Opinião
Os sentidos dos atos de rua contra o governo Bolsonaro
No contexto de consecutivas derrotas, retorno da esquerda à rua exige análise das potencialidades
Após 15 meses desde o início da pandemia no Brasil, estamos vivenciando pela primeira vez um enfraquecimento do governo Bolsonaro. A mudança conjuntural tem grande importância para nossa classe, pois permite vislumbrar uma nova correlação de forças capaz de refrear a agenda burguesa e, até mesmo, aniquilar a alternativa golpista que o governo Bolsonaro tenta emplacar.
Os atos de rua, iniciados no dia 29 de maio, não expressam apenas mais uma investida contra o governo, eles representam a ferramenta de luta central para as classes subalternas. É a rua, não o parlamento, que nos serve de arena. É nela que trilhamos táticas de enfrentamento imediatos e aglutinamos condições subjetivas para confrontos vindouros.
O enfrentamento ao bolsonarismo tornou-se imperativo desde sua passagem ao segundo turno nas eleições de 2018. Desde então, tem-se intensificado a liquidação das nossas riquezas sociais — com o aprofundamento das privatizações e a retirada de direitos — e a perda de nossas riquezas pessoais — com a morte de mais de meio milhão dos nossos.
Mas sabemos que nada está tão ruim que não possa piorar. Essa é a face do bolsonarismo enquanto proto regime. Sabemos que o projeto encarnado por Bolsonaro tem como finalidade última o fechamento do regime político brasileiro e intensificação do aparato repressivo. Por isso, mesmo àqueles que se deixam regular pelos calendários eleitorais, 2022 não deve ser visto com tanta confiança. Desde que chegou à cadeira presidencial, Bolsonaro tem feito uma série de ensaios golpistas. Neste ínterim, algumas relações se romperam, mas outras se fortaleceram. O exemplo maior é a agitação e articulação das forças policiais com o projeto bolsonarista.
A política não é definida pela moral ou pela verdade. Trata-se da mais pura relação de forças. E o governo Bolsonaro é a prova disso: mesmo com uma política pró-pandemia em meio a crescente miséria do povo, o governo conseguiu alcançar o mais elevado patamar de aprovação entre agosto e dezembro do ano passado, em plena crise econômica e sanitária.
Sendo assim, é crucial abandonar qualquer ilusão de que é possível confiar em um desfecho racional e moralmente aceito. Afinal, pensar a história da América Latina é pensar a história de massacres e desfechos autoritários.
É importante ressaltar esse aspecto para centralizar a seriedade que há no enfrentamento contra as políticas de Bolsonaro mas, sobretudo, contra a proposta histórica que ele representa. O foco do enfrentamento, portanto, é liquidar os intentos bolsonaristas de se tornar regime.
Cisão no alto escalão do Estado
O enfraquecimento do governo Bolsonaro não começou pelas nossas mãos, mas sim devido aos atritos intraburgueses. O combate aos efeitos mortais da pandemia sobre o conjunto da massa trabalhadora nunca foi uma questão para os setores burgueses. A partir do começo de 2021, porém, com o início das campanhas de vacinação de diversos países, o fim da pandemia se tornou um problema.
A temporalidade passa ao centro da questão. A saída da pandemia marca a retomada, a todo vapor, das economias. Entre os países imperialistas, a corrida pela vacinação da população relembrou a corrida espacial entre as principais potências do pós-guerra.
O bolsonarismo, a tropeços, funcional à agenda burguesa, passou a ser um empecilho para a superação da pandemia com a virada do ano. Enquanto Rússia, China, EUA, Israel e países centrais da Europa começaram a vacinação entre novembro e dezembro, o Brasil iniciou o calendário de imunização apenas na segunda metade de janeiro e de maneira muito fragmentada e lenta.
Com calendário de vacinação deteriorado, com campanhas pró-pandemia e sem auxílio emergencial, o Brasil entrou na segunda onda da pandemia, entre março e abril.
