemplo, demonstrou a capacidade de superação (e não eliminação) de diferenças a fim de criar um forte ato com uma pauta comum. No dia da votação em primeiro turno da PEC no Senado, havia dezenas de milhares de pessoas, como há muito tempo não ocorria em Brasília[5], que foram alvo de intensa repressão para garantir a aprovação do texto.
Meses depois, a luta contra a “reforma da previdência” levou à construção da bem-sucedida greve geral de 28 de abril de 2017, em que aproximadamente 40 milhões de trabalhadoras e trabalhadores interromperam suas atividades e foram às ruas em todo país, enfrentando, mais uma vez, duríssima repressão. A greve geral retirou de pauta aquela reforma, que só veio a ser aprovada em 2019 após a tática eleitoral ter sido derrotada em 2018, e abriu caminho para novas ações unificadas de luta. Mas, então, o Fora Temer! já havia se convertido em um imenso mal-entendido… A segunda greve geral foi substituída, devido à posição das maiores centrais sindicais, por um ato em Brasília – #OcupeBrasília – marcado para o dia 24 de maio com a improvável perspectiva de levar 100 mil pessoas para a capital.
Para além das expectativas mais otimistas, mais de 150 mil pessoas tomaram a esplanada dos ministérios, e mesmo após um histórico recuo de centrais como a CUT e CTB ao final do ato[6], as milhares de pessoas que acompanharam o carro de som principal até o fim do protesto manifestaram disposição para uma nova greve geral de 48h expressa em palavras de ordem que surgiram por todos os lados. A repressão não foi capaz de tirar o ânimo daquela demonstração de força. Mas o jogo precisava continuar com as regras institucionais de sempre e não houve mais greve. Foi então aprovada a reforma trabalhista no mês seguinte, as eleições foram organizadas e, em agosto, Lula foi retirado do pleito, para, com todo respeito às regras, Temer entregar a faixa para Bolsonaro. Obviamente que a história não segue regras tão definidas e a realização da greve, caso desse certo, não necessariamente levaria à interrupção do processo intensificador do neoliberalismo em marcha há tantos anos no país, mas a possibilidade de acumular forças foi jogada pelo ralo.
Este caminho parece não incomodar parte da esquerda. A acachapante derrota do “Fora Temer” parece não servir de aprendizagem e o debate sobre o “Fora Bolsonaro” assumiu, desde o início, o mesmo teor eleitoral. Era como se bastasse aguentar quatro aninhos de barbárie ampliada no lombo do povo… e torcer para não se transformar em oito! No limite, há uma esperança institucional na CPI midiática (desnecessário expor o destino das importantes CPIs vivenciadas ao longo da democracia lamentável); no STF oportunista; uma crença cínica na eleição justa porque feita em urnas digitais perfeitas; e sobretudo, a esperança metafísica, uma espécie de fé cega, na mudança do rumo do eleitorado mesmo com campanhas resultantes das últimas reformas eleitorais; resumindo, uma expectativa de tomada de consciência autorreferenciada na história recente de sofrimento exacerbado. Como se o sofrimento anterior não tivesse, já, ensinado as pessoas; como se a escolha das urnas representasse, de fato, a “consciência popular”; como se a democracia burguesa fosse pensada para resistir à burguesia em uma espécie de mecanismo de autocontrole do capitalismo. Mesmo que as campanhas eleitorais com um ano de antecedência representem o que estará ocorrendo em 2022 (o que não é usual), as pessoas esperam ter um congresso e um senado, pelo menos, moderado? A milícia vai parar de agir depois de quatro anos no poder federal?
É lamentável que a esquerda hegemônica tenha abandonado as formas não eleitorais de mobilização, transferindo popularidades para as redes sociais numa espécie de realização continuada de eleições diárias a partir da contagem dos cliques e repostagens… Se a eleição havia se tornado um consumo de candidaturas, agora chegou o momento em que a mercadoria é a própria eleição. Existe um verdadeiro consumo de disputas permanentes entre candidatas e candidatos de plantão na sua forma digital das curtidas.
