Maria Alice de Carvalho e Martim Campos
A adoção do ensino remoto nas universidades brasileiras — adotado de maneira mais ou menos autoritária, com maior ou menor participação das comunidades universitárias — teve como consequência em todas as instituições algo em comum: a flexibilização do ensino.
Em algumas universidades, um ano de formação universitária foi reduzido a meros cinco meses de ensino remoto. Em muitos casos, a presença em aula, espaço antes de formulação coletiva de debates e apreensão do conhecimento, deixou de ser obrigatória.
De maneira geral, a leitura de importantes obras que se encontravam em acervo das Bibliotecas Universitárias foi substituída por artigos disponíveis online, quando não por podcasts e vídeos no YouTube. Trabalhos de pesquisa que antes careciam de saída de campo e observação, hoje são substituídos por pequenas atividades avaliativas ou simulação de observação — como assistir a um filme ou documentário.
As atividades de estágio foram sendo substituídas pelas mais diversas “alternativas” possíveis Brasil a fora. As práticas em laboratório, tão caras para o desenvolvimento de aprendizagem e de pesquisas, hoje ocorrem por simulações em softwares, por visualização de imagens, ou pela leitura de algum experimento que o professor da disciplina já tenha realizado.
Com todas essas adaptações e transposições de algo fundamental para meros simulacros, o ensino remoto trouxe junto de si algo de muito drástico para as universidades: a ruptura com o que conhecíamos por formação universitária.
Essa flexibilização generalizada com as reduções de carga horária, com a precarização de processos educativos e práticas necessárias para uma formação abrangente implica na ideia de que uma educação sem dedicação e pouco mediada por professores é possível. De que um saber que não perpassa por uma cultura compartilhada da experiência com outros colegas, poderia ainda assim ser chamada de ensino.
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Com essas alterações na estrutura da formação universitária, 2020 marca uma ruptura. Não apenas por ser o ano da pandemia e da nova onda da crise econômica mundial, mas por condicionar, a uma geração de estudantes, um processo de formação inócua, repulsiva e anti-universitária.
Em linhas gerais, as reitorias e grande parte a dos professores universitários optaram por ceder às pressões da burguesia e de seus setores para um retorno à “normalidade”. A posição que deveria se esperar desses setores era totalmente inversa: seria a de prezar por aquilo que uma formação universitária deve abarcar. Esperava-se que intelectuais não cedessem tão facilmente à tal rebaixamento.
Mas o que se viu foi reitores tentando aplicar da forma mais rápida possível o ensino remoto, sem qualquer reflexão crítica, e professores realizando cursinhos de plataformas e adequação de planos de ensino para o mais simplório que se possa imaginar. Da parte de alguns, houve uma adequação passiva — “é o que temos”, diziam eles —, da parte de outros uma postura ativa na implementação disso que tanto nos forçam a chamar de ensino.
Quanto às entidades estudantis, responsáveis por pensar questões que vão para além dos interesses imediatos, também houve uma estagnação e até mesmo reivindicação pela flexibilização do ensino. Os argumentos eram de que as aulas deveriam ser o mais flexível possível para aqueles que possuem pouco acesso (as famosas atividades assíncronas); de que o calendário deveria continuar para que os estudantes mais pobres pudessem se formar logo e irem trabalhar para ganhar a vida; que o principal era garantir o acesso para que esses estudantes mais pobres pudessem se adaptar à modalidade a distância — independente do tipo de formação que daí derivasse.
Pensando particularmente nos estudantes pobres e de baixa renda, um conhecimento rigoroso e uma formação complexa estão no centro das políticas históricas de permanência estudantil. Afinal, as juventudes que lutaram por esse reconhecimento não o fizeram para que o pobre apenas entre na universidade e consiga permanecer para pegar seu diploma. