O Projeto de Lei 534/21, aprovado no início de março pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), recebeu alteração e já foi aprovado na Câmara dos Deputados pelo Projeto de Lei 948/21, do Deputado Hildo Rocha (MDB-MA). A última versão votada na Câmara foi a versão do substituto apresentado pela relatora, a deputada federal Celina Leão (PP-DF). O texto, de autoria da deputada Celina Leão (PP-DF), prevê que essas compras, se feitas junto a laboratórios que já venderam vacinas ao governo federal, poderão ocorrer apenas depois do cumprimento integral do contrato e da entrega dos imunizantes ao Ministério da Saúde. O texto atual foi aprovado por 317 votos a favor e 120 contrários.
O que diferencia um projeto do outro que vigorava atualmente, aprovada há aproximadamente um mês, é que o primeiro projeto, aprovado pelo Senado e Câmara, tinha uma trava legislativa que só permitia a compra pelo privado depois de concluída a imunização do grupo prioritário.
A iniciativa de empresários reuniu nomes como Luciano Hang, dono da Havan, e Carlos Wizard, da holding Sforza, para fazer lobby junto ao governo pela vacinação privada. Reuniões com o ministro Paulo Guedes (Economia) e forte incidência na presidência das duas casas legislativas, fizeram com que tanto a Lei Nº 14.125, de 10 de março de 2021, quanto o Projeto de Lei 948/21 fossem aprovados com folga pela base governista no congresso.
Com amplo apoio do governo, desde o final do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro deu o sinal verde para a compra privada de vacinas. Cerca de 12 grandes empresas teriam se unido para discutir o tema. Segundo o jornal O Globo, as conversas começaram por iniciativa de executivos da Gerdau e da JBS, mas por discordâncias entre os participantes sobre a distribuição das doses, muitas empresas já teriam desistido da proposta. As doses estariam sendo negociadas pelos empresários brasileiros a US$ 23,79 a unidade, segundo o jornal O Estado de São Paulo, valor quase cinco vezes superior aos US$ 5,25 pagos pelo governo federal pelo lote importado da Índia.
Além de de retirar a trava legislativa para que as empresas possam começar a vacinação própria em breve, o novo texto permite a compra de imunizantes autorizados por agências estrangeiras reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mesmo que não tenham registro ou autorização da Anvisa, brecha que aparece no Artigo 2º da lei:
Art. 2º As pessoas jurídicas de direito privado, individualmente ou em consórcio, ficam autorizadas a adquirir vacinas contra a Covid-19 que tenham autorização temporária para uso emergencial, autorização excepcional e temporária para importação e distribuição ou registro sanitário definitivo concedidos pela Anvisa, ou por qualquer autoridade sanitária estrangeira reconhecida e certificada pela Organização Mundial da Saúde, ou contratar estabelecimentos de saúde que tenham autorização para importar e dispensar vacinas […]
Será então concedida permissão ao setor privado para comprar vacinas sem aval da Anvisa que garante a qualidade e segurança do medicamento. Este é o principal interesse do lobby dos empresários com o PL 948/21: a compra de vacinas que ainda não foram autorizadas pela Anvisa, como a Covaxin, uma vez que grandes laboratórios já aprovados no Brasil, como AstraZeneca e Pfizer, já afirmaram que não pretendem vender neste momento para o setor privado.
Com a argumentação filantrópica barata por parte de setores da burguesia, de que o setor privado estaria contribuindo com a vacinação em geral, poderiam ser levantadas algumas indagações simples sobre o teor dessas compras de vacinas não aprovadas: a pergunta mais óbvia seria como doses de vacinas que não possuem aprovação da Anvisa vão ser utilizadas na vacinação gratuita promovida pelo Sistema Único de Saúde (SUS)? E ainda, como a ação da vacinação privada potencializaria o objetivo da vacinação, quando diversas pessoas que estão no grupo de risco ainda poderão pegar a covid-19, usar a UTI [Unidade de Terapia Intensiva], lotar o setor hospitalar?
A utilização da vacina por parte das empresas em seus funcionários foge totalmente do princípio de proteção da totalidade dos trabalhadores e das trabalhadoras. A vacinação agora é disputada pela burguesia buscando atender o mesmo objetivo que já tinha que é conseguir um retorno presencial a qualquer custo de todas as atividades, podendo deixar morrer quem for preciso para isso. Aqueles que insistem em defender a aplicação da dupla fila de vacinação desconsidera “mais doses de vacina”, mas que essas doses precisam ser administradas nos grupos prioritários, diminuindo a circulação do vírus e o impacto nos serviços de saúde.
