De Barnabé Medeiros especial para o UàE
História Vivida
Jânio Quadros havia renunciado à Presidência, enquanto o vice-presidente, Jango Goulart, estava na China. Os ministros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica vetaram a posse de Jango na Presidência. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola, mandou ocupar as emissoras de rádio e, no domingo, 27 de agosto, entrava no ar a Cadeia da Legalidade. Todos nós acompanhávamos a crise político pelo rádio, especialmente pelos radinhos a pilha, novidade recém-chegada do Japão.
Confira também a parte 1 de 1961 – O golpe fracassado
1961 – O golpe fracassado – 2
Os discursos de Brizola ecoavam praticamente de todas as casas de Porto Alegre, várias delas com o rádio no último volume. Além do governador, o que se podia ouvir eram locutores de voz indignada, personalidades declarando apoio a Jango, marchas marciais e o “Hino da Legalidade”, que havia sido composto às pressas, incansável em seu estribilho:
Avante brasileiros de pé,
Unidos pela liberdade,
Marchemos todos juntos com a bandeira
Que prega a lealdade
Após dois dias daquele bombardeio, até meu pai havia mudado de opinião: era preciso cumprir a Constituição e dar posse ao vice-presidente.
Foi naqueles dias que a palavra “gorila”, como sinônimo de militar golpista, entrou para o meu vocabulário. Nos anos seguintes, o uso desse termo seria cada vez mais comum e popular, como pude comprovar certa vez, ao ver o trailer de um desses filmes de aventura ambientado na África. Assim que apareceu o título na tela, “Jim das selvas na terra dos gorilas”, um gaiato gritou:
– É o Brasil! É o Brasil!
O cinema inteiro caiu na gargalhada.
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O Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, foi transformado em cidadela armada. As janelas eram guarnecidas com sacos de areia, sobre os quais metralhadoras apontavam para a rua. Civis armados entravam e saíam. Homens da Brigada Militar ocupavam posições estratégicas nos arredores da Praça da Matriz, em frente ao Palácio. De um estúdio montado no porão do Piratini saíam as transmissões da Cadeia da Legalidade, cujo som, através de alto-falantes, chegava até a praça. Lá dentro, metralhadora a tiracolo, Brizola era a figura mais frequente a ocupar o microfone.
Na Avenida Borges de Medeiros, ao lado do cine Vitória, montou-se um posto para alistar voluntários dispostos a “combater pela legalidade”. Esse centro de recrutamento estava instalado numa edificação muito estranha: uma estrutura de vidro, aço e madeira, de formato arredondado, que parecia equilibrada sobre uma base instável. Construída para ser um pavilhão de exposições, a coisa passou a ser conhecida como “o mata-borrão”, apelido que melhor definia seu formato.
Em frente ao “mata-borrão” aglomeravam-se os voluntários, à espera das armas que, se dizia, Brizola mandaria distribuir. Muitos, vestindo bombacha e poncho, faca prateada enfiada no cinto, estavam literalmente paramentados de gaúcho, para reviver antigas façanhas: a revolução de 30, os farroupilhas… Na avenida, marchavam “batalhões” de voluntários, igualmente pedindo armas: motorneiros e condutores dos bondes, universitários, mulheres, ferroviários, pessoal dos Centros de Tradição Gaúcha, metalúrgicos. A Cadeia da Legalidade mostrava sua competência.
Na segunda-feira, 28 de agosto, tanques do Exército tomaram posição na cidade, não se sabia bem para quê, nem contra quem. Dizia-se que a Força Aérea ia bombardear o Palácio Piratini. De fato, como se comprovou mais tarde, o comandante local da Aeronáutica recebeu a ordem de atacar, o que só não aconteceu porque os sargentos da base aérea desarmaram os aviões. Brizola, em discurso pelo rádio, prometia resistir:
– Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! Esta rádio não será silenciada sem balas.
Na Praça da Matriz, grupos gritavam por “armas para o povo”. Algumas das milícias de voluntários foram armadas pelo governo gaúcho, que havia requisitado o estoque da fábrica de armas Taurus. Surgiam barricadas: bancos e automóveis virados para impedir a passagem dos tanques. E não faltaram nem mesmo gaúchos à cavalo, chegados do interior.
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Naquela segunda-feira, fiquei sabendo que não voltaria às aulas tão cedo: Brizola mandara fechar as escolas até as coisas se acalmarem. Foi uma semana de férias, a que se somaria o feriado de 7 de setembro, na semana seguinte. Muitas famílias fugiram de Porto Alegre naqueles dias, temendo que o agravamento da crise resultasse de fato em bombardeio e combates de rua.
Naturalmente, deixar Porto Alegre nem passou pela cabeça de meu pai. Não teríamos para onde ir e, ao mesmo tempo, quem iria pensar em bombardear onde morávamos? Nessa época, minha família havia se mudado para o Cantão, uma favela (ou vila popular, como até hoje se diz por lá) na periferia da cidade. Assim, tirando as escolas fechadas, a vida prosseguiu normalmente. Ou quase normalmente. Começou a faltar leite nos arredores de onde nós morávamos. Para garantir nosso abastecimento, eu precisava enfrentar a bicha do leite. “Bicha”, em Porto Alegre, era sinônimo de fila, como também se dizia em Portugal. Faltou gasolina na cidade.
