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Opinião, Painel do leitor

O Fundeb e a indução do papel dos IFs na Reforma do Ensino Médio

Como a regulamentação do Fundeb busca induzir o papel dos IFs na Reforma do Ensino Médio? Mauro Sala para o UàE
Imagem: montagem por UàE sobre fotos de Pilar Pedrerira/Agência Senado e CEFET-MG
Por Painel do leitor, redação do Universidade à Esquerda
15 de abril, 2021 Atualizado: 11:01

Texto enviado pelo leitor Mauro Sala, professor do Instituto Federal de São Paulo, para o UàE via Painel do Leitor. Mauro lança a pergunta: Como a regulamentação do Fundeb busca induzir o papel dos IFs na Reforma do Ensino Médio?

Sempre ouvi falar que a melhor forma de saber se uma política educacional vai para frente ou não é olhando o orçamento. Em regra, uma política educacional que não tem uma forma de financiamento definida acaba fracassando, torna-se letra morta. Isso é para bem e para o mal.

Quando na esteira da Reforma do Ensino Médio foi aprovada a EC 95, aquela do teto de gastos, ficou claro que se tratava de uma reforma que, no seu conjunto, precarizaria a educação. Entendida no quadro da crise capitalista, do golpe institucional, da reforma trabalhista, da ampliação da terceirização e da reforma da previdência, a Reforma do Ensino Médio ganhava um sentido ainda mais concreto: a da precarização da formação da juventude trabalhadora como contraparte à precarização do trabalho.

Mas o abalo no financiamento da educação pública trazida pela EC 95, que impossibilitou que saíssemos do nosso subfinanciamento crônico, não poderia significar um “desfinanciamento” geral. Era necessário fontes de financiamento para a implementação da Reforma.

Desse modo, o financiamento da reforma passou contar também com o apoio dos reformadores, daí a participação sempre renovada do Banco Mundial, por exemplo, no “apoio financeiro à implementação da reforma do ensino médio”, como mostrou uma reportagem da EPSJV-Fiocruz.

Mas esse apoio “externo” não é suficiente a longo prazo. Ele pode ser um impulsionador ou um financiador inicial para a Reforma, mas não pode consubstanciar em elemento “estatal” de financiamento e manutenção de seu projeto. É necessário mecanismos internos que indiquem às diversas instituições qual o seu papel nesta política determinada. É necessário um mecanismo de financiamento consistente com o arranjo proposto.

***

No caso da Reforma do Ensino Médio e, sobretudo, do papel dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia na implementação do itinerário de formação técnica e profissional esse mecanismo foi explicitado pelo Decreto nº 10.656/2021, que regulamenta o FUNDEB.

Como sabemos, com a Reforma, a formação técnica e profissional se tornou um dos cinco itinerários formativos do Ensino Médio, no esquema BNCC (até 1800 horas) + itinerário formativo.

Antes da Reforma do Ensino Médio, havia duas formas básicas de articulação entre o Ensino Médio e a formação profissional: a forma integrada, “oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino fundamental, sendo o curso planejado de modo a conduzir o aluno à habilitação profissional técnica de nível médio, na mesma instituição de ensino, efetuando-se matrícula única para cada aluno” e a forma concomitante, “oferecida a quem ingresse no ensino médio ou já o esteja cursando, efetuando-se matrículas distintas para cada curso”, conforme podemos ler na LDB.

A forma concomitante pode ocorrer “a) na mesma instituição de ensino, aproveitando-se as oportunidades educacionais disponíveis; b) em instituições de ensino distintas, aproveitando-se as oportunidades educacionais disponíveis e; c) em instituições de ensino distintas, mediante convênios de intercomplementaridade, visando ao planejamento e ao desenvolvimento de projeto pedagógico unificado” (LDB)

Assim, a forma integrada prevê projeto que articule a formação básica e a formação técnico-profissional e a forma concomitante pressupunha a integralização do Ensino Médio regular, que deveria ser cumprido concomitantemente à formação profissional. Em nenhum dos dois casos havia a limitação da formação geral básica às 1800 horas estabelecidas na Reforma. Pelo contrário: para a forma concomitante era necessário integralizar as 2400 horas do Ensino Médio regular, e a forma integrada, embora não houvesse uma determinação nesse sentido, constituiu sua materialidade com cursos que cumpriam, simultânea e articuladamente, a formação geral e profissional dos estudantes.

