De Barnabé Medeiros especial para o UàE
História Vivida
Há muita gente apostado que o ano que vem o Brasil vai viver um golpe (ou pelo menos uma tentativa de golpe), dessa vez seguindo o modelo Bolívia 2019. Ante tal perspectiva, vale a pena revisitar golpes do passado e algumas das tentativas de golpe. Este é o caso da de 1961, que em agosto completará 60 anos e que eu acompanhei ao vivo.
1961 – O golpe fracassado – I
Os radinhos de pilha haviam invadido Porto Alegre. Viraram moda entre os adolescentes de classe média, que gostavam muito dos pequenos fones que se encaixavam no ouvido, novidade que permitia escutar música às escondidas.
Era o que habitualmente fazia o Caveirinha, garoto alto, com um rosto magro que lhe valera o apelido. Era o mais destacado representante da “turma do fundão”, alunos que ficavam no fundo da sala, fazendo qualquer coisa que não tivesse nada a ver com a aula, na nossa classe da 2ª série ginasial, do Colégio Estadual Inácio Montanha. Essa escola até hoje me remete a um dos episódios mais marcantes da História do Brasil e que, no meu caso, tem a ver com Caveirinha.
Certo dia, usando um cachecol como proteção contra o frio de agosto e que também servia para esconder o fio do fone de ouvido, Caveirinha escutava música em plena aula de inglês. De repente, pálido, o cachecol caído deixando ver um fio pendurado no ouvido, ele se levanta e anuncia com voz grave:
– Professora, o presidente renunciou!
Era 25 de agosto de 1961. Jânio Quadros, possivelmente o primeiro desequilibrado a ser eleito para a presidência do Brasil, havia renunciado, após apenas sete meses de governo. Seu curto mandato foi também o mais folclórico da nossa História. Uma de suas esquisitices foi instituir o que ficou conhecido como “governo dos bilhetinhos”, mandando diariamente bilhetes para os ministros dizendo o que queria que fosse feito. Outras foram proibir o uso de biquini nas praias e piscinas de “todo o território nacional” e criar uma espécie de uniforme para os funcionários federais, pejorativamente apelidado de “pijânio”.
Não há dúvida de que Jânio era um mestre em matéria de comunicação. Com medidas como essas ele conseguia estar diariamente em destaque nas primeiras páginas dos jornais. Vale aqui a velha anedota do louco, sentado no muro do hospício, que com uma ideia muito simples livrou o motorista de ficar sem um dos pneus em seu carro: “Eu sou louco, mas não sou burro!”
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Com a renúncia de Jânio Quadros, tivemos um feriado inesperado. Os quartéis estavam em prontidão e ninguém sabia o que iria acontecer, ainda mais no Rio Grande do Sul, Estado do vice-presidente, João Goulart, e que era governado por seu cunhado, Leonel Brizola. Fui para casa onde encontrei meu pai grudado ao rádio. Já havia notícias de que os ministros militares não deixariam Jango Goulart assumir, coisa com a qual meu pai concordava. Ele era janista. Daqueles que não deixavam de usar o alfinete de lapela em forma de vassoura, símbolo da campanha que levara Jânio Quadros à Presidência do Brasil.
Em 1961, poucas casas de Porto Alegre tinham televisão e mesmo as famílias que tinham não abandonavam o hábito de ouvir rádio. Através dele chegavam música, notícias, novelas, programas de auditório. Um samba que fazia sucesso dá uma boa ideia do que era ter TV em casa:
Alegria de pobre é fazer neném,
Televisão de pobre é janela,
É janela de trem.
Além das emissoras de Porto Alegre, minha família ouvia a Rádio Nacional, do Rio, através de ondas curtas, como também a Voz da América e a BBC, ambas engajadas na batalha radiofônica da guerra fria. Tinham como adversárias as rádios Moscou e Pequim, que eu só passaria a ouvir alguns anos mais tarde.
Naquele 1961, o mundo vivia o período mais agudo da guerra fria e no Brasil a renúncia de Jânio desencadearia uma guerra quase quente, na qual o rádio seria uma das mais importantes frentes de luta
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O governador Brizola soube da renúncia de Jânio Quadros pouco antes de meu colega Caveirinha escutar a notícia em seu radinho japonês. Ele havia acordado naquela sexta-feira, 25 de agosto, com maus pressentimentos, pois naquele momento, seu cunhado, o vice-presidente, estava na China comunista, pais com o qual o Brasil sequer tinha relações diplomáticas. Quando soube da renúncia, Brizola rapidamente compreendeu que Jânio estava tramando algo muito sério. Se não fosse isso, por que então despachar Jango para a China, em suposta missão comercial, e renunciar enquanto seu sucessor estava lá?
Principal nome do antigo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) Jango Goulart era fortemente apoiado pelos sindicatos de trabalhadores, o que lhe dava uma aura de esquerda muito malvista pela direita militar, que chegara ao poder com Jânio Quadros. Pior do que isso, ele era o herdeiro político de Getúlio Vargas, o presidente que se suicidara em 1954, quando estes mesmos militares tentaram derrubá-lo. Portanto, com a renúncia de Jânio, o getulismo estava prestes a voltar ao poder, perspectiva inadmissível para os militares. Jango era um estranho nesse ninho. Havia sido eleito porque na época votava-se separadamente para presidente e vice-presidente, o que havia gerado a estranha combinação de termos um presidente de direita e um vice de esquerda. Era óbvio que com essa renúncia, o objetivo de Jânio era ser reconduzido ao poder, mas dessa vez com plenos poderes.
Conhecendo muito bem toda essa situação, Brizola concluiu que era preciso agir rápido. Foi o que fez. Requisitou os transmissores da Rádio Gaúcha, mandou ocupar a Rádio Guaíba e a Companhia Telefônica. No domingo, 27 de agosto, já estava formada a “Cadeia da Legalidade”, rede de emissoras que defendia a posse imediata de João Goulart na Presidência. Reunia cerca de 150 emissoras gaúchas e chegava a todo o país, através de transmissões em ondas curtas. No Rio Grande do Sul, a emissora que não aderisse era fechada pela Brigada Militar, como até hoje é chamada a PM gaúcha.
Os radinhos de pilha, como aquele em que meu colega Caveirinha escutara a notícia da renúncia, tornaram-se essenciais para quem queria acompanhar os desdobramentos da crise minuto a minuto. Pode-se dizer que o rádio em geral e os radinhos de pilha em particular cumpriram o mesmo papel que hoje exercem whatsapp, twitter e seus congêneres: o de moldar uma grande fatia da opinião pública. Saber disso e compreender a necessidade de sair na frente foi o grande mérito de Brizola.
Continua em 09/08
Barnabé Medeiros é jornalista
Texto baseado no livro 1964 – O golpe que marcou a Ferro uma Geração, do mesmo autor dessa narrativa. O livro, lançado em 2014, hoje pode ser baixado gratuitamente pelo no link https://www.editoranavegando.com/livro-ditadura-militar. Para comprar o livro impresso acesse 1964: O golpe que marcou a ferro uma geração – Editora Nova Alexandria ou portais de livrarias que vendem pela Internet.