Diante de tamanha derrota política, diante da metamorfose do Partido dos Trabalhadores em um consumidor de eleições, algumas perguntas óbvias precisam ser feitas: por onde andou a maior central sindical do país, organizada por aquele partido, nos últimos 3 anos? Diante de tanta injustiça, diante do massacre genocida da Covid-cloroquina-prevent senior, das altas taxas de desemprego, da inflação galopante, da fome explícita, do empobrecimento generalizado… o que fazem as demais centrais sindicais e suas direções? Não podemos apostar todas as fichas no movimento sindical tradicional, pelo óbvio, e sabemos que realizar greves e paralisações em períodos de refluxo econômico é algo muito mais complexo do que em períodos de ascenso. Entretanto, mais difícil do que realizar uma greve geral no atual cenário, é obter um resultado eleitoral transformador dentro das regras do próprio sistema sem que nada tenha sido feito a fim de acumular forças para organizar a revolta e o desamparo, hoje, atomizados. Ao contrário do que se crê, vislumbrar as eleições como estratégia principal não limita apenas o horizonte radical de luta pelo viés socialista, mas limita também a própria estratégia eleitoral ao apostar que o resultado das urnas é decidido apenas dentro das regras institucionais do pleito.
Portanto, neste final de 2021, quando muitas forças já estão se pautando pelo calendário eleitoral (como se a fome pudesse ser parcelada até outubro de 2022), revisitar este passado recente de derrotas é uma tarefa que deveria ser recebida de maneira amadurecida, rompendo com a cordialidade em nome da solidariedade da crítica, a fim de traçar ações alternativas ao desastre das urnas que é, sem dúvida, uma possibilidade permanente para qualquer partido de esquerda dentro do capitalismo: independentemente da candidatura e do desejo.
O que nos leva ao segundo momento de reflexão a partir do exercício de Badiou: qual o cenário está em jogo no caso de mais um fracasso eleitoral ou, inclusive, de uma vitória construída nas bases da chantagem mercantil de uma neoconciliação? Bem-vindos à hipótese neoliberal!
As reflexões em torno da hipótese comunista, como já descrito, apontam para um caminho politicamente pedagógico na direção de reacender lutas possíveis, impossíveis ou necessárias a partir do entendimento de aprendizagens de lutas anteriores, seus fracassos, suas conquistas, seus desdobramentos, suas origens, etc. Trata-se de um poderoso recurso metodológico que consegue articular a história da luta de classes como um processo contraditório de continuidades, acúmulos e rupturas a fim de apontar um futuro mais complexo e, ao mesmo tempo, revolucionário.
Entretanto, podemos realizar um breve exercício de contra exemplo. Proponho que experimentemos as transformações recentes aceleradas pela Covid-19 como uma experiência radical do neoliberalismo. A pandemia e sua forma de combate criaram diversas contradições e exacerbaram desigualdades que carregavam uma espécie de verniz temporário: quando a pandemia acabar isso passa! É fundamental, no entanto, compreender como aparente o caráter efêmero da pandemia a fim de enxergar sua essência de continuidade, isto é, uma experiência radical do capitalismo contemporâneo que pode se perpetuar e aprofundar: experimentamos a hipótese neoliberal por excelência e precisamos retirar dela aprendizagens fundamentais para a nossa ação política de ruptura!
Uma enorme derrota ideológica foi consolidada a partir da forma de combate ao coronavírus, algo profundamente funcional à naturalização do neoliberalismo. Reivindicar o isolamento social para a defesa da vida foi uma das maiores contradições que experimentamos. A estratégia de combate ao contágio é eficaz, pelo óbvio, o que precisamos compreender é a maneira como ela foi apropriada socialmente pela ideologia dominante. Fomos forçados a lutar pela distância, a defender o convívio total no ambiente familiar como saída para a sobrevivência. É difícil encontrar alguma maneira menos socialista de tática do que esta: o horizonte ideal era cada família isolada em sua propriedade! Obviamente que sabemos que este horizonte era acessado por poucos, não vamos entrar aqui no debate sobre a eficácia do combate à pandemia (debate mais do que necessário e que tem sido enfrentado). Importa, aqui, perceber que o senso comum criado pelo isolamento social foi aproveitado de todas as formas pelo neoliberalismo em aceleração.