A partir de então, o desgaste do governo com setores burgueses começou a se refletir em atritos no interior do aparelho estatal. Os conflitos intraburgueses, intensificados em março, desaguam na criação da CPI da Covid, determinada pelo STF no dia 14 de abril.
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Em 22 de março, setores da grande burguesia e seus principais representantes e intelectuais assinaram a “carta dos economistas” anunciando afastamento do governo. No dia 29, Bolsonaro fez uma reforma ministerial demitindo o Ministro da Defesa, General Fernando de Azevedo e Silva. A ação se desdobrou na renúncia dos três comandantes das Forças Armadas.
É certo que a demora em superar a pandemia é fator central para os combates e enfrentamentos ao governo. No entanto, não é possível perder de vista a velocidade com que o governo tem conseguido colocar em marcha uma série de pautas da agenda burguesa. Seja com as reformas, mas sobretudo com o processo intensivo de privatização dos setores estratégicos.
Por outro lado, não é apenas a condução da pandemia que pesa contra o governo. O país deve enfrentar a maior crise hídrica em décadas, devido à grande estiagem. Além de provocar uma crise elétrica (70% da energia utilizada no país provém das hidrelétricas), a estiagem pode afetar o agronegócio, atualmente o setor mais dinâmico da economia brasileira.
Com os atritos intraburgueses e a necessidade de vislumbrar novos quadros, o STF, na figura do ministro Edson Fachin, anulou todas as condenações de Lula. Elegível, a volta de Lula ao jogo político marcou o começo da campanha eleitoral para 2022.
Lula abraçou até o diabo em Brasília, visando estabelecer alianças das mais variadas possíveis.
Para Bolsonaro, a antecipação do processo eleitoral levou o governo a sair em campanha pelo país e relegar a segundo plano grandes questões nacionais, paralisando parcialmente as atividades do governo (em plena pandemia e crise hídrica). De um lado, inaugurando obras e promovendo comícios e “motociatas”, doutro, articulando jantares e reuniões com setores do capital.
Às ruas
É neste contexto de conflitos entre o alto escalão do Estado e de disputa entre projetos burgueses que organizações de esquerda resolveram, enfim, convocar o povo para ir às ruas. O chamado congregou sindicatos, centrais, movimentos e partidos de esquerda.
O peso do chamado e a direção que se esperava, vale lembrar, não foi e não tem sido homogênea. De um lado, há setores que convocaram os atos na esperança de que as mobilizações tomem proporções suficientes para impulsionar o afastamento de Bolsonaro antes das eleições. Acredita-se que ainda é possível e vale a pena tentar uma mudança rápida na correlação de forças. Por outro lado, há outros setores, mais próximos do Partido dos Trabalhadores, que intentam com os atos que o governo Bolsonaro não caia, mas que chegue nas eleições sangrando.
Outra parte dos setores contrários ao impeachment sequer creditaram qualquer validade aos atos. A CUT e parte considerável do PT foram contrários ao chamado para o dia 29 de maio. Movimentos como MST participaram do chamado de maneira acanhada.
Apesar do freio do PT e de setores em sua órbita, o saldo do retorno da esquerda às disputas nacionais foi positivo. O 29M provocou atos em mais de 200 cidades, colocando cerca de 500 mil pessoas nas ruas.
Com milhares de pessoas, ato contra Bolsonaro ocupa sete quarteirões da Paulista (29/05/2021). Foto: Mídia Ninja.
Pressionados pelas bases, no segundo chamado para o dia 19 de junho, a convocatória envolveu um conjunto mais amplo de setores da esquerda, ainda que nem todos dirigiram força total de agitação.
Apesar da deterioração das condições de vida (desemprego, inflação, auxílio reduzido), ainda não se formou pelo país atos massivos e com um grau mais elevado de radicalidade, tal como os nossos hermanos colombianos e chilenos nos mostraram recentemente. Mas os fatores explosivos para tal estão dados.
