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Opinião

O silêncio e a não comunicação no filme Drive My Car: em defesa do conflito como forma de fortalecimento da solidariedade de classe

Jonathan Faria analisa o filme Drive My Car
Imagem: montagem por UàE com letreiro do filme Drive My Car sobre foto do Centro Internacional de Conferências de Hiroshima de Jesse Wilson/Wikimedia Commons
18 de janeiro, 2023 Atualizado: 20:32

Drive My Car certamente foi um dos filmes que mais me marcaram nos últimos anos. Este filme é dirigido por Ryûsuke Hamaguchi, e baseado no conto de mesmo nome do livro “Homens sem mulheres” de Haruki Murakami. A história tem como protagonista o ator e diretor de teatro Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) que enfrenta o drama e os ressentimentos de uma relação interrompida abruptamente pela morte de sua esposa Oto Kafuku (Reika Kirishima). 

Apesar de haver muito afeto e amor mútuo muito grande um pelo outro, Yusuke tinha conhecimento de que sua esposa tinha diversos casos extra conjugais, no entanto essa tensão nunca foi a tona e a possibilidade de alguma resolução acerca deste tema e da relação como um todo se finda com a morte de Oto.

Outro elemento que perpassa por toda a trama é a peça teatral Tio Vânia, do dramaturgo russo Anton Tchecov. O estudo desta peça se apresenta enquanto cenário em que ocorre a trama. Em um primeiro momento, Yusuke trabalhava como ator desta peça. Após a morte de Oto e por esta peça dialogar diretamente com as questões mais profundas dos dilemas que vivia, Yusuke não consegue mais atuar e anos depois, se depara com a peça agora na condição de diretor.

Em sua releitura, os organizadores da peça, inclusive Yusuke, optam por trazer atores de diferentes nacionalidades do leste asiático e que interpretam seus personagens em diferentes línguas, inclusive com a participação de uma atriz sul-coreana que, por ser muda, se comunica pela linguagem coreana de sinais. No processo de seleção dos atores, Yusuke seleciona o ator Koji Takatsuke (Masaki Okada), no qual, anos antes Yusuke teve conhecimento que esse teve relações sexuais com Oto durante o periodo em que era casado, para enterpretar Vânia um dos papeis principais da peça. 

Na condição de diretor, e por questões contratuais, Yusuke é obrigado a depender de um motorista profissional para dirigir por ele. Apesar da resistência, Yusuke cede e acaba aceitando que a motorista profissional Misaki Watari (Tôko Miura) o acompanhe no trajeto cotidiano de uma hora entre o trabalho e sua casa alugada, assim como em outros percursos que Yusuke deveria fazer de carro. 

Durante o decorrer da trama Yusuke e Misaki desenvolvem uma profunda amizade que culmina com o acolhimento dos dois pela tragédia sofrida por ambos: Yusuke, após dois anos do falecimento de Oto, ainda lidava com o luto e com a mágoa de não ter conseguido externalizar suas frustrações a sua esposa; e Misaki, que não conseguia se perdoar por não ter conseguido salvar sua mãe em um deslizamento que atingiu a casa em que elas moravam. 

A partir desta breve caracterização, evidenciarei alguns elementos que pude observar e que motivaram a escrita deste texto.

O tema da comunicação como elemento central da trama

Creio que o elemento central do desenvolvimento da trama está nas diversas formas como a comunicação, ou a não comunicação, perpassam as relações entre os personagens do filme. 

Entre Yusuke e Oto, havia uma grande questão a ser resolvida sobre a não comunicação e a quebra de acordos entre eles. No último dia de Oto, ela havia convocado Yusuke para uma conversa que, apesar de não sabermos o motivo, insinuava uma resolução e um desfecho desta relação para um outro lugar. Yusuke, ao temer esta conversa e um possível término, adia ao máximo o seu retorno e ao chegar tarde da noite, encontra sua esposa morta na sala. 

Durante os ensaios, o ator japonês Koji e a atriz chinesa Janice Chang(Sonia Yuan), não conseguem dar prosseguimento ao caso que levavam por não conseguirem se comunicar direito em virtude do idioma distinto.

O único casal que foi apresentado que aparentava desfrutar de um bom relacionamento foi a relação do intérprete Kon Yoon-su (Dae-Young Jin) com a atriz sul coreana e com deficiência de fala  Lee Yoon-a(Yoo-rim Park). Durante a trama, em um jantar entre eles e o diretor Yusuke, os dois revelam que são casados a algum tempo e que para ficarem juntos, Kon estudou com afinco a linguagem sul-coreana de sinais para poder entender e se comunicar com Lee. Dentre as relações apresentadas no filme, a cena do almoço entre o casal e Yusuke, pode nos mostrar o esforço do casal em criar ferramentas para se entenderem e construir uma aparente relação saudável.