Com a Reforma do Ensino Médio isso se problematiza, já que a formação profissional deixa de se articular com a formação geral de nível médio para se tornar uma formação substitutiva a ela.

Não à toa, os próprios cursos integrados serão obrigados a se adequar ao esquema BNCC (de até 1800) + formação técnica e profissional estabelecida na Reforma do Ensino Médio. Assim, as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica estabeleceram que:

“§ 1º Os cursos de qualificação profissional técnica e os cursos técnicos, na forma articulada, integrada com o Ensino Médio ou com este concomitante em instituições e redes de ensino distintas, com projeto pedagógico unificado, terão carga horária que, em conjunto com a da formação geral, totalizará, no mínimo, 3.000 (três mil) horas, a partir do ano de 2021, garantindo-se carga horária máxima de 1.800 (mil e oitocentas) horas para a BNCC, nos termos das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em atenção ao disposto no §5º do Art. 35-A da LDB” (BRASIL; MEC; CNE, 2021, art. 36, § 1º).

Desse modo, passa a não haver mais diferença substantiva entre as formas de articulação entre o Ensino Médio e a educação profissional e o proposto na Reforma; ou entre as formas integrada e concomitante e os itinerários formativos. Em todos os casos a formação geral passaria a ser regida pela BNCC e estaria limitada a 1800 horas.

Nesse quadro, e com a institucionalização da chamada concomitância intercomplementar, as escolas profissionalizantes estão sendo chamadas a contribuir com a implementação do itinerário de formação técnico e profissional previsto na Reforma do Ensino Médio.

A adaptação a esse esquema e esse novo papel para as escolas técnicas e profissionais já estão em processo em instituições como as Escolas Técnicas Estaduais de São Paulo (ETEC) com as reformas curriculares dos cursos integrados, adaptando-os ao esquema BNCC + curso profissionalizante, e com sua substituição pelos cursos do NOVOTEC, que é o programa do governo estadual para a implementação do itinerário técnico e profissional na rede estadual paulista.

Embora essa determinação passe a valer para o conjunto das instituições de educação profissional de nível médio do país, a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, por gozar de autonomia prevista no artigo 54 da LDB e na Lei 11.892/2008, necessita de uma forma mais intrincada de indução.

Noves fora as intervenções diretas do governo Bolsonaro sobre os Institutos Federais (IFs), atropelando os processos de escolha de dirigentes e intervindo autoritariamente sobre os rumos das instituições, temos que ver como o novo decreto de Bolsonaro para a regulamentação do FUNDEB busca induzir os IFs a assumirem o papel de implementadores do itinerário de formação técnica e profissional, se aliando aos interesses da Reforma.

Desse modo, o Decreto nº 10.656/2021, que regulamentou o FUNDEB, estabeleceu as formas de cômputo das matrículas, as possibilidades de convênios com o poder público e as formas de transferências de recursos para essas instituições conveniadas.

Temos que notar – e isso é coerente com os princípios da Reforma do Ensino Médio -, que o Decreto 10.656/2021 não faz nenhuma distinção entre as formas de articulação da educação profissional com a educação básica e o itinerário de formação técnica e profissional. Como podemos ler no Decreto:

“Art. 22. Para fins da distribuição dos recursos do Fundeb, será admitida a dupla matrícula dos estudantes:
[…]
II – da educação profissional técnica de nível médio articulada, prevista no inciso I do caput do art. 36-B da Lei no 9.394, de 1996, e do itinerário de formação técnica e profissional do ensino médio, previsto no inciso V do caput do art. 36 da referida Lei.
[…]
§ 2o Para fins do disposto no inciso II do caput , ainda que o ensino médio e a educação profissional técnica de nível médio ou o itinerário de formação técnica e profissional sejam desenvolvidos com matrícula única em instituição pública de ensino, será admitido o duplo cômputo da matrícula” (Decreto nº10.656/2021).

