Notícia
“Headband”: a tiara neuronal para medir o engajamento do estudante
Segundo os empresários, a ideia é buscar o máximo de “atenção plena” do aluno
Imagine poder mensurar e interferir no engajamento dos alunos através de uma análise cerebral em tempo real. A Somos Educação, braço de educação básica da Cogna, tem buscado esse objetivo através da headband, uma espécie de tiara neurotecnológica que permite medir ondas cerebrais de atenção dos alunos, em tempo real.
O suprassumo do utilitarismo tecnológico no campo mercantil educacional está materializado nesta tiara. Segundo a Somos, o equipamento permite usar neurociência para analisar os movimentos de maior concentração dos estudantes em diversos métodos de ensino (com gráficos, vídeos, músicas, lendo texto etc.).
A headband foi desenvolvida pela startup BrainCo, fundada no Harvard Innovation Lab, em conjunto com o MIT Media Lab. A Somos Educação firmou parceria com a BrainCo e tem exclusividade para o uso das ferramentas da startup no Brasil.
Mario Ghio, diretor presidente da Somos Educação, braço da Cogna, usa a headband durante a webconferência, em 15 set. 2020. Fonte: SOMOS Educação.
Para o conglomerado educacional, o equipamento pode ser útil para vários aspectos do processo de ensino. Pode ter uso mais imediato, permitindo ao professor analisar durante ou após a aula os momentos de maior interação e as metodologias “mais eficazes” para manter a atenção do aluno.
De forma mais ampla, a tecnologia permite reconfigurar os materiais de ensino, as apostilas, as metodologias e os métodos de ensino de forma a atrair maior atenção do aluno durante um período maior de tempo.
Segundo os empresários, a ideia é buscar o máximo de “atenção plena” do estudante.
A tiara faz parte de uma estratégia lançada pela Somos Educação, chamada de Science in Learning (Ciência na Aprendizagem), que busca aplicar os conhecimentos da neurociência ao ensino.
De acordo com Mario Ghio, diretor presidente da Somos Educação, vinculada a Cogna, a tecnologia permite ao professor avaliar objetivamente a eficácia de sua didática e entender o que funciona melhor para cada aluno.
“Não como forma de criticar o professor e colocar mais pressão em um ambiente já tensionado, mas propondo protocolos práticos baseados na ciência e ajudando-os a aplicá-los”, justifica Ghio.
Para permitir a visualização e acompanhamento dos dados gerados pela headband, a Somos firmou parceria com a Forebrain, empresa brasileira de neurociência aplicada ao marketing. Segundo o CEO da empresa, Billy Nascimento, “a Forebrain foi criada na UFRJ com o objetivo de usar a neurociência para entender o consumidor”.
A empresa criou um software que permite uma visualização mais simples dos dados coletados pela tiara, com foco no uso em sala de aula.
Para os empresários, é preciso aplicar na educação as ferramentas de neurociência utilizadas pelo marketing para compreender as reações do cérebro do consumidor a fim de estimular mais vendas. Afinal, de igual forma, a educação é hoje uma rentável mercadoria.
“E se a gente aplicasse esse conhecimento [do marketing] para entender o processo de aprendizado? (…) Assim, podemos desenvolver protocolos, pesquisas e instrumentos para entendê-lo melhor”, diz Billy.
Em uma aula virtual e gravada, por exemplo, é possível analisar as variações na atenção da turma e do aluno em particular.
Plataforma BrainEdu, da Forebrain, permite ao professor acompanhar o nível de atenção dos alunos durante a aula. Foto: Forebrain.
Durante a própria aula, o professor pode acompanhar o engajamento dos estudantes e usar essa informação para ficar alternando métodos quando percebe uma baixa atenção, de acordo com proposta dos empresários.
O programa Science in Learning, da Somos, fez parcerias com grupos de pesquisa, startups e gigantes da tecnologia. Além da Forebrain e da BrainCo, eles firmaram parceria com a rede nacional de Ciência para Educação (CpE), Google for Education, Lenovo Educação e Psychomeasure.
Teste em alunos
A headband já tinha sido adquirida pela Somos antes da pandemia do coronavírus. Com a pandemia, os testes que eram para começar em março iniciaram apenas em outubro de 2020. A tecnologia começou a ser experimentada em 21 alunos, no Colégio Anglo, da Somos Educação.
