É professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina e do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFSC). Pesquisadora do Grupo de Investigação em Política Educacional (GIPE-Marx), sediado na UFSC. Em seus estudos de política educacional privilegia o tema da formação docente e a defesa inconteste da escola pública e seu papel crucial na formação da classe trabalhadora. Também é bordadeira.
Essencial é a vida!
12 de abril, 2021 Atualizado: 18:33
Arte: “Essencial é a vida”, por Olinda Evangelista, bordado para a luta dos professores em defesa da vida.
Desde 24 de março os trabalhadores da área da Educação de Florianópolis estão em greve. O motivo está claro na palavra de ordem ESSENCIAL É A VIDA! Parece óbvio – há algo mais importante do que assegurar a vida? –, mas o espírito do tempo insiste em negá-la e, contrariamente, investe contra a vida da grande maioria de nós. A crise sanitária marcha ao lado de milícias, polícias, apoiadores de todo naipe do genocídio organizado para ceifar vidas e impedir manifestações políticas. Nosso inimigo é cruel e os números trágicos, que aumentam à galope, não podem tocá-lo. A capa dos interesses do capital e do poder pesa sobre nós.
É escusado desfilar o circo dos horrores que vivemos; eles o conhecem bem, dado que o criaram, o mantêm, o alimentam, pois, “na lei, em suas bordas, há o gozo dos calhordas”, como disse Wael de Oliveira ano passado. Todas as manhãs acordam conosco a tragédia, a dor, o sofrimento, o abandono, a doença, a morte – à frente do nascer do sol, incólume por enquanto, desponta o escárnio, o desdém, a zombaria e a infinita (aparentemente) capacidade de produzir o mal sob todas as formas.
Lutamos contra a volta às aulas no Brasil. E a Rede Municipal de Ensino de Florianópolis e seu Sindicato, o SINTRASEM, estão nesta luta também! E não venham nos chamar de irresponsáveis por estarmos impedindo que nossos alunos “acedam ao conhecimento”; que “se adiantem na luta por um lugar no mercado da exploração do trabalho”. Não precisam nos acusar de “impedi-los de terem oportunidades” de sucesso futuro; de que os professores se recusam a “assegurar o direito de aprendizagem”; de que não estamos interessados em ajudar os “vulneráveis”; de que não vemos que a frequência à escola é a “única” forma de “supressão das desigualdades”. Nesse discurso rasteiro, senso comum, carregado de chavões burgueses para o domínio dos subalternos, não caímos.
Nossa inteligência e nosso coração estão alarmados! Santa Catarina exibe hoje, nove de abril, o ínfimo percentual de 2,64% de sua população vacinada com as duas doses necessárias; com uma dose, estamos em 10,36%, segundo dados da Covid-19 no Brasil (2021). Em Florianópolis, chegamos a quase 71.000 casos e à perda de mais de 850 vidas (BRASIL, 2021), entre as quais crianças. A situação aterradora em que estamos é olimpicamente ignorada pela prefeitura. Sabemos que o sistema de saúde está em colapso e que os seus trabalhadores vivem momentos de profunda tensão, tendo que decidir sobre quem vive ou morre, que a pandemia está fora de controle, que o coronavírus tem sofrido mutações aumentando os riscos de contágio e morte.
