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Opinião

O ataque em Aracruz e a violência brutal direcionada para as escolas

Atirador de Aracruz fugindo de uma das escolas. Foto: registro das câmeras de segurança da CEPC.
Por Maria Helena Vigo, redação do Universidade à Esquerda
29 de novembro, 2022 Atualizado: 22:47

A última semana terminou marcada por mais um brutal massacre em escolas brasileiras. O ataque armado a duas escolas em Aracruz (ES) deixou quatro pessoas mortas e 12 feridas; cinco delas seguem internadas, estando a maioria em estado grave. 

O massacre foi perpretado por um adolescente de 16 anos, que entrou na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM) Primo Bitti e no Centro Educacional Praia de Coqueiral (CEPC) com roupas militares, máscara de caveira, uma suástica nazista em seu braço e duas armas: um revólver de calibre 38 e uma pistola ponto 40.

O atirador era ex-estudante da EEEFM Primo Bitti e havia deixado os estudos há alguns meses. Nessa escola, a entrada e os tiros se deram diretamente na sala dos professores, atingindo a maioria dos presentes no espaço. Três professoras da escola foram fatalmente vitimadas e outras seguem internadas.

No CEPC, o assassino entrou atirando em quem visse pela frente e acertou alguns estudantes. Uma estudante faleceu no momento do ataque.

O atirador se deslocou de uma escola a outra portando o veículo do pai, tenente da polícia militar. As duas armas utilizadas no massacre também pertenciam ao policial. 

Apesar de fugir dos locais dos crimes, o atirador foi identificado e preso posteriormente no mesmo dia, após esconder as evidências dos atos cometidos e se deslocar com a família para uma casa de praia. Em depoimento, confessou a autoria dos crimes e disse que o ataque foi planejado por ele durante dois anos. Ainda, alegou que teria aprendido a atirar com vídeos no Youtube.

As vítimas

Selena Zagrillo, 12 anos, era estudante do CEPC (Centro Educacional Praia de Coqueiral), faleceu na hora em que foi atingida. 

Foto: redes sociais

Maria da Penha de Melo Banhos, 48 anos, conhecida como Peinha, era formada em pedagogia e era professora há doze anos. Dava aulas de artes e atuava na alfabetização de crianças na escola há menos de um ano. Era evangélica, casada há 19 anos e deixa três filhos menores de 16 anos. A professora faleceu no local do atentado.

Foto: redes sociais

Cybelle Passos Bezerra Lara, 45, era professora de matemática e servidora efetiva estadual desde setembro de 2018. Em 2021 havia se tornado mestre em matemática pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), sua dissertação tratava do uso de números inteiros no ensino da matemática. Ela também faleceu no momento do ataque.

Foto: redes sociais

Flávia Amboss Merçon Leonardo, 38, estava internada em estado grave e faleceu no sábado, dia 26. Segundo os relatos dos presentes, ela teria sido o primeiro alvo do massacre. Flávia era professora de sociologia e fazia doutorado em Antropologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A professora havia se formado em Ciências Sociais na UFES, com mestrado na mesma instituição e era militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no estado.

Foto: redes sociais

O programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFES lamentou a morte de Flávia em nota:  

Flávia dedicou sua trajetória acadêmica aos estudos juntos às comunidades pesqueiras e tradicionais do Espírito Santo. Aguerrida e doce, sempre acreditou num mundo e num país mais justo e democrático, e sempre esteve à frente em busca dessa conquista. Foi uma pessoa dedicada em tudo que realizou. Uma pesquisadora brilhante e atenta, respeitosa e responsável. As Ciências Sociais perdem, hoje, uma pesquisadora com um futuro promissor, que contribuiu grandemente para pôr em pauta e debater as repercussões do desastre-crime na bacia do Rio Doce [o rompimento da barragem de Mariana, em 2015] a partir da perspectiva das populações atingidas. A sociedade perde um ser humano engajado num mundo melhor, mais digno e igualitário, e uma professora que vislumbrava no magistério um caminho de mudança. A comunidade acadêmica da UFES perde uma aluna exemplar e uma amiga.

Uma semana marcada por mortes nas escolas

O pai do assassino, policial militar, possuía uma publicação em seu instagram do livro “Mein kampf” (“Minha Luta”, em Alemão), de Hitler, e registros junto ao filho em manifestações bolsonaristas. Ambas as armas utilizadas pelo adolescente no massacre, pertenciam ao pai. Chama a atenção que na primeira escola em que entrou, o assassino foi direto para a sala dos professores. 

Este é mais um caso que marca um ódio e uma violência direta contra as instituições educativas e com ênfase nos docentes. Ataques e massacres, as diversas ameaças de chacinas cotidianas, manifestações racistas e nazistas e os crimes de feminicídio que se realizam no espaço escolar, não são marcadores ocasionais.

No dia anterior ao ataque de Aracruz, ocorreu o assassinato de uma professora em frente a creche em que trabalhava, em Florianópolis, Santa Catarina. Dessa vez, por um policial militar que cometeu um feminicídio por não aceitar o fim da relação que tinha com a professora Alessandra. Segundo relatos de familiares, o intuito do policial Orlando Seara era entrar dentro da creche, mas a professora impediu que o mesmo entrasse dentro do espaço e uma tragédia ainda maior ocorresse.

Alessandra, assassinada na quinta-feira, era uma professora que também participava das lutas pela educação do serviço público municipal de Florianópolis. Assim como Flávia, uma das professoras assassinadas na EEEFM Primo Bitti, era uma lutadora que tombou em um ataque materializado em balas em um espaço educativo.

