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Ministério de fachada: CPI revela o real gabinete na pandemia
Médicos, políticos e empresários foram os responsáveis pela política de combate à pandemia no Brasil
Conforme avançam as investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 sobre a atuação do governo federal na pandemia, torna-se cada vez mais evidente que as decisões sobre o enfrentamento do coronavírus foram tomadas por fora do Ministério da Saúde.
Apelidado de “gabinete paralelo” pelos integrantes da CPI, um grupo formado por médicos, políticos e empresários vêm aconselhando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pelo menos desde setembro do ano passado.
A existência desse grupo passou a ser cogitada quando o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta — a primeira testemunha ouvida pela CPI —, afirmou ter a impressão de que Bolsonaro tomava decisões sobre o combate à pandemia com base em conselhos externos à pasta.
Desde então, o tema passou a ser debatido em todas as oitivas a fim de revelar os interesses por trás desse grupo e o impacto desses “conselheiros” sobre a política tocada pelo governo federal.
Em um vídeo gravado no dia 8 de setembro de 2020, alguns dos principais suspeitos de compor o gabinete paralelo aparecem ao lado de Bolsonaro em uma reunião sobre a pandemia do Covid-19.
Essa reunião, ao que tudo indica, foi idealizada pelo atual deputado federal Osmar Terra (MDB), com a presença de integrantes do movimento Médicos Pela Vida — uma organização de médicos defensores do suposto “tratamento precoce”. Nela, o médico Paolo Zanotto sugeriu que o presidente promovesse um grupo de conselheiros externos ao Ministério da Saúde (MS).
“Talvez fosse importante montar um grupo, e a gente poderia ajudar a montar um ‘shadow board’, como se fosse um ‘shadow cabinet’. Esses indivíduos não precisariam ser expostos à popularidade”
disse Zanotto na reunião.
Além de Terra e Zanotto, outras suspeitas foram levantadas com base em participações em reuniões no Palácio do Planalto para tratar de temas como estratégia de enfrentamento ao Covid-19.
Em documentos da Casa Civil, são citadas pessoas que participaram dessas reuniões: a médica Nise Yamaguchi, o oftalmologista Antônio Jordão, o ex-assessor da Presidência Arthur Weintraub, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o assessor especial da Presidência Tercio Arnaud, o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, o assessor internacional da Presidência Filipe Martins, além do empresário Carlos Wizard e outros médicos ligados ao movimento Médicos Pela Vida.
Há uma série de indícios que suportam a tese de que através do aconselhamento direto ao presidente, esse grupo garantiu que o discurso de Bolsonaro estivesse alinhado aos seus próprios interesses políticos — como a defesa do “tratamento precoce” — com o uso do chamado “kit Covid”, composto por ivermectina, hidroxicloroquina e azitromicina — e o boicote à vacinação.
Como política pública de saúde, o governo federal investiu fortemente na difusão de medicamentos falsamente atribuídos como eficazes no tratamento de Covid-19, sendo o principal deles a hidroxicloroquina — que, além de não ser capaz de tratar a infecção viral, provocou mortes e complicações hepáticas em diversos pacientes devido ao seu uso indiscriminado.
Foram mobilizados ao menos cinco ministérios, uma estatal, dois conselhos da área econômica, Exército e Aeronáutica para distribuir a cloroquina em todo o território nacional. Apenas no Laboratório do Exército, mais de 3,2 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina foram fabricados — esforço que poderia ter sido feito em prol de garantir a compra e a distribuição das vacinas.
Além disso, o governo federal investiu na criação de uma plataforma virtual chamada TrateCov, que prometia ser um facilitador no diagnóstico e medicação de pacientes com Covid-19. Esta plataforma sugeria o tratamento com hidroxicloroquina inclusive para gestantes e crianças.
O TrateCov, ainda, está diretamente relacionado à crise do oxigênio no Amazonas (AM), ocorrida em janeiro. Enquanto o MS negligenciava os alertas de dificuldades de abastecimento da Secretaria de Estado de Saúde (SES) e da fornecedora de oxigênio no estado, a pasta promovia uma campanha de divulgação da plataforma.
Essa campanha foi liderada pela secretária de Gestão do Trabalho e da Educação da pasta, Mayra Pinheiro, apelidada de “capitã cloroquina”. Mayra esteve em Manaus no dia 4 de janeiro, às vésperas da explosão de casos e do colapso do sistema de saúde do estado.
Apoiadores do governo e o próprio presidente Jair Bolsonaro têm se utilizado do termo “CPI da cloroquina” como forma de deslegitimar as investigações sobre o assunto, sugerindo que o enfoque sobre a política de “tratamento precoce” seria um desvio dos objetivos da CPI.
Entretanto, com a divulgação de uma série de documentos, telefonemas e mensagens, tornou-se inegável que a decisão política pelo chamado “kit Covid” está mais atrelada a interesses privados do que a convicção de que o tratamento precoce existe de fato.
O movimento Médicos Pela Vida, que se organiza em torno da defesa do tratamento precoce, recebe apoio do grupo empresarial José Alves, proprietário do Centro Universitário Alves Faria (UniAlfa) e também da farmacêutica Vitamedic, uma das fabricantes da ivermectina no Brasil.
A relação entre o movimento e a farmacêutica não era explícita — o que configura falta ética de acordo com o Conselho Federal de Medicina por ser considerado conflito de interesses. Foi através da denúncia feita pelo jornalista independente Victor Hugo Viegas Silva que a relação entre a Vitamedic e o Médicos Pela Vida tornou-se pública. Em um curso disponibilizado apenas para associados, o CEO do grupo José Alves, Carlos Trindade, afirma que a plataforma utilizada pelo movimento é fornecida e administrada pelo grupo empresarial diretamente.
A venda de ivermectina tornou-se extremamente lucrativa para as farmacêuticas com a difusão do “tratamento precoce”. Para a Vitamedic, foi um salto de R$ 44,4 milhões em 2019 para R$ 409 milhões em 2020 com as vendas do vermífugo. Em relação à José Alves, a ivermectina foi responsável por 10% no faturamento de todo o grupo empresarial no ano passado.
Leia também: Farmacêuticas têm superfaturamento com medicamentos do “kit covid”
Em meio à pandemia, o lucro das farmacêuticas custou caríssimo para a população brasileira. Calculando com valores abaixo da média, 95 mil vidas foram perdidas devido a decisão do governo federal de priorizar a falsa ideia de tratamento precoce em detrimento da vacinação.
O Brasil caminha em direção ao marco de 500 mil mortes por Covid-19. Sabemos que este número, além de subcontabilizado pela falta de testes e problemas com a contabilização dos casos descobertos após a morte, o número não consegue por si só expressar a totalidade da devastação causada pela pandemia e sua longa duração.