Além das relações afetivas desenvolvidas na trama, a própria peça que estava sendo construída faz alusão à questão da comunicação. A maioria dos atores falam línguas diferentes sendo necessário a apresentação de legendas na peça para o público. No entanto, apesar dos diferentes idiomas, de um certo modo há um entendimento entre os personagens representados e a peça consegue se desenvolver para o grande público. Ao colocar atores asiáticos de diferentes nacionalidades interpretando uma peça de autoria de um russo, se coloca uma ideia de interação entre esses países que conseguiram superar as suas diferenças e construir algo juntos para o grande público, fazendo uma alusão a uma integração dos países do leste asiático.

O tema da comunicação também é abordado nas cenas que não são faladas. Ao longo do filme, testemunhamos várias cenas de silêncio e contemplação. Estas cenas, apesar de não haver diálogos, nos colocam em uma posição parecida com os personagens em cena: no silêncio e contemplação, tanto o personagem quanto nós espectadores, paramos por um momento para refletir o que está acontecendo na vida dessas pessoas. A paisagem e a trilha sonora dessas cenas criam momentos de profundidade e de conexão entre nós espectadores e os personagens desta história. Técnica narrativa que vemos em alguns filmes japoneses como os dirigidos por Hayao Miyazaki e Akira Kurosawa por exemplo.

Gaman –  a filosofia da perseverança

A reação de Yusuke ao testemunhar sua esposa com outra pessoa foi evitar tocar no assunto e também esconder que sabia dos casos extraconjugais dela. Oto, apesar de não sabermos o que seria o tema da conversa, provavelmente suportava outras questões sensíveis de seu relacionamento com Yusuke. Essa dinâmica me remeteu a uma filosofia seguida pela sociedade japonesa comumente chamada de Gaman. 

De origem budista e amplamente difundida no Japão no período pós-guerra a filosofia gaman:

De forma simplificada, é a ideia de que os indivíduos devem exercitar a paciência e a perseverança ao enfrentarem situações inesperadas ou difíceis pelo bem do coletivo.

O conceito implica um certo grau de autocontrole: você freia seus sentimentos para evitar o confronto. É visto com um dever na sociedade japonesa e também como um sinal de maturidade.[1]

Essa filosofia se tornou uma das ferramentas para manter a classe trabalhadora japonesa empenhada na reconstrução do país pós guerra. Isso se manifesta nas relações de trabalho do país gerando situações como a de suportar um chefe abusivo não o confrontando para se ter uma promoção no futuro, por exemplo.

Para além dos efeitos positivos como perseverança e resiliência, esta filosofia, ao ser apropriada pela lógica do capital, se torna um instrumento de subordinação da classe trabalhadora a condições mais precárias e a relações interpessoais menos saudáveis caindo de forma mais preponderante sob os ombros da mulheres ao sofrerem com maior intensidade as consequências desta face do Gaman. Temos como exemplo a mulher que trabalha na manutenção do lar e que evita reclamar ou demonstrar sentimentos negativos como forma de apoiar o marido em seu trabalho e evitar conflitos.

No entanto, não podemos creditar ao Gaman as atuais expressões do machismo e das questões de gênero no Japão. O avanço e retrocesso dessas pautas continuam sendo ditadas pelos avanços e retrocessos do capital e do avanço das lutas da classe trabalhadora. No país esta questão se manifesta pela leniência do judiciário perante aos julgamentos de abusos sexuais[2] ou pelo número recorde de notificações de violência doméstica, chegando a 130 mil casos notificados em 2020[3]

Drive My Car: desfecho e lições 

Apesar das questões levantadas acima, a narrativa do filme nos leva a refletir outras formas de desdobramento desses problemas. A questão dos casos extraconjugais de Oto provocaram uma mágoa profunda no protagonista da trama. No entanto, o desenrolar da narrativa nos leva a um lugar muito diferente ao de apedrejamento e condenação misógina de Oto. Yusuke amava profundamente sua esposa e, no percorrer da trama, ele tenta reconstruir a grande pessoa que ela foi e como ambos lidaram com a dor e o trauma de perder sua filha assim como os impactos que esse fato teve em seu casamento.. 