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A despeito disso, não é possível desprezar o impacto que as mobilizações tiveram até então. A diversidade dos atos, que na segunda rodada chegaram a quase 400 cidades, abrangendo cerca de 750 mil pessoas, teve impacto importante. Seja diretamente contra o governo, seja indiretamente pelo fortalecimento das condições subjetivas da luta.
Mas mesmo com um processo de ampliação dos atos, a fração maior das organizações de esquerda achou de bom tom marcar o terceiro ato apenas no dia 24 de julho, isto é, num espaço de tempo de cinco semanas!
Alguns setores responderam com a tentativa de organizar um ato entre o 19J e o longínquo 24 de julho. Pela Frente “Povo Na Rua, Fora Bolsonaro”, agendou-se ato para dia 13 de julho.
Mas nas últimas semanas, um novo fato político agitou a conjuntura. As suspeitas de corrupção na compra da Covaxin e a possibilidade de que o governo Bolsonaro sabia do esquema e prevaricou ao não tomar as medidas cabíveis, provocou novo desgaste do governo impulsionando novas mobilizações sociais.
Menos de 24 horas após a CPI da Covid ter acesso às denúncias dos irmãos Miranda, um ato espontâneo chegou a ser organizado na capital paulista, no sábado (26).
Com o novo fato político e sinais de efervescência social, as organizações de esquerda reavaliaram e convocaram novo ato nacional para dia 3 de julho.
Em linhas gerais, as manifestações nacionais cumprem importante papel para desgastar o governo. Esse elemento não pode ser desprezado. Um dos indícios, ainda que precise ser ponderado, está na queda de popularidade do governo.
Mas além desse impacto mais direto, os atos de rua constituem a experiência histórica de um tempo. As mobilizações nacionais, por exemplo, marcam importante experiência formativa da juventude em luta, seja daqueles que já estão na rua desde junho de 2013 e passaram pelas ocupações de 2016, marchas de 2017 e atos de 2018 e 2019; seja daqueles que encontram nessas manifestações suas primeiras experiências políticas.
Por isso, além do impacto direto que pode desgastar ou refrear o governo, a agenda de atos constitui também a continuação ou início de uma experiência de lutas. Esse fator não é menor, pois na incerteza dos desdobramentos políticos, há a certeza de que o próximo ciclo será de luta.
Esse aspecto de formação política das atuais gerações não é, por isso, secundário. Ligado à direção, formas e táticas dos atos, está a necessidade de que estes sejam construídos pela base, pois é nesse movimento que se consolidam experiências políticas de organização e envolvimento político. Do contrário, os atos, as deliberações de datas e as possíveis divergências intrapartidárias aparecem como algo estranho e sem sentido, que afasta ao invés de potencializar os sujeitos envolvidos. .
No desenrolar da luta atual está a capacidade de consolidar as condições subjetivas para os embates seguintes.
Afinal, o bolsonarismo ainda busca de diversos meios reunir as condições objetivas para uma saída golpista. Ainda que pareça ter ocorrido certa inclinação do governo, não se pode perder de vista que não houve recuo e que a estratégia de enfrentamento segue em marcha.
Para os quadros do bolsonarismo, o êxito do projeto de golpe é questão de vida ou morte. Tudo indica que uma saída burguesa contra o governo deve implicar no extermínio desse projeto, o que pode envolver a prisão dos principais articuladores, inclusive filhos do presidente, e do próprio presidente.
Face a isso, a construção unificada dos atos é imperativo para o conjunto da esquerda. Não apenas apostando na massificação e radicalização, mas construindo-os de maneira orgânica desde a base, provocando, assim, a estruturação da militância. Ademais, é preciso ficar atento na progressão das manifestações, nas mudanças de correlação de forças e nas tendências apontadas.
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