Nos dois episódios há uma marca que diz sobre os efeitos do aumento do armamento da população. Há os respingos do que efetivamente significa a instituição Polícia Militar na sociedade brasileira e do tipo de violência que ela produz na formação daqueles que compõem seu efetivo e nos que estão nos seus arredores. Mas também há como marca nas duas tragédias o assassinato de mulheres ligadas às lutas e aos movimentos sociais em espaços educativos. Mesmo que o envolvimento delas com as lutas não tenha sido um fator de motivação direto dos assassinatos que ocorreram, este é um elemento que não pode ser ignorado nos fatos que marcaram a semana que passou e nos cobriram de luto e indignação.

Violência na escola ou dirigida para a escola?

O ataque de Aracruz soma-se a outros episódios terríveis de massacres em escolas que vêm ganhando corpo em nosso país nos últimos anos: Realengo (RJ), Suzano (SP), Saudades (SC), entre outros. 

Apenas neste ano, três ataques já haviam ocorrido: em maio três estudantes foram esfaqueados pelo colega de 14 anos em uma escola municipal na zona norte do Rio de Janeiro; em setembro, em uma escola cívico-militar em Barreiras (BA), uma estudante cadeirante acabou assassinada por um colega de 14 anos que invadiu a escola portando um revólver e armas brancas; e em outubro, em uma escola de Sobral (CE), três estudantes foram feridos por um colega de 15 anos com uma arma registrada em nome de um CAC (Colecionador, Atirador e Caçador).

Muito se debate, em uma perspectiva adaptacionista e conformista, sobre a necessidade de combater violências no ambiente escolar, abordando temáticas como bullying, promoção de um convívio saudável e de uma cultura da paz.

Tragédias como as que presenciamos na última semana são usadas como exemplo apelativo na hora de propagandear políticas, programas e projetos que se apresentam como fórmulas preventivas a esse tipo de situação. 

Entretanto, é preciso se perguntar se esta é uma questão de educação dos sujeitos que compõem a escola, ou se estes fenômenos são justamente um reflexo e uma repercussão de todas as violências contra a escola e aqueles que nela cumprem um papel educativo, aprofundados nos últimos anos.

Professores são, historicamente no Brasil, intensamente reprimidos com balas de borracha e gás de pimenta nas lutas por melhores condições de trabalho ou nas resistências contra os projetos de desmanche da educação e do serviço público.

Tanto que algumas publicações recentes em redes sociais equiparavam a assimetria das repressões sofridas por professores em manifestações com o tratamento complacente dado aos trancamentos criminosos realizados por bolsonaristas que reivindicam um golpe de estado após o resultado das eleições presidenciais ter sido favorável à Lula. Neste último caso, instituições como a polícia rodoviária e federal se mostraram não só coniventes, como parte de seu efetivo revelou-se gravemente envolvidos em atos antidemocráticos.

Em 2015, a polícia militar paranaense, sob ordens do então governador Beto Richa, deixou mais de 200 feridos por gás lacrimogêneo e balas de borracha, em uma manifestação contra mudanças no regime previdenciário de trabalhadores da educação. A ação ficou marcada como uma das mais violentas contra professores na história do estado. Foto: Joka Madruga/APP Sindicato.

Nunca foram vãs as inúmeras motivações que levaram os professores às ruas, afinal, nas últimas décadas só cresceu o desmonte das condições de trabalho destes. Isto se expressa no crescimento dos contratos temporários e precários; na intensificação da carga horária e na sobrecarga com atribuições que nada tem a ver com a tarefa educativa; e na ingerência que expropria o saber docente e as adequadas condições e liberdade para preparação de aulas. Todas essas políticas são violências contra as escolas, contra os docentes e contra o acesso dos estudantes a uma educação socialmente referenciada.

Soma-se a isso o crescente assédio ao pensamento crítico, intensificado nos últimos anos por meio de propostas como o Escola sem Partido e canais parlamentares de denúncia e assédio a qualquer sinal de politização expresso por docentes em sala de aula; amplamente impulsionados pelo bolsonarismo e outras frações da extrema-direita.

E por fim, reformas educacionais são empurradas goela abaixo, como o Novo Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular, com o intuito de aprofundar a formação escolar tecnicista e conformista, esvaziando paulatinamente os conhecimentos de base científica e crítica. 

Sem contar a adoção de escolas cívico-militares, em que se estabelece um modelo mais abertamente autoritário para essas reformas neoliberais.

Leia também: Assédio e militarização, o caso da escola Ildefonso, em Florianópolis

A educação, a categoria docente e o corpo estudantil têm sido alvo de todo o tipo de violência estrutural contido nas políticas que desmantelam e reconfiguram a escola.

Diante de todo esse cenário e do aprofundamento do grau de miséria da vida da classe trabalhadora brasileira, é preciso no mínimo estranhar quando se coloca a responsabilidade pela mitigação dessas manifestações de violência no interior da própria escola, como se ela fosse gerida e produzida ali mesmo. E não como mais um efeito de toda a violência que a nossa atual forma de organização da vida na sociedade perpetua contra o conjunto dos trabalhadores e contra a educação e os processos formativos como os conhecemos.

Essas brutalidades todas que são a intensificação dos massacres, ameaças nazistas, racistas e feminicídios nas escolas, também ressoam e são um alerta sobre os efeitos e consequências de todas as escolhas políticas que têm atacado discursivamente e objetivamente de forma cada vez mais intensa as escolas e a educação, principalmente a de perspectiva crítica e que busca contribuir com a emancipação dos sujeitos. 

Esses cenários repletos de tragédia nos enchem de dor e indignação, nos colocam perplexos diante de jovens que encontram como alternativa, diante da desumanização que o capitalismo nos impõe cotidianamente, o extermínio de seus próximos. Não podemos nos esquecer que essas são feridas abertas e produzidas também por uma violência de estado e do capital contra a nossa classe.

Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.


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