Essa forma de lidar ocorre também na relação de Yusuke e o ator Koji, mesmo ciente que o ator teve relações com Oto, não consegui perceber nenhuma cena de retaliação de Koji por parte de Yusuke. A relação dos dois começa de forma estritamente profissional e termina em uma das cenas mais icônicas do filme onde ambos compartilham a admiração por Oto.

Ao final, depois deste caminho de imersão trilhado nas conversas e nas viagem de Yusuke e Misaki, ambos conseguiram entender e assumir seus desejos, dando possibilidades de seguir em frente após a grande perda que cada um sofreu. 

O filme me tocou profundamente pois me fez pensar nas relações que temos hoje em dia. O neoliberalismo, dentre tantos efeitos nefastos, precisou criar e fortalecer uma série de ideologias para desarticular e mistificar o impulso e a força da solidariedade inerente da classe trabalhadora. O trabalho, que é produto de ação coletiva, nos é apresentado como uma operação descolada dos processos que envolvem toda a sociedade e que são fundamentais na reprodução da vida. Neste sentido, nos alienamos da dimensão do trabalho, o que é feito coletivamente nos é apresentado como partes desconexas de um trabalho coletivo. 

Para que esta forma de trabalho se perpetue em um nível de exploração cada vez maior, somos bombardeados constantemente com idéias como o empreendedorismo e outras ideologias que nos colocam como os únicos responsáveis pela realidade violenta e hostil em que vivemos. Essas idéias tendem a nos afastar de processos coletivos de elaboração e ação conjuntas, “somos os únicos responsáveis pelos nossos problemas e precisamos lidar com eles sozinhos”. Trabalhar questões coletivas nos leva a conflitos, no entanto, há um medo desses conflitos pois somos educados a esperar respostas violentas, ou que possam ferir nossos egos ou as pessoas que dirigimos as nossas discordâncias. Novamente, isso tudo nos leva a ideia de que não podemos contar com ninguém a não ser nós mesmos.  

Isso se reflete nas diferentes dimensões de nossa vida, acho que Drive My Car coloca esta questão no nível das relações pessoais. No entanto, vejo que se apropriar dos desejos do nosso coração (moral do filme), vai muito além de poder se comunicar e se relacionar de forma saudável e construtiva. Se apropriar dos nossos desejos pode nos levar a querer lutar contra toda a barbárie que vivemos e que nos afastam cada vez mais do nosso potencial de sermos mais do que mera força de trabalho a serviço do capital.

Tanto a morte de Oto, quanto a morte de Misaki, foi uma tragédia na vida dos envolvidos. No entanto, para mim, a maior tragédia que essa história nos conta é a solidão e a distância entre as pessoas. Tanto Yusuke quanto Misaki, não tiveram nenhuma relação de empatia e confiança a ponto de poder compartilhar e elaborar suas angústias com outros. Carregaram este fardo por anos, tentando dar conta sozinho de seus problemas: Yusuke ouvia diariamente a fita no qual Oto recitava os diálogos dos personagens de Tio Vânia, respondendo em voz alta a sua fala, no que parece ser uma tentativa de poder dialogar com ela mesmo que morta; Misaki manteve a cicatriz em sua face e se recusou a removê-la por uma cirurgia de reparação estética. Por anos esses personagens estavam sozinhos e apenas quando conseguiram estabelecer relações de solidariedade um com o outro conseguiram seguir em frente.

Drive My Car me emocionou profundamente pela sensibilidade de sua trama e por causar tantas reflexões a respeito do mundo em que vivemos atualmente. Certamente é um exemplo de que os conflitos não só são bem vindos como necessários.  A teoria que desenvolvemos para a nossa classe tem por trás uma tradição pautada nas polêmicas e imersa em grandes conflitos, tanto entre os setores revolucionários quanto com os setores reacionários. Entre nós, precisamos perder o medo do conflito, devemos aprender a incorporá-lo em nossa vida e dar consequências que fortaleçam os nossos laços e, consequentemente, os laços da nossa classe.

Por fim, não consegui dar conta de todas as faces deste filme e muito menos apresentar um resultado final e acabado acerca deste assunto. Espero que esta análise ajude a ter uma outra perspectiva sobre o filme e que fomente muitas críticas e conflitos. Paz entre nós e guerra aos senhores.


[1] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57904943

[2] https://noticias.r7.com/internacional/japao-o-pais-onde-o-consentimento-sexual-nao-significa-nada-14052019

[3] https://www.japantimes.co.jp/news/2021/01/13/national/domestic-violence-cases-record-high/

Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.


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