O “apagão” do CNPq: ainda precisamos dele?
O chamado “apagão” que afetou parte dos sistemas utilizados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), deixando fora do ar plataformas como a Lattes e a Carlos Chagas, ocupou os noticiários e redes sociais neste mês de julho. Submetido, como vinha sendo, a cortes e restrições orçamentárias sistemáticas[1], era previsível que o órgão atingiria um ponto limite: o que já havia sido fortemente sentido no que tange ao financiamento à pesquisa (projetos, bolsas, etc.) agora também o é na própria estrutura administrativa do CNPq.
Mas nas sombras deixadas por esse apagão muitas coisas se escondem. É crucial que o assunto seja abordado a partir de uma visão ampla e crítica desse contexto, até para evitar que ocorra um desfecho pior, ou seja: que o retorno das referidas plataformas “ao ar” seja visto como solução para os problemas que resultaram na sua suspensão temporária.
Há muito tempo as “luzes” vêm deixando de brilhar no campo científico brasileiro, quase todo ele de responsabilidade – nunca é demais lembrar – das instituições universitárias estatais, aquelas mesmas que são sistematicamente atacadas e desqualificadas, não apenas pelo atual governo, mas também pela grande imprensa escrita e televisiva, pelo empresariado, por governos anteriores que não ousaram alterar as linhas mestras de certas políticas. Vou citar três eixos essenciais desse processo, mutuamente articulados.
O primeiro é a falta de autonomia. E aqui é preciso falar de distintos níveis: do mais geral, na relação entre países e interesses dos capitais que atuam de forma global, determinando diretrizes para o campo; ao mais particular, da perda de autonomia (sobretudo financeira) nas instituições que fazem pesquisa e ao processo de segmentação entre áreas, favorecendo setores cujas pesquisas possuem maior apelo mercantil e capacidade de “atrair” recursos[2]. A lógica concorrencial e “meritocrática”, instituída e fomentada por órgãos como CAPES e CNPq, e replicada de forma até mais “realista” em muitas instituições, vem produzindo efeitos deletérios já bastante estudados e conhecidos.
Um segundo fator de estrangulamento da produção científica e tecnológica é a linha hegemônica que a controla, intensificada na última década: aquela que reserva boa parte do que há de melhor na infraestrutura das instituições universitárias e de pesquisa ao que é “internacional” e voltado para (o mercado da) “inovação”. Linhas essas que se convertem numa espécie de mantra a definir a qualidade das pesquisas, no primeiro caso como expressão do que seria um intercâmbio global positivo e desprovido de interesses divergentes; no segundo, reduzindo o conhecimento científico a um utilitarismo raso e de curto prazo, criando um mundo paralelo nas instituições, verdadeiras linhas de produção de patentes[3], de incentivo a start ups, spin offs, etc.
Um terceiro fator é a mudança na forma de organização e gestão da força de trabalho qualificada necessária para realizar essa produção. As já mencionadas políticas de fomento à competitividade, à meritocracia, à internacionalização e ao inovacionismo, vão ao encontro de outra tendência: a subordinação ao interesse privado. E a principal via de entrada deste nas instituições mantidas pelo Estado tem sido a da flexibilização dos regimes de trabalho. Essa é uma longa história em que se articulam as condições de trabalho e remuneração desses profissionais, as práticas de controle sobre o trabalho e à produção, arrochos salariais, contingenciamentos financeiros, entre outros, tendo como projeto central a destruição de muitas das garantias formais básicas da Constituição de 1988.
Voltando ao “apagão”, não deixa de ser uma triste expressão de tudo o que essa política hegemônica foi capaz de produzir que, hoje, estejamos observando essa confusão entre causas e consequências: a aflição de parcela da comunidade científica para com o sumiço temporário do Lattes se expressa como perda do próprio sentido de sua existência. Ou seja, aquilo que Bianchetti, Valle e Pereira (2015) denominaram de “reificação do Lattes” se mostra incomodamente real, tal é o grau de internalização dos controles sobre a produção científica e o trabalho dos pesquisadores e pesquisadoras nos circuitos acadêmicos. E mais: não é exagerado dizer que o ‘sumiço’ do Lattes é visto em patamar de gravidade igual ou, até mesmo, superior ao do apagamento sistemático das condições básicas de pesquisa (trabalho, financiamento, maior igualdade na distribuição de recursos, autonomia das instituições), muitas das quais já não se questiona mais.[4] Dúvidas de calibre similar pairam sobre os rumos do famigerado sistema de avaliação dos programas de pós-graduação stricto sensu pela CAPES, assim como do sistema Qualis de classificação de periódicos científicos e livros acadêmicos.
