Nas últimas semanas, a notícia de que 207 trabalhadores foram resgatados em situação de trabalho análogo a escravidão na cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul (RS) veio à tona nas mídias.
Em sua maioria vindos do estado da Bahia (BA), os trabalhadores receberam promessas de salários de 3 mil reais por mês, com moradia incluída, durante os 45 dias de maior demanda na colheita de uvas nas principais vinícolas do RS. Entretanto, o que se apresentou como oportunidade de conseguir um pouco mais de conforto às famílias se tornou um pesadelo para os trabalhadores.
Já ao chegarem ao estado, o grupo foi surpreendido com a informação de que deveriam custear a própria moradia, já iniciando com uma dívida com o empregador — Pedro Augusto Oliveira de Santana, administrador da empresa de terceirização Fênix Serviços.
Os vales de moradia, segundo relatos de um dos trabalhadores resgatados, custavam de 100 a 150 reais, com juros de 50%. Além disso, os trabalhadores só poderiam comprar comida em um mercado permitido pela empresa, onde os preços das mercadorias eram superfaturados. Com isso, tentava-se criar a ideia de que os trabalhadores estariam em dívida com a empresa.
Os relatos dos trabalhadores resgatados ainda incluem jornadas de trabalho de 15 horas diárias, entrega de comida estragada para as refeições e punições físicas — que vão desde choques para acordar os trabalhadores até espancamentos e ameaças de morte. Durante todo o regime de trabalho, capangas armados acompanhavam os trabalhadores e eram responsáveis pelas agressões.
Os trabalhadores só foram resgatados quando um grupo decidiu fugir do alojamento, saltando do segundo andar do prédio até uma laje, depois saltando de em torno de cinco metros até o chão. Com um celular, escondido por um dos trabalhadores, conseguiram contatar as famílias, chamar um carro de aplicativo e chegar à rodoviária da cidade, onde posteriormente embarcaram para Caxias do Sul e puderam denunciar o caso à Polícia Rodoviária Federal, no dia 22 de fevereiro.
A Fênix era a terceirizada contratada por três das principais vinícolas do RS: a Aurora, a Garibaldi e a Salton. Após a veiculação da notícia e da vinculação da Fênix com as empresas, todas as três alegaram que não tinham conhecimento algum de toda a violência que sofreram os trabalhadores que terceirizaram, tentando se eximir da culpa.
Também em defesa das empresas — e com uma notável falta de pudor — o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG) buscou associar programas assistencialistas governamentais com a falta de mão de obra na cidade. Segundo a associação empresarial, “[…] Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.
A repercussão do caso levou ainda a uma sessão da Câmara dos Vereadores do município, onde o vereador Sandro Fantinel (na ocasião filiado ao Patriota) culpou os próprios trabalhadores, defendendo que os trabalhadores não realizavam a higiene do espaço de moradia e que responsabilizar as vinícolas que contrataram a Fênix seria uma atitude “desmedida” e “injusta”. Na plenária, Sandro sentiu-se à vontade para dizer que os empresários das vinícolas não deveriam mais contratar trabalhadores da Bahia pois “a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor” — dentre outras falas de cunho racista, que puderam ser proferidas sem qualquer interrupção.
O escândalo não pode ser tratado como um caso isolado, mas sim uma exposição da tendência do capital em desumanizar os trabalhadores em prol dos lucros. As três vinícolas envolvidas comemoraram, no início deste ano, recordes de faturamento referentes ao ano de 2022. A Aurora e a Salton, inclusive, mantêm perspectivas de alcançarem o primeiro bilhão em faturamento em 2025 e 2030, respectivamente.
Já o empresário Pedro Augusto Oliveira de Santana chegou a ser preso, mas pagou fiança e está em liberdade. Pedro também administrou outra empresa investigada por trabalho escravo em 2015, no estado de Santa Catarina.
Nas redes sociais, a proposta de um boicote às três vinícolas envolvidas ganha corpo, indicando alternativas para consumo — como a Monte Vêneto, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Outras ações mais duras contra todos os envolvidos vêm sendo levantadas, como a expropriação das terras para a reforma agrária. Para além disso, a compreensão de que este episódio diz respeito à forma de acumulação do capital em nosso país abre caminhos para que se possa discutir quais são as condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora brasileira atualmente.