Sara Granemann é professora de Economia Política na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e tem cumprido um papel importante nos debates sobre o Estado ao tratar da transferência de fundo público como forma de solução da crise do capital. No terceiro episódio do Prelúdio, a entrevistada aborda as particularidades do cenário brasileiro no tocante à economia, política e pandemia.
Segundo a entrevistada, a crise não é uma circunstância exclusiva ao Brasil, mas geral aos demais países. Entretanto, a solução temporária das contradições é particular e possui relação com a formação social de cada nação. A professora também destaca que a gravidade do momento enfrentado não foi determinada pela pandemia.
Ao menos desde 2007/2008, há um cenário de forte abalo no modelo de reprodução do capital, ainda que daquela época até os dias de hoje tenham ocorrido momentos de breve crescimento e estabilidade. Entretanto, com relação àquele período, o que estamos atravessando é de maior gravidade. Ainda que a eleição de 2018 tenha demonstrado um maior agravamento das condições, há determinantes importantes da crise tanto nos ciclos petistas quanto no processo de impedimento no ano de 2016.
Algumas evidências foram lançadas para sustentar a tese da continuidade desta crise, como o crescimento do desemprego desde 2009 e os índices de produção de riqueza. Sara cita um relatório do Banco Credit Suisse que aponta o Brasil como segundo país com o maior crescimento de multimilionários, perdendo apenas para os Estados Unidos. O dado revela a alta taxa de concentração de capitais no país.
A professora aponta a centralidade das contrarreformas promovidas pelo Estado nos últimos anos para contrarrestar a queda da taxa lucro, ao transferir parte do fundo público para queima de capitais, como foram as contrarreformas trabalhista (2017) e previdenciária (2019). A situação sanitária se insere como parte importante desta resolução provisória do ponto de vista do capital. Como exemplo, a Proposta de Emenda Constitucional nº 10/2020, conhecida como “Orçamento de Guerra”, promulgada pelo Congresso Nacional em maio deste ano, liberou R$130 bi que não precisariam de uma emenda constitucional para serem executados. Esse desígnio, portanto, sinaliza a disponibilidade por parte do Governo em transferir parte do fundo público para a resolução da crise econômica em nome da situação sanitária.
Outro fator suis generis da crise brasileira é a violência extrema contra a classe trabalhadora, já que faz parte do cálculo político do Estado burguês aniquilar parte “excedentária” da classe – um conjunto para além do próprio exército de reserva, a fim de evitar a formação de uma massa convulsiva que poderia se rebelar contra as péssimas condições de vida. A morte de milhares de brasileiros, portanto, compõe a estratégia de avançar o projeto do Estado contra o fundo público.
De acordo com a professora, a pandemia tem permitido também uma reestruturação dos processos e contratos de trabalho, ao apresentar como experiência modelos que podem perdurar posteriormente, como o que tem ocorrido com o Ensino a Distância, supostamente provisório nas universidades brasileiras. A crise reorienta o valor histórico e moral da força de trabalho e recorre a muita violência para levá-lo à cabo.
Sara em conjunto com outros pesquisadores de diversas universidades (UERJ, UFRJ e UnB) têm feito um esforço para caracterizar e compreender as dinâmicas do fundo público no Brasil. Segundo esses estudos, há uma diferença entre a percepção aparente e a essência ao compreender o fenômeno. Em sua imediaticidade, o fundo público aparenta ser oriundo de impostos e contribuições proporcionais aos “ganhos”, no qual os capitalistas seriam os maiores pagadores. Entretanto, a essência desta riqueza é oriunda da produção social fruto do trabalho, tanto da parcela não paga quanto da necessária ao trabalhador. Parte do orçamento anual, portanto, tem como origem a expropriação de uma parte necessária à reprodução da classe trabalhadora.
Segundo a pesquisadora, no Brasil o valor histórico moral da força de trabalho é marcado por patamares baixíssimos, fruto de muita violência por parte do Estado e dos capitais. Em razão disto, as políticas sociais resultam em uma abrangência rebaixada. Essa dinâmica do fundo público com a formação social brasileira, bem como esses efeitos nas políticas sociais, revelam, nos marcos contemporâneos mais do que nunca, um papel central na contratendência da queda da taxa de lucros.
Uma das formas de transferir essa riqueza social aos capitais é a privatização de patrimônios da nação, como infraestrutura e empresas estatais. Sara lança luz para a quantidade de privatizações em 2019: foram 73 propriedades do Estado, em suas mais variadas formas, vendidas à iniciativa privada. O lucro dessas vendas foi de R$ 105,4 bi, mas o dinheiro não foi convertido diretamente em políticas sociais, como tem sido utilizado como justificativa ideológica para promover essa reestruturação. Segundo Granemann, esse fator talvez possa ser um explicativo para justificar o crescimento de milionários no Brasil. Essa transferência é um projeto de reestruturação do Estado que se intensificou nos últimos anos. O Ministro da Economia, Paulo Guedes, pretende até 2021 privatizar 300 das 698 propriedades ainda estatais.
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Essa disponibilização do fundo público tem como fundamento permitir maior espaços de acumulação e queima de capitais. Para tal, há a forma clássica que transforma em mercadoria o que antes era patrimônio público, mas também há formas não típicas, como por meio da compra e venda de ações e títulos públicos, transações do capital em sua forma fictícia.
A retirada de direitos intensificada nos últimos anos teria, segundo Sara, relação com essa segunda forma de transferência do fundo público. A retirada de direitos seria parte dessa possibilidade de criar novas formas de inversão. Os fundos de investimentos têm se apresentado como uma forma na qual a transferência de fundo público tem ganhado uma faceta mais sofisticada, o que dificulta muitas vezes a leitura da realidade.
A professora apresenta um debate sobre o papel das políticas sociais, sobretudo em um momento como este, com tantas contrarreformas efetivadas ou em curso. Por um lado, elas cumprem um papel importante no ajustamento do valor histórico moral da força de trabalho a patamares superiores. Entretanto, não podem ser abordadas sob a ótica da resolução de conflito entre capital e trabalho, insuperável no interior deste modo de produção. Sara ainda elenca a particularidade deste momento histórico, já que as políticas sociais têm se tornado um campo de lucratividade para o capital. Além disso, elas jamais são universais no capitalismo, mesmo em momentos de taxa de lucro em crescimento.
O último elemento apresentado por Sara, e que também foi explorado com afinco por Mauro Iasi, é o papel da organização da classe no enfrentamento da crise. Parte da ferocidade burguesa em direção aos trabalhadores relaciona-se com uma urgência de sua própria classe em sair da crise. Entretanto, por não ter encontrado grandes resistências por parte da classe trabalhadora, a classe dominante tem conseguido avançar imensamente. A professora vê como central pensar o papel das diversas formas de opressão na composição de uma luta em comum, superando o momento “em si” em direção à constituição da consciência de classe “para si”.
Sara Granemann é uma pesquisadora de fôlego. Suas pesquisas são de fundamental importância para compreensão da magnitude da ofensiva do capital. No ano passado, suas teses sobre seguridade social foram cruciais para o debate sobre a Reforma da Previdência, uma das maiores derrotas recentes da classe trabalhadora. Ainda que aprovada a lei, os debates ainda são bastante relevantes para nortear a gravidade do diagnóstico da nossa situação de classe.
O prelúdio é um programa de entrevistas que se propõe a circular debates sobre a conjuntura brasileira que possam contribuir para a organização das lutas no campo da esquerda. A iniciativa é do Universidade à Esquerda em parceria com a Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora (EFoP). Confira os dois primeiros episódios, com Virgínia Fontes e Mauro Iasi.