Entretanto, o Secretário Municipal de Educação – como denunciado pelo SINTRASEM (2021) –, alheio à realidade objetiva, propôs um plano estratosférico como soe acontecer nas administrações atuais em geral. O que diz o Secretário? “Temos um planejamento da reabertura: com estratégias baseadas em evidências, para que as unidades possam operar com segurança. Essas estratégias foram previamente comunicadas aos professores, estudantes, pais e membros da comunidade”. Ok, vejamos qual é o plano: 1) “as instalações estão adaptadas com o objetivo de integrar protocolos de higiene e medidas determinadas pelas autoridades sanitárias”; 2) “a Secretaria orientou cada gestor escolar para tomarem medidas para minimizar a disseminação do vírus”; 3) “orientamos […] informar as famílias e envolvê-las na implementação das medidas de prevenção, de modo a fornecer apoio contínuo aos estudantes”; 4) “nosso plano só funcionará se houver cooperação de todas as partes. Contamos com a atenção de vocês!”. Após esse planejamento fantástico, o Secretário afirma haver “confiança da comunidade no governo” (PEREIRA, 2021a). Repetimos a brincadeira que circulou por aí: “é verdade esse bilete”. Saliente-se: um planejamento que não considerou “os mais de 50 conselhos escolares que já se manifestaram contra o retorno das atividades presenciais na atual fase da pandemia” (SINTRASEM, 2021).
A resposta do Sindicato ao Secretário de Educação merece ser lida; não é necessário repetir os seus argumentos em defesa da categoria do magistério e famílias. Contudo, muito acertadamente, o SINTRASEM capta a esparrela nas palavras oficiais: “quando tudo der errado, a culpa é do gestor da unidade escolar, que não seguiu as orientações, e da comunidade escolar, que não colaborou com o plano de retorno proposto pelo governo”.
O interessante é ver que, em 11 de março, o Secretário publicou texto usando um léxico em tudo discordante de seu “plano” de salvação da educação básica. Nele, defende o “caráter revolucionário” da educação, seu papel crucial na “transformação social”, por meio da qual se chegaria à “educação de qualidade”, sua sincera preocupação. Lança mão da metáfora do jardineiro, de Rubens Alves, para afirmar que os professores são os jardineiros e sem eles “jardins do saber” não medrariam. Ecoando os bordões do Movimento Todos pela Educação, defende as “evidências científicas” no trato da coisa pública (PEREIRA, 2021b). Ora, nossas “evidências científicas” não são as mesmas, com certeza! As nossas atestam que milhares de vidas serão ceifadas por esse mesmo governo – de Gean e de Bolsonaro – se continuar nessa toada.
Iasi (2021), num texto sobre uma hipotética rebelião de fantasmas da Comuna de Paris, em 1871, sugere que, conquanto os corpos jazam mutilados, decompostos, malcheirosos, seus espectros realizam o que não puderam fazer em vida: “a multidão de fantasmas foi tomando as ruas de Paris entre os prédios incendiados, foram para os bairros pobres abraçar viúvas e filhos, até as cadeias confortar os prisioneiros, seguiram, tempos depois, com os desterrados e condenados aos trabalhos forçados. Alguns seguiam seus algozes, esfriavam sua sopa, abriam as janelas para que entrasse o vento e a chuva fria, ou apenas os olhavam nos olhos congelando seus corações de pedra”. Talvez não saibamos o que andam fazendo os fantasmas dos quase 400 mil mortos no Brasil; mas, se pudéssemos, pediríamos que nos ajudem nessa tarefa hercúlea, para a qual não podemos perder nenhum guerreiro, especialmente aqueles que podem compor nossas trincheiras de luta em defesa da escola pública e de todos os compromissos sociais e políticos que vêm com essa insígnia.
Nos finais dos anos de 1970, em Curitiba, nosso grupo de militantes estudantis tinha profundo apreço pela poesia de João Cabral de Melo Neto (2021), Tecendo a Manhã. De certa forma, nos víamos retratados nela; estávamos num período muito duro da ditadura empresarial-militar, sob o tacão de Ernesto Geisel. A ideia de que estávamos mutuamente acompanhados, de que éramos um galo entre tantos, que juntos cruzávamos os fios de sol e juntos erguíamos uma nova manhã, nos fortalecia imensamente. Se nesses dias obscuros e trágicos as manhãs se levantam tristes, não é motivo para não lutarmos por aquelas vindouras em que todas as vidas importarão. Por isso, todo apoio aos profissionais da rede municipal de ensino e ao SINTRASEM.