Opinião
Reitoria da USP propõe estatuto de condutas com viés punitivista
A proposta é similar ao estatuto vigente, oriundo dos tempos ditatoriais
A reitoria da Universidade de São Paulo (USP) propôs um novo Estatuto de Conformidade de Condutas da universidade. O Estatuto vigente foi instaurado em 1972 — durante o período mais violento da ditadura militar-empresarial. A proposta, no entanto, mantém o sentido punitivista e restringe direitos políticos fundamentais, como o direito de greve e de manifestação pública.
A gestão busca tornar legal mecanismos de repressão e punição aos trabalhadores e estudantes da universidade, ainda que coberto por um aspecto “democrático”.
Segundo o artigo 1º, o Estatuto de Conformidade de Condutas visa normalizar “os princípios, infrações, sanções e processos, bem como os preceitos éticos, a serem observados pelos membros da comunidade universitária”.
A proposta da atual gestão de Vahan Agopyan (2018-2022) foi enviada para o Conselho Universitário (Co) no dia 30 de novembro de 2020. À toque de caixa, a reitoria exigia um prazo curto para que as Unidades enviassem sugestões ao texto. O prazo para submeter propostas de alterações era 15 de janeiro de 2021.
Devido à pressões, a reitoria estendeu o prazo para receber sugestões de alteração até dia 10 de maio. O regimento datado de 1972 trata da organização geral da universidade e suas estruturas de poder.
O Gabinete do Reitor solicitou sugestões pontuais ao projeto. A Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) aprovou por unanimidade na última quinta-feira (29) a recusa completa do projeto.
“Não se trata, pois, de emendá-lo pontualmente. É preciso um novo documento que se projete para o futuro e contemple a atualidade de práticas ágeis, cooperativas e consensuais de administração de conflitos”, afirmam em nota.
A decisão foi tomada com base no parecer de uma comissão montada para estudar a proposta da reitoria. Desta forma, a FFLCH se posiciona oficialmente contrária a proposta.
A faculdade divulgou o documento e o abriu para adesão e apoio. O documento “Posicionamentos frente ao projeto de Estatuto de Conformidade de Condutas proposto pela Reitoria da USP” pode ser acessado clicando aqui.
Para a FFLCH, “além de ele ser extremamente centralizador e restringir o poder de investigação, julgamento, transações e punições a poucas instâncias administrativas superiores da universidade”.
A proposta da reitoria engloba, além de servidores técnico-administrativos e docentes, os aposentados entre os possíveis alvos de sanção ou até mesmo cassação de aposentadoria (artigo 2º).
Um dos ataques da reitoria diz respeito ao direito de greve. As greve são direitos históricos da classe trabalhadora e a história do uso deste instrumento de combate é marcado pela restrição do Estado. No Brasil, não é diferente. O Estado busca legalizar e, assim, restringir esses direitos, através das leis trabalhistas. Se não bastasse, a reitoria da USP quer ter controles próprios sobre esse instrumento de luta.
Segundo o inciso 9 do artigo 11º, “constituem infrações gerais de potencial ofensivo elevado praticadas por servidores docentes ou técnico-administrativos: IX- insistir em greves após serem elas consideradas abusivas ou a elas aderir, em prejuízo da continuidade da prestação do serviço”. Quem dirá se uma greve é abusiva? O que é uma greve abusiva? Até que ponto lutar por direitos e reivindicações será considerado legal?
O projeto busca suavizar sua política punitivista e repressiva com aspectos democráticos. O documento rege contra manifestações discriminatórias de qualquer espécie, seja dirigida a um indivíduo específico ou não. Ao mesmo tempo, porém, abre brecha para punir manifestações que sejam consideradas “agressão moral”.
Ainda segundo o artigo 11º, será passível de punição “agredir moralmente servidor, docente ou não, aluno ou outro membro da comunidade da Universidade, presencialmente, pela mídia ou por redes sociais, mesmo que no âmbito de atividades assembleares ou em sessões dos órgãos colegiados da Universidade”.
É certo que mesmo sem esse ou aquele estatuto não se deve tolerar agressões morais ou caluniosas. Mas o artigo abre possibilidade de considerar infração manifestações críticas contra diretores ou até mesmo contra os membros da reitoria.
O cerceamento também ocorre no que tange a possibilidade de crítica e expressão por parte da comunidade universitária. Segundo o artigo 3º, é aplicável medidas quando os membros da comunidade universitária “desenvolvem qualquer atividade (…) que pode prejudicar a segurança, os interesses ou a reputação da Universidade”. Então haveria críticas à universidade que não poderiam ser feitas? O que seria uma violação aos “interesses e reputação da Universidade”?
O aspecto punitivista do projeto está presente em todo o corpo da proposta. Entre um deles, no artigo 16º, afirma que constituirá infração moderada cometida pelo docente se ele “deixar de cumprir, reiteradamente e após ter sido formalmente advertido, as metas de produção”.
Segundo o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), “o documento que a reitoria apresenta foi elaborado basicamente pelo atual diretor da Faculdade de Direito, Professor Floriano, sem nenhuma participação democrática (…) O documento final apresentado, portanto, é uma espécie de tentativa de dar uma cobertura democrática para um entulho autoritário”.
“No seu conteúdo, o documento mantém uma lógica punitiva, inclusive com várias previsões para punir movimentações políticas e sindicais. Para se ter uma ideia, o documento prevê até mesmo punições para coisas ditas em espaços assembleares, ou seja, atenta contra a liberdade de organização dos trabalhadores e estudantes!”, complementa o sindicato em nota.
Em assembleia, trabalhadores da USP aprovam rechaço à proposta de novo estatuto. Além do Sintusp, se manifestaram contrários a Associação dos Docentes da USP (Adusp), o DCE Livre da USP e o Conselho dos Centros Acadêmicos.