O objetivo é consolidar uma ferramenta que permita estudar o nível dos alunos ao longo da aula, para consolidar didáticas, apostilas e materiais de ensino mais produtivos e eficazes.
Com as análises iniciais, eles descobriram que um aluno da rede se concentra em média 6 minutos, durante uma aula de 50 minutos.
“Se a cada 6 minutos o professor trocar o que está fazendo, de uma aula expositiva para um debate, depois para um exercício, depois para uma outra dinâmica, ele vai sempre renovando a atenção do aluno”, propõe Ghio.
A ideia que passa é que a aula se torne cada vez mais um constante malabarismo de técnicas e ferramentas para manter a atenção do aluno a todo custo.
A iniciativa sempre trata das possibilidades de alterar a forma de exposição da aula, mas nunca trata propriamente dos conteúdos. A impressão é que o importante seria manter a atenção dos alunos, custe o que custar, independente do que for ofertado a eles com o nome de aula.
Para Ghio, o acompanhamento dos estudantes pelo professor, através da percepção, é um elemento fundamental para saber manusear o conteúdo da aula. Mas ele complementa: “imagina o poder que teríamos se ao invés de percepções, tivéssemos dados”.
Eles defendem que o professor muitas vezes não consegue fazer um acompanhamento maior de cada estudante devido às turmas grandes, muitas salas de aula para ministrar aulas. “É difícil conhecer o aluno pelo próprio nome (…) ainda mais avaliar sua saúde cognitiva”, defende Natália Mota, cofundadora da Psychomeasure.
Em parceria com a Psychomeasure, o projeto já desenvolveu uma formação de professores com base em “ciência para aprendizagem”. O “Curso de Estimulação Neurocognitiva em Sala de Aula” já é disponibilizado pela Somos. A Psychomeasure é uma empresa que tem como um de seus principais produtos um algoritmo de diagnóstico psiquiátrico acelerado, com destaque para a esquizofrenia, por meio da análise da fala de uma pessoa.
Pandemia e a aplicação do EaD
Para os empresários da Somos, a tecnologia se torna ainda mais pertinente neste momento de generalização do ensino a distância, durante a pandemia. De igual forma, a tecnologia pode ser útil para o ensino pós-pandemia, que “certamente será híbrido”, defende Ghio.
“É a transformação digital chegando na escola, o que tem se mostrado especialmente importante durante a pandemia”, afirma. Eles justificam que o objetivo é fazer com que o aluno consiga aprender mais conteúdos.
Segundo os envolvidos no projeto Science in Learning, o EaD demanda uma pedagogia totalmente diferente. Segundo Ricardo Schneider, chefe do departamento de ciência para aprendizagem, a aula EaD está para a aula presencial assim como o cinema está para o teatro.
“O que a gente faz hoje é teatro filmado, e teatro filmado não é cinema”, afirma.
A analogia é útil pois revela a função que o professor desempenha segundo os parâmetros mercadológicos: o de ator e não de autor.
Além do uso em aulas totalmente remotas, os empresários esperam usar os dados de análise para desenhar “com mais precisão” um possível modelo híbrido de educação para período pós-pandemia.
Segundo análise prévia, há uma diferença clara entre as variações de atenção nas aulas presenciais e remotas. “No online, os estudantes não têm picos de atenção no mesmo momento. Em sala de aula, esses picos tendem a se sincronizar. Precisamos entender o efeito disso”, diz Schneider.
“Quando as escolas eventualmente reabrirem, está claro para nós que teremos uma educação híbrida, com parte da turma fisicamente na sala e outra parte remota. Vamos conseguir fazer novos estudos comparativos”, afirma o executivo.
Marketing na educação
Assim como o marketing usa a neurociência para criar peças publicitárias que chamem mais a atenção dos consumidores, a Forebrain e a Somos buscam elaborar conteúdos multimídia mais efetivos.
“Nós conseguimos ver quatro indicadores que são essenciais para a aprendizagem: atenção, motivação, memorização e foco visual. Começamos a usar essas medidas para analisar os filmes educativos. Isso nos ajuda a entender a melhor forma, formato, roteiro e tipo de conteúdo que funciona melhor em vídeo”, diz Billy.