Lembro que nessa época meu pai comprava regularmente a revista “O Cruzeiro” pela qual eu também me informava dos acontecimentos da semana. Apesar de ter apenas 14 anos, gostava de ler os artigos de David Nasser, com seus títulos enormes, chamativos. Um dos que mais me marcou pregava: “Falta alguém em Nuremberg”, referência ao torturador do Estado Novo, Filinto Müller, eleito senador pelo Mato Grosso. Outro título que me marcou foi “Pior do que 10 geadas”, sobre o governador do Paraná, Moises Lupion, acusado de uma série de falcatruas. Curiosamente, outro dia topei no noticiário com o deputado bolsonarista pelo Paraná, Pedro Lupion, que vem a ser bisneto do velho Lupion.
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Sem aulas, aproveitei para zanzar pela cidade, informando-me com os olhos e ouvidos sobre a evolução da crise política. Eu acompanhava tudo pelo rádio, pelos auto-falantes da Praça da Matriz, pelas notícias que circulavam de boca em boca.
Na mesma segunda-feira em que Brizola ameaçava receber à bala qualquer tentativa de desalojá-lo de sua cidadela, o comandante do III Exército, com sede em Porto Alegre, dirigiu-se ao Palácio Piratini. O general José Machado Lopes vinha em paz e anunciou ao governador que não cumpriria a ordem de atacar o Palácio. Disse que, com base na Constituição da República, não via motivos para uma medida tão drástica.
Essa aparente neutralidade do III Exército durou muito pouco. Oficialmente demitido de seu comando e chamado ao Ministério, onde fatalmente seria preso, Lopes compreendeu que o momento não era mais de neutralidade. Na quarta-feira, 30 de agosto, da janela do Palácio Piratini, ouviu a multidão aclamá-lo:
– Lopes! Lopes! Lopes!
Se havia ainda alguma indecisão, ela ali se evaporou. Transformado em “general do povo”, Machado Lopes rapidamente passou à ofensiva. Para evitar que os aviões bombardeassem Porto Alegre, mandou ocupar a base aérea de Canoas e destituir seu comandante. O general assumiu o comando do que veio a se chamar Forças Armadas do Sul, reunindo Exército, Aeronáutica e Brigada Militar, com mais de 50 mil homens em armas e a mais poderosa artilharia do país.
Enquanto isso, fora do Rio Grande multiplicavam-se os apoios à posse de Jango, inclusive de militares e, entre estes, oficiais de alta patente. Eram os chamados “militares nacionalistas”, preocupados em que tivéssemos um projeto de país, soberano e compatível com o tamanho, população e recursos de que o Brasil dispõe. Soldados assim hoje parecem ter se evaporado, desaparecido sem deixar rastos.
Em Goiás, o governador Mauro Borges juntou-se à resistência, transformando Goiânia em “cidade rebelada”. No Rio de Janeiro, apesar das prisões e da censura à imprensa, o governador Carlos Lacerda, principal arauto do golpe, não conseguia evitar as greves e manifestações populares em defesa da Constituição. A Cadeia da Legalidade ganhava cada vez mais audiência Brasil afora, com antenas de ondas curtas, inclusive dos rádios de pilha, apontando para o sul.
Daí em diante, seria apenas questão de tempo para o fracasso completo do golpe.
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João Goulart, em vez de voltar ao Brasil, seguiu para Montevidéu, onde aguardou o desfecho da crise. Lá foi encontrá-lo uma comissão de políticos, para lhe propor uma “saída honrosa”, que preservasse sua posse e, ao mesmo tempo, evitasse humilhar os ministros militares. Ele assumiria, mas com poderes limitados, em um regime parlamentarista. Jango aceitou, embora já estivesse com o jogo ganho.
Na volta ao Brasil, ao passar por Porto Alegre, foi vaiado pelo público que ainda se encontrava na Praça da Matriz. Quem estava ali não se conformava com a atitude do presidente, com sua indecisão, com o medo que demonstrava em enfrentar a cúpula militar e cortar o golpismo pela raiz. Nesse dia, ouvi numa roda de conversas um comentário que até hoje me parece a melhor definição para o Parlamentarismo prestes a ser implantado no Brasil e que remetia ao fato de João Goulart mancar ligeiramente:
– É uma solução manca, para um presidente manco!
Esse regime, com igual mordacidade, foi assim cantado pelo compositor Juca Chaves:
Constituição, constituição
acabou-se que tormento,
já temos o parlamento,
falta o rei, que papelão!
Começava ali uma sequência de acontecimentos que, nos anos seguintes, mudaria completamente o meu país e a vida que eu imaginava levar quando me tornasse adulto. Esse golpe fracassado foi a primeira de uma série de loucuras que marcaria as décadas seguintes
Barnabé Medeiros é jornalista
Texto baseado no livro “1964 – O golpe que marcou a ferro uma geração”, do mesmo autor que assina esta narrativa. O livro pode ser baixado gratuitamente através do link https://www.editoranavegando.com/livro-ditadura-militar. Para adquirir a versão impressa acesse o site da Editora Nova Alexandria ou de livrarias que vendem pela Internet.