A admissão da dupla matrícula já deixa claro que o Decreto que regulamenta o FUNDEB enfraquece a forma integrada de oferecimento da educação profissional de nível médio, que pressupõe “matrícula única para cada aluno”, como lemos no artigo 36-C da LDB, fortalecendo as formas de concomitância que, como mostramos, também terão que se adequar ao esquema BNCC + formação profissional.

Assim, o Decreto define que “em relação a instituições públicas de ensino, autarquias e fundações da administração indireta, conveniadas ou em parceria com a administração estadual ou distrital direta” será admitido, “para fins da distribuição dos recursos previstos no caput do art. 212-A da Constituição”,

“o cômputo das matrículas referentes à educação profissional técnica de nível médio articulada, prevista no inciso I do caput do art. 36-B da Lei nº 9.394, de 1996, e das matrículas relativas ao ensino médio oferecido com o itinerário de formação técnica e profissional, previsto no inciso V do caput do art. 36 da referida Lei” (Decreto nº 10.656/2021, art. 23, II).

Novamente vemos que se estabelece uma indistinção entre as formas de articulação da educação profissional com a educação básica e o itinerário formativo da Reforma do Ensino Médio.

A nova regulamentação do FUNDEB segue dizendo que “os convênios ou parcerias de que tratam o inciso II do caput serão estabelecidos prioritariamente com instituições especializadas na oferta de educação profissional e tecnológica” e definindo que “consideram-se instituições especializadas em educação profissional e tecnológica aquelas que tenham como finalidade principal, definida em seus atos constitutivos, atuar nessa modalidade educacional, como as da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica” (Decreto nº 10.656/2021, art. 23, II § 1 e 2).

Deste modo, fica bastante claro que os IFs passam a ser demandados para constituir convênios e parcerias com a administração estadual ou distrital direta para a ampliação das matrículas na educação profissional na forma concomitante intercomplementar e ofertando o itinerário de formação técnica e profissional prevista na Reforma do Ensino Médio.

Nesse sentido, o Decreto estabelece que:

“As instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica deverão informar, no mínimo, semestralmente à rede estadual de educação qual é sua capacidade de absorção de matrículas para cursos concomitantes de educação profissional técnica de nível médio na forma de convênio ou de parceria que implique transferência de recursos previstos no inciso II do § 3º do art. 7º da Lei nº 14.113, de 2020″ (Decreto nº 10.656/2021, art. 25).

As matrículas efetivadas deverão “ser registradas no Sistema de Informações da Educação Profissional e Tecnológica – Sistec”, e “as parcerias firmadas deverão ser disponibilizadas no sítio eletrônico da instituição da Rede Federal e conter, no mínimo, o número de matrículas pactuadas e efetivadas e o valor anual médio recebido por matrícula” (Decreto 10.656/2021, art. 25, § 1 e 2).

Essa mudança poderá ter grande impacto para a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, ainda mais no contexto de cortes, ajustes e intervenções, já que ela aponta para que os IFs desviem de seu propósito inicial: oferecer formação profissional, sobretudo, de nível médio, preferencialmente na forma integrada, para passar a cumprir o papel de instituição conveniada para o oferecimento de cursos profissionais, seja na forma da concomitância intercomplementar ou na forma do itinerário de formação técnica e profissional, separando a formação geral da formação profissional. O que se busca induzir, via essa regulamentação do FUNDEB, é que os IFs se especializem em oferecer apenas a formação profissional de nível médio para os estudantes na forma de convênio com as redes estaduais e distrital, que ficariam encarregadas da formação geral ou BNCC.


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