O que vemos hoje, portanto, não é apenas um governo negacionista, anticiência, anti-autonomia nacional e anti-universidade. Vemos, também, uma comunidade científica apassivada e atônica diante dos mecanismos legitimados por ela, e cujo descolamento com relação aos seus objetivos declarados se tornaram formas de fomentar o próprio negacionismo. Isto porque essa política hegemônica inverteu as finalidades, colocando os mecanismos de controle da produção científica e tecnológica no centro, mas não o seu conteúdo. Não há espaço para discutir o tema aqui, mas é fundamental que a relação entre essa inversão e a reviravolta negacionista[5] seja analisada e discutida com maior profundidade.
“O CNPq somos nós”!?
Desde o final dos anos 1990 foi se tornando comum, nos meios universitários, a ideia de que seria incoerente criticar agências como CNPq e CAPES pois, afinal de contas, expressavam a vontade e os interesses das suas “bases” e “pares acadêmicos”. A máxima “a CAPES somos nós” se tornou uma espécie de síntese dessa relação e, também, uma forma acrítica de se esquivar dos problemas de tal política. Essa tática foi útil aos projetos dominantes e, à medida que mantinha nas sombras os seus reais fundamentos, uma nova lógica heterônoma foi se materializando como razão de ser da produção científica, não mais sob uma tutela como a dos tempos da Ditadura, mas avalizada pela ‘democracia’ universitária e pelos órgãos de fomento e suas avaliações, propagandeadas como de tipo exportação (BIANCHETTI; VALLE; PEREIRA, 2015).
Um dos preços a pagar foi o de ter uma política que valorizava mais as formas de registro do que a relevância dos conteúdos efetivos da produção científica. Repositórios de dados e “plataformas” como a Lattes e outras (hoje estendidas a quase todas as dimensões do fazer universitário), foram se tornando mais importantes do que o que nelas era registrado. Evidentemente, isso não quer dizer que o conteúdo não estava sendo controlado, mas que este controle passava a ter na forma dominante do registro um de seus momentos fundamentais.[6]
Com isso, pautas estratégicas para qualquer projeto autônomo de produção científica e tecnológica, como as condições de trabalho e infraestrutura, o padrão de financiamento adotado e o caráter público das pesquisas, se fragilizaram nos meios acadêmicos. Cito dois casos emblemáticos que geraram mais divisão do que união entre os setores que, ainda hoje, se reivindicam “progressistas”: a aprovação do “marco” legal da ciência, tecnologia e inovação (Lei nº 13.243/2016), durante o governo Dilma Rousseff, que ampliou as margens para a ação privatista nas instituições de pesquisa, flexibilizando, por exemplo, os regimes de dedicação exclusiva e o uso compartilhado da infraestrutura das instituições com as empresas; e a flexibilização do princípio constitucional da gratuidade do ensino público para parcela das atividades universitárias (na extensão e na pós-graduação lato sensu), ratificado pelo STF em 2017 após ampla mobilização de entidades científicas e acadêmicas em favor das práticas de cobrança.
Por tudo o que foi dito, o atual cenário de aturdimento em relação ao “apagão do CNPq”[7] nos leva a perguntar: o que está sendo “apagado” nesse momento em que parte dos sistemas disponibilizados pelo CNPq estão fora do ar? No que tange à política científica e tecnológica vigente, assim como aquela que afeta o ensino superior, infelizmente nada de significativo está mudando. Sob um olhar mais histórico e do movimento dessas políticas, porém, não é possível deixar de registrar que a aflição geral causada pela ideia de “apagão” seja uma triste expressão de que a política cujos instrumentos estão temporariamente “apagados”, deu muito certo!