Segundo o DCE, a proposta cerceia “a liberdade de expressão dos alunos e seu direito de contestar medidas injustas ou arbitrárias (…) porque estabelece como punição para os estudantes, a possibilidade de expulsão ou cassação do diploma em caso de infrações graves, suspensão de cinco a 60 dias no caso de infrações médias e advertência nas infrações leves. Também procura punir a adesão de greves e manifestações que são consideradas por eles abusivas, ou que mancham a imagem da Universidade”.
Leia abaixo a íntegra da moção do Sintusp em repúdio à proposta de estatuto.
Moção de Repúdio ao Estatuto de Conformidade de Condutas da Reitoria (Sintusp)
O Conselho Diretor de Base do SINTUSP manifesta, por meio desta moção, seu rechaço à minuta do “Estatuto de Conformidade de Condutas”, apresentada pela Reitoria à comunidade universitária. Embora o objetivo declarado do documento seja adequar as normas disciplinares hoje em vigor a uma organização sócio-política mais democrática, sua inspiração autoritária é similar à que deu origem às normas vigentes, escritas e aprovadas no período da Ditadura Militar, mais precisamente, em 1966.
Assim como o Estatuto dos Servidores da USP, o Estatuto de Conformidade de Condutas chega mesmo a suspender, no âmbito da universidade, direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal e por legislações ordinárias brasileiras.
Logo nos seus preâmbulos, o Estatuto propõe revogar dispositivo que permite o cancelamento de anotações punitivas nos prontuários dos servidores não docentes da universidade após transcorrido um período de dois anos de conduta irrepreensível por parte do mesmo. Isso significa que a sombra de advertências passadas poderá acompanhar toda a vida profissional do servidor. Além disso, propõe dispensar de apreciação legal pela Consultoria Jurídica os relatórios finais de sindicâncias e processos disciplinares, dando margem a todo tipo de erro na dosimetria das punições, no estabelecimento de nexos causais, etc.
Para corroborar o caráter excessivamente amplo da minuta do Estatuto no que diz respeito aos critérios das punições, a definição do que seriam infrações de potencial ofensivo elevado é inaceitavelmente frouxa e indeterminada, contrariando qualquer critério minimamente democrático de redação jurídica. No artigo 11, item VIII, para citar apenas um exemplo, enquadra-se como tal o “proceder de forma desidiosa”, dando, sob o abrigo dessa denominação genérica, um poder discricionário desarrazoado aos aplicadores das sanções administrativas.
Pior do que o mencionado acima é o cheque em branco dado às comissões sindicantes e o alcance das regras de conduta propostas pelo documento. Para ilustrar, citamos o artigo 12, item I, que prevê punição contra qualquer conduta “que atente contra as finalidades da Universidade”, mesmo que não prevista entre as proibições expressas do Estatuto. Incorre no mesmo problema o parágrafo 3º do artigo 2º, que estabelece punições a qualquer um que possa prejudicar os interesses e a reputação da Universidade, uma extrapolação até estravagante dos limites das atribuições legais conferidas ao Reitor e ao Conselho Universitário.
A cereja do bolo é o conjunto de regras que balizaria, caso aprovado o Estatuto, o comportamento discente, sujeitando os estudantes a punições severas por não respeitarem seus professores ou os valores éticos da Universidade – seja lá o que isso signifique – ou por se manifestarem em desabono da Instituição.
Reeditando uma arbitrariedade dos idos de 1964, o texto do Estatuto de Conformidade de Condutas ainda reserva espaço para reiterar a perseguição a grevistas e, consequentemente, a limitação ao direito de greve.
Em síntese, a minuta não busca uniformizar condutas em toda a universidade, mas cria, isto sim, uma ferramenta, com alto grau de discricionariedade, para ser utilizada pela burocracia universitária contra os trabalhadores, os estudantes e os professores não alinhados com a Reitoria.
É inegável a necessidade urgente de revogação do Regime Disciplinar de 1966 e dos dispositivos atávicos, do ponto de vista do Direito, e autoritários do Estatuto dos Servidores da USP. As normas disciplinares hoje vigentes na universidade têm suas origens na Ditadura Militar e carregam em seu conteúdo as marcas do período, tendo sido utilizadas para respaldar uma série de punições absurdas contra trabalhadores da universidade nos últimos anos. No entanto, a elaboração de um novo documento deve ser feita de forma democrática, envolvendo o conjunto da comunidade universitária.
O método escolhido pela Reitoria é inaceitável. Foi apresentada uma proposta integral de estatuto diretamente para o Conselho Universitário (CO), que terá até maio para indicar alterações pontuais em seu conteúdo. Importante lembrar que o CO é um órgão antidemocrático por excelência, no qual o Reitor possui controle total sobre a pauta e o andamento das reuniões, enquanto trabalhadores e estudantes são absolutamente sub representados.
Como se não bastasse o trâmite de um tema tão importante dentro de um órgão tão restrito, tal processo se dá em meio a todas as limitações impostas pela pandemia, impedindo ainda mais o envolvimento do conjunto da comunidade universitária. Por conta disso, este Conselho Diretor de Base, em reunião ocorrida no dia 16/04/2021, deliberou por subscrever o documento “Posicionamentos frente ao projeto de Estatuto de Conformidade de Condutas”, redigido por uma comissão instituída pela Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), propondo a “suspensão imediata do processo de deliberação e aprovação do projeto de Estatuto” e sua retomada depois que a pandemia terminar. Reproduzimos o referido documento na íntegra ao final desta moção.
São Paulo, 16 de abril de 2021.
Sindicato dos Trabalhadores da USP
Conselho Diretor de Base
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