O resultado foi uma sociedade neoliberal próxima da perfeição, quase um tipo ideal: diminuição à propensão ao encontro; aumento da sensação de insegurança em relação ao outro; disseminação de uma paisagem do enclausuramento como experiência de proteção; individualização generalizada do processo de trabalho; individualização generalizada do processo de educação; individualização generalizada dos processos de saúde; invasão do gerencialismo em todos os âmbitos da vida doméstica (temos que combinar conosco o horário de ir ao banheiro); aumento do uso das redes sociais como simulacro de participação política; enfraquecimento das forças coletivas de organização política; diminuição dos atos de rua como formas de protesto; plenitude da ideologia do empreendedorismo, afetando mais a população pobre e preta; aumento da financeirização da vida através de aplicativos que cada vez mais “resolvem” tudo da existência.
O resultado concreto de todo esse apanágio é um desastre social em ritmo de disparada: aumento da taxa de depressão entre a juventude; aumento da violência doméstica sobretudo contra as mulheres; tendência de valorização de cidades espraiadas ao invés de concentradas, o que reforça a especulação mais tradicional; home office consolidado como forma aceitável e desejável de trabalho; eadeização do ensino em todos os seus segmentos – inclusive o Básico; disseminação de formas online de atendimento à saúde, ampliando a desumanização da medicina e do cuidado em geral; dissolução da barreira temporal da vida doméstica, disponibilizando farta força de trabalho 24 horas por 7 dias da semana; diminuição das possibilidades de acompanhamento coletivo da agenda política devido ao uso cada vez mais disseminado de sessões virtuais para aprovação de mudanças gerais (seja no congresso ou nas universidades); nova forma de criminalização de atos de rua, que além de “vandalismo” agora produzem aumento de contágio; pejotização indiscriminada da juventude, que pedala rápido para morrer de fome lentamente; e a lista não termina.
A pandemia e seu combate não criaram novidades, apenas “empoderaram’” processos brutais pré-existentes de maneira avassaladora. Desde uma aceleração jurídica com alterações normativas constantes, boiadas em todas as instâncias, até uma aceleração da implementação de uma agenda concertada de políticas de privatização, desregulamentação e desinvestimento que, em seu conjunto, podem ser sintetizadas em fome extrema, desemprego estrutural e primarização da economia; consolidação do desastre ambiental (inclusive reforço da tendência à desertificação). A hipótese neoliberal pode ser lida através da somatória de eventos simultâneos impensáveis; expressões da miséria como o consumo de ossos, a desuberização crescente devido ao aumento da gasolina, a experiência nazista da Prevent Senior de testes de medicamentos em humanos enquanto nuvens de poeira atingem várias cidades brasileiras – nuvens que lançam areia do centro oeste sobre os automóveis (parados) de São Paulo.
Por fim, mas não menos importante, ao impor o isolamento social como defesa da vida, a hipótese neoliberal abriu portas para uma forma nova de oposição. Longe de criar uma crítica na direção de uma possível coletividade como defesa da vida, o que se viu foi exatamente seu oposto: a reivindicação da coletividade para a defesa da morte! A aceleração e intensificação de movimentos negacionistas antivacina e antivida de forma geral, são um dos retratos mais evidentes das relações entre o neoliberalismo e o neofascismo. A esquerda deve saber responder a estes desafios, isto é, não se trata de efeitos da pandemia que passarão com a vacinação em massa, muito pelo contrário, são efeitos colaterais sociais da Covid que o neoliberalismo não permitirá que sejam curados. Seja com Guedes ou com o próximo Chicago boy de conveniência, eleito por qualquer que seja a coalização de chapa para tirar Bolsonaro (ou para sua permanência!).
