Por que é tão indesejável admitir radicalmente a excepcionalidade na realização da atividade pedagógica em meio à pandemia?
por Carolina Picchetti Nascimento*, professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina para o UàE
O momento que vivemos é de excepcionalidade. Mas há que se considerar a excepcionalidade com responsabilidade. Sabemos que o momento que vivemos é de excepcionalidade. Mas precisamos manter moderação no seu tratamento. Claro, é um momento absolutamente de excepcionalidade. Mas a vida tem que seguir dentro da legalidade.
A quase banalidade do uso da palavra excepcionalidade, proclamada cotidianamente como “argumento” para se efetivar ações que, ao fim e ao cabo, visam reestabelecer o ordenamento (ou a sensação de ordem), tem intencionalmente ocultado o debate sobre quais são os conteúdos que de fato aceitamos chamar e tratar como “excepcionalidades” na realização da Atividade Pedagógica nesse contexto – objetivamente excepcional – de Pandemia. Basta anunciar uma proposta de ação que responda de forma verdadeiramente excepcional ao momento em que vivemos para que o critério da excepcionalidade seja, magicamente, transmutado para o critério da legalidade.
Pois, como instituições de ensino, parece que estamos vivendo um drama similar ao de Gregor Samsa [o protagonista do livro Metamorfose, de Kafka]. Um dia, Gregor acorda e descobre que se transformou em um imenso inseto. Desesperador, não é mesmo? Mas o desespero se realiza para Gregor somente quando ele olha para o relógio e nota que iria “chegar atrasado ao trabalho”. Gregor, em seu imenso corpo de inseto, fica aflito para se levantar da cama, colocar a roupa e pegar o trem, “porque estava atrasado para o trabalho”. É ele quem sustenta a família e paga a dívida dos pais. Seu chefe iria brigar com ele. A família dependia dele. Gregor precisava trabalhar e não podia chegar atrasado. É isso que o mobiliza a buscar meios para se levantar da cama em seu novo e imenso corpo de inseto. Kafka nos descreve, durante três longas e aflitivas páginas, o esforço profundo de Gregor para se levantar da cama. Porque não era fácil coordenar as patas, que não lhe obedeciam, e a sua carcaça que o fazia afundar na cama. Gregor esforça-se desesperadamente, com todo empenho e criatividade, para sair da cama. Mas o que mobiliza Gregor a sair da cama? Sim, ele estava atrasado e precisava trabalhar. Cumprir seu dever. Mas Gregor era um imenso inseto. Mas, ele estava atrasado para pegar o trem e precisava trabalhar.
Eis que, um dia, nós também acordamos profundamente transformados: passamos a ser instituições educacionais em uma sociedade no meio de uma pandemia (essa foi nossa metamorfose: os processos de ensino e de aprendizagem ocorrem hoje em uma sociedade em uma pandemia, a vida de todos nós está no meio de uma pandemia, em um país desgovernado…intencionalmente desgovernado que faz de tudo para ocultar a pandemia). Mas para entendermos o nosso próprio drama kafkaniano, precisamos nos perguntar o que é que está nos desesperando e o que nos mobiliza para “levantar da cama”. E parece que no geral, as nossas respostas (institucionais e, por vezes, pessoais) é similar a de Gregor: olhamos o calendário acadêmico e vimos desesperados que estamos atrasados para terminar o semestre, o ano letivo ou, simplesmente, o cumprimento de nossos créditos de ensino. Vejam que assim como Gregor é absolutamente legítimo o nosso esforço e desejo de “nos levantarmos” da cama, de buscarmos meios para mover o nosso novo corpo metamorfoseado (o esforço de fazermos algo em relação aos processos pedagógicos). Mas se a razão de nos levantarmos for “porque estamos atrasados com o semestre ou com o cumprimento da carga didática”, nós, como instituições e como docentes, não teremos compreendido – assim como Gregor Samsa não o compreendeu – qual é de fato o nosso problema. E a excepcionalidade seguirá sendo um pequeno discurso, facilmente metamorfoseado na grandiosidade da Legalidade.
Os problemas em realizarmos a atividade pedagógica, com o nosso novo corpo de “pandemia”, não é simplesmente a ausência do “encontro sensorial” para atuarmos com os processos de ensino e aprendizagem, mas o fato de estarmos em um cenário de amplificação e ampliação de instabilidades, incertezas e precarizações da vida (em suas esferas econômica, política, afetiva, física). Esse cenário traz para o cotidiano dos processos de ensino e de aprendizagem o pressuposto de que a realização de qualquer atividade pedagógica ocorrerá em uma condição de vida cuja regra é o imprevisível, o incerto. Parece, então, que seria menos angustiante para nosso “corpo metamorfoseado” de atividade pedagógica em meio à pandemia admitirmos a necessidade de suspendermos – como regra e não como exceção – o ensino e a aprendizagem de novos conhecimentos. Suspender essa aprendizagem significa admitirmos que ela não poderá se realizar plenamente nessas condições e, consequentemente, coloca-nos a responsabilidade de a realizarmos quando as condições permitirem. O contrário disso é a ação de validarmos o semestre ou o ano acadêmico mantendo uma crença e uma torcida, quase ingênuas, de que “com esforço” dará tudo certo. Ou, então, acreditarmos que “nós ensinaremos”, mas se, eventualmente, os estudantes não aprenderem, “ao menos fizemos nossa parte”. A consciência ficaria tranquila. Os cumprimentos legais devidamente alimentados. Só mesmo a excepcionalidade da vida seguiria intranquila, em cada gesto ou aceno de normalidade que dermos em direção a recuperar o atraso do semestre acadêmico ou de nossas cargas didáticas. Seria mais honesto, na realização das atividades pedagógicas, admitirmos o momento de suspensão de tudo que é regular e normal e seguirmos nos esforçando coletivamente para encontramos jeitos de, por meio de ações verdadeiramente excepcionais, seguirmos gerando motivos para que os estudantes encontrem sentido em seguir estudando no mundo de pseudo-normalidades em que vivemos.
*As opiniões aqui expressas são de responsabilidade da autora e podem não representar a opinião do jornal.
Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.