Quando iniciada a vacinação privada, não é difícil de se imaginar que cada vez mais os governos locais serão pressionados para a retomada completa das atividades econômicas, com as brasileiras e brasileiros sem quaisquer chance de vislumbre da vacina, aguardando por muito tempo na fila. Os trabalhadores mais precarizados e informais, os pequenos comerciantes e trabalhadores de pequenas empresas que sofrerão aguardando doses de um PNI que o governo não tem intenção de fazer funcionar.
E as indústrias farmacêuticas?
Olhando para essa fila paralela que se forma das compras de vacinas, como já mencionado, grande parte das indústrias farmacêuticas tais como Pfizer, AstraZeneca, Butantan e Janssen se posicionaram dizendo que não iriam conceder a venda das vacinas das vacinas para grupos privados e pessoas.
Ainda que essas empresas tentem utilizar um discurso humanitário sobre não realizarem a venda das vacinas para empresas, não devemos enxergar esse setor de modo ingênuo, que é inclusive um dos setores mais lucrativos atualmente. Cabe ressaltar o quanto já são utilizados recursos públicos para sustentar a dinâmica de lucro das empresas, como é o caso das indústrias farmacêuticas, que têm recebido inclusive bilhões de recursos públicos, principalmente dos Estados Unidos e da Europa para o desenvolvimento das vacinas.
Um relatório publicado em fevereiro na revista médica The Lancet mostra que os produtores de vacinas receberam cerca de US$ 10 bilhões (quase R$ 56 bilhões) de fundos públicos ou sem fins lucrativos, tais como a Fundação Gates e Alibaba para financiar suas vacinas. E o número, diz o relatório, talvez seja apenas uma parte do montante, já que muitos dos dados sobre esses projetos não são públicos. A estimativa é de que US$ 3,4 bilhões vêm de investimentos próprios das empresas, e muitas delas dependem fortemente de financiamento externo.
A presença do fundo público para servir aos privados por meio de transferência de capital foi o propulsor da própria produção das vacinas, pois inicialmente, as grandes farmacêuticas não mostraram interesse na corrida por uma vacina até que governos e agências entraram em cena com promessas de financiamento. Hoje, as vacinas respondem pelo quinto maior faturamento de produtos da área farmacêutica.
A discussão sobre a quebra das patentes e a propriedade intelectual
Durante meses o Brasil foi o único país em desenvolvimento a criticar a proposta dos emergentes de suspender as patentes de vacinas. A quebra da propriedade intelectual permitiria laboratórios de todo o mundo fabricarem imunizantes, a partir do compartilhamento de tecnologias, por um preço mais baixo. A socialização e debate aberto na formulação dos medicamentos poderiam estimular o debate público que elevasse o desenvolvimento científico, se afastando da romantização que existe hoje sobre a vacina. Cabe lembrar também, como discutido no texto do colunista Lalo Minto, que não podemos perder de vida o pano de fundo por trás desse cenário sanitário atual de dependência, de subordinação econômica ao imperialismo.
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Vemos hoje um resultado de quase trinta anos de neoliberalismo em relação aos medicamentos e uma crescente dependência brasileira de importações e da tecnologia estrangeira, além de enorme vulnerabilidade sanitária, que vem prejudicando a população, o setor público que tem de comprar medicamentos para os usuários do SUS e o risco de o país se ver praticamente sem medicamentos caso haja um agravamento da crise econômica e política internacional.
Podemos observar a fragilidade dos mecanismos atuais em meio a uma pandemia que já sobrecarrega as estruturas de vigilância e gestão do SUS. O projeto empresarial e do governo não deixa margem para dúvidas de que sua a defesa, urgência e comprometimento é com seus lucros e privilégios. Não podemos perder de vista o que aponta Sara Granemann, Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, em seu texto para o jornal Esquerda Online: a prioridade da vacinação – em situação de genocídio como a que está em curso no Brasil – deve ser formulada por autoridades sanitárias e não por capitais médios ou grandes interessados apenas em seus lucros e na continuidade da exploração de seus trabalhadores.
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