Mas a hipótese neoliberal também apresenta uma resistência muito importante. Contra todas as forças institucionais, o SUS está conseguindo fazer uma das mais eficientes campanhas vacinais do mundo contra a Covid-19. A pandemia não foi vencida ainda, mas a força de um consolidado (ainda que precarizado) Sistema Único de Saúde, público e universal demonstra por onde a saída está dada. Obviamente que a via eleitoral não vai garantir o SUS, como nunca fez. Se temos o Sistema funcionando é pela força organizada de seus trabalhadores e trabalhadoras, pelas lutas sociais contra os seguidos governos e seus cortes e privatizações: das OS à Ebserh, passando pela atual transferência de recursos para o setor privado de saúde a ponto de produzir novos bilionários. Como vamos manter o SUS público passada a pandemia? As urnas não trazem esta resposta, inclusive, porque o desmonte maior pode ocorrer antes de outubro de 2022. Mais uma vez, sobre as eleições temos acordo, vamos derrotar Bolsonaro votando em Lula ou quem lá estiver para isso, mas, e sobre a realidade precária que vivemos e suas permanências, qual o nosso acordo?
Outubro de 2021 terminou, isso fez que muita gente começasse a fazer contagem regressiva de um ano para as eleições de 2022. Como se os próximos 12 meses não fossem um tempo a ser vivido. Isso também é lamentável. Ao invés de lembrar que a renovação do mal-entendido está para acontecer, devíamos nos ocupar de outra memória de outubro, determinante para a classe trabalhadora, a memória revolucionária pede que retomemos a hipótese comunista!
[1] Não vou aqui me deter na enfadonha polêmica a respeito do termo cordialidade. A confusão entre o significado do dicionário e do conceito sociológico já deveria ter sido superada pela própria nota que SBH insere em seu livro. Recomendo que aquelas e aqueles que compram a crítica fácil a Raízes do Brasil leiam o próprio texto no lugar de seus comentadores a fim de tirar suas conclusões (e melhorar as críticas necessárias a Raízes).
[2] “O patrão cordial” é o título de uma belíssima adaptação teatral da Companhia do Latão para “O Senhor Puntila e seu Criado Matti” de Bertolt Brecht.
[3] As palavras de ordem Fora Temer ganharam o país após o processo de impeachment de Dilma em 2016. O mote se torna mais popular, sobretudo, após uma aparição ao vivo do (então) estudante Thiago Rosa Lacerda da UFRJ que, ao ser perguntado sobre reivindicações de um movimento que ocupava a reitoria por habitação estudantil, inicia sua resposta com um inusitado “Bom dia, primeiramente, Fora Temer”, denunciando o apoio aberto da rede Globo de televisão ao processo político de golpe em construção. Essa fala virou um meme e o resto é história. https://www.youtube.com/watch?v=YIxbxlq4erk
[4] Trata-se de participação na segunda edição do evento Transincorporados: https://labcritica.com.br/trans-in-corporados2018/ . Os anais, incluindo o pequeno texto a que me refiro, estão aqui: https://labcritica.com.br/2trans_ebook/
[5] A repressão às mais de 40 mil pessoas presentes foi muito forte e o ato terminou como uma espécie de batalha campal do lado de fora do Congresso. Internamente, Renan Calheiros (então presidente do Senado) impediu que movimentos sociais acompanhassem a votação. Pouca ênfase foi dada aos protestos pela mídia que deu foco total ao trágico acidente de avião sofrido pelo time da Chapecoense na manhã daquele mesmo dia (29/11/16), mas uma foto registrada por Gisele Arthur marcou as contradições ao capturar em primeiro plano um coquetel servido a parlamentares e convidados no congresso enquanto ao fundo, através das janelas de vidro, via-se a forte repressão a todos nós pelos “aparatos de segurança”.
[6] O carro de som principal estava sofrendo forte repressão, inclusive sendo alvo de bombas de gás que atingiram as pessoas que estavam conduzindo o ato. Neste momento, as centrais recuaram, convocando seus filiados a se retirar e abandonar à sorte os que estavam mais à frente. A desobediência às direções foi forte e milhares de pessoas permaneceram, ajudando a reorganizar uma saída conjunta onde se ouvia os gritos por nova greve geral de 48h.
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