Talvez seja o caso de (re)começar a reflexão pelo que é mais simples: se queremos “salvar” o CNPq, antes de tudo, temos que transformá-lo. E esta não é uma tarefa que se pode delegar aos “pares” que lá ocupam cargos e posições importantes, tampouco apostar na efêmera performatividade das hashtags em redes sociais. Trata-se de uma transformação muito mais ampla e que, para início de conversa, envolve a própria condição da universidade e das instituições de pesquisa na sociedade brasileira. Anos e anos de produtivismo acadêmico[8], nome que utilizo aqui para me referir ao conjunto de mudanças que moldaram essa lógica de funcionamento nas últimas décadas, engendraram novas formas de heteronomia e subordinação do fazer acadêmico aos ditames do mercado e do capitalismo global. O sufocamento orçamentário é uma dessas consequências. Não há como combater os problemas que o “apagão” ora revela pontualmente, sem esses enfrentamentos de fundo; o pior de tudo seria intensificar as doses daqueles “remédios” comprovadamente sem eficácia, como os do gerencialismo, empreendedorismo, parceria com empresas privadas, fundos patrimoniais, trabalho precarizado, voluntariado, lógica competitiva, meritocracia, etc.
Referências:
BIANCHETTI, Lucídio; VALLE, Ione Ribeiro; PEREIRA, Gilson Ricardo de Medeiros. O fim dos intelectuais acadêmicos? induções da CAPES e desafios às associações científicas. Campinas, SP: Autores Associados, 2015.
LOUSRHANIA, Larissa. Universidades públicas lideram ranking brasileiro de patentes. Rádio Agência Nacional, 12/07/2021. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/07/29/com-menor-dotacao-em-21-anos-cnpq-nega-relacao-entre-cortes-e-apagao.ghtml>. Acesso em: 29/07/2021.
[1] Segundo matéria do Valor Econômico, a dotação orçamentária do órgão para 2021 é a menor em 21 anos. Em valores atualizados, passou-se de R$ 2,4 bilhões, em 2000, para R$ 1,2 bilhão, em 2021. (VASCONCELOS, 2021). Isso ocorre em um contexto de contingenciamento geral das despesas da União destinadas à área de Ciência e Tecnologia (valores corrigidos pelo IPCA de janeiro de 2020), que caiu de R$ 15,4 bilhões, em 2013, para R$ 6,9 bilhões em 2020. (REIS; MOURA, 2020, p. 38).
[2] Sobre isso, é importante destacar que estamos falando de recursos estatais e privados. A constante promessa de que investidores privados com “visão de futuro” se converteriam nos principais financiadores da produção científica e tecnológica não passa de um mito recorrente e estrategicamente alimentado. Os volumes mais significativos de recursos destinados ao financiamento da pesquisa seguirão sendo oriundos dos cofres estatais, cujos órgãos intermediadores assumem para si essa lógica da gestão com finalidades privadas.
[3] [4] Seria esse um tipo especial de negacionismo, distinto daquelas versões grotescas (terraplanismo e correlatos), mas igualmente negativo face a vinculações elementares como aquelas que balizam as relações entre condições de pesquisa e produção científica de qualidade? Ou, ainda, que há décadas vem negando, as consequências nefastas do produtivismo sobre a pesquisa científica?
[5] A hipótese aqui aludida é a de que a influência que os setores “negacionistas” têm sobre as políticas do Cnpq, evidentemente, pioram o cenário existente, mas o fazem jogando dentro das regras e possibilidades que as políticas institucionais criaram ao longo do tempo. Outro exemplo importante que hoje pesa sobre o setor é o das ingerências que o governo Bolsonaro tem exercido sobre a escolha das/os dirigentes das instituições públicas. Em suma, estamos diante de um quadro que, com ou sem o governo atual, é de escassa autonomia. Nada mais favorável ao oportunismo negacionista.
[6] Um bom exemplo disso que estou chamando de “forma do registro” está em vigor, hoje, no âmbito da maior Fundação de Amparo à Pesquisa do país, a FAPESP, que exige que solicitações de financiamentos a bolsas de mestrado e doutorado, ou de auxílios à pesquisa, sejam feitas exclusivamente por docentes/pesquisadores com comprovada experiência internacional. Ora, o que antes era um critério adicional passou a ser excludente.
[7] Não é demais registrar que, no Brasil, o uso recorrente de termos como “crise” e “apagão”, quase sempre, se referem a causas abstratas, indeterminadas; formas, portanto, de usar uma linguagem favorável ao/s interesse/s de fundo que não se quer debater.
[8] Em texto publicado nesta mesma coluna, em 20/11/2020, pude desenvolver mais esse tema.
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