A teorização de fundo dessa aplicação tecnológica está no diagnóstico de que é preciso formar estudantes resilientes, aptos a trabalharem em diferentes ramos, de diferentes formas. Da mesma forma, eles diagnosticam uma dificuldade maior em focar e aprender no tempo atual, devido às inúmeras formas de retirar atenção.
O diretor da Somos defende a necessidade de avanço tecnológico na escola, comparando-a com o desenvolvimento tecnológico na área médica e hospitalar. Enquanto o hospital se desenvolveu intensamente desde o século XIX, a escola permaneceria a mesma. Há, então, um déficit na educação, argumenta Ghio.
Segundo ele, não se consegue “diagnosticar” os estudantes tal como se faz um diagnóstico de um paciente.
“Somos os mesmos professores do século XIX, com as mesmas habilidades”, defende Billy.
“Cientificidade”
Os formuladores da Science in Learning defendem a todo tempo o embasamento “científico” dessa estratégia. “Não é achismo”, diz Ricardo Schneider, cientista Chefe da Somos Educação.
“É um dispositivo que torna muito palpável a aplicação da ciência na sala de aula (…) Essa é uma das evidentes conquistas da ciência na educação”, defende Ricardo.
Ricardo destaca que os conteúdos digitais da Somos já são formados com base na coleta desses dados de como o cérebro do aluno funciona, em atenção, foco, motivação e esforço cognitivo. A headband, por ser facilmente transportada e utilizada, permite expandir o que antes se fazia em laboratórios.
“Novo teste de QI”
Como o professor não consegue acompanhar adequadamente o desenvolvimento de cada aluno, por ser remoto ou por ser encarregado de muitas turmas, a Psychomeasure sugere uma solução: avaliar a organização mental do aluno para ver se está adequada para a idade.
Natália Mota explica que uma forma de medir a complexidade da organização mental pode ser feita pela trajetória de palavras.
Um teste citado consiste em solicitar à criança uma memória e pedir para ela transcrever e representar a trajetória da memória. Com isso, computa-se os dados através de uma representação matemática (teoria de grafos), que possibilita medir as conectividades.
Quanto maior as conexões que a criança faz, maior seria a performance cognitiva dela, segundo Mota.
Teste para medir a complexidade da organização mental do aluno através da trajetória de palavras. Fonte: Psychomeasure.
Natália Mota relata que esse teste e outros (teste de QI, teoria da mente e teste de leitura) estão sendo realizados em escolas públicas, em Natal (RN).
Para ela, assim como se controla o desenvolvimento de peso e altura de bebês, através de um gráfico que mostra a tendência do índice de massa corporal (IMC), espera-se criar um gráfico de desenvolvimento cognitivo das crianças, com base na coleta de dados, para acompanhar o desenvolvimento da organização mental da criança conforme a idade.
O novo “gorila amestrado” de Taylor
Na primeira metade do século XX, com o auge do desenvolvimento industrial sob bases fordistas de produção e com a consequente simplificação do trabalho manual, Frederik Taylor considerava que um gorila amestrado poderia fazer o trabalho que era então efetuado pelo operário comum.
Se naquele contexto, o trabalhador era rebaixado a posição animalesca a ponto de ser comparado a um gorila, atualmente, com os elevados índices de desemprego e precarização, o trabalhador precisa ser formado para ser resiliente, flexível, atento, capaz de se adaptar e propor “saídas inovadoras e empreendedoras”.
Se de um lado, a educação serve para formar pessoas para um tipo de sociabilidade, por outro, ela apresenta um forte caráter mercadológico.
A educação é hoje uma clara esfera de valorização do capital, o que significa que esses desenvolvimentos tecnológicos representam uma necessidade imediata de produzir mercadorias vendáveis, aulas, metodologias, apostilas, materiais “de ensino” que sejam “eficazes”. Nesse quesito, a Somos Educação é um exemplo claro.
A Somos é a maior empresa de educação básica do Brasil. Segundo dados, a empresa está presente em todos os estados do Brasil e atende mais de 130 mil escolas e cerca de 30 milhões de alunos das redes pública e privada. A Somos atua através do mercado de editoras, dos sistemas de ensino, de rede de escolas de inglês, cursos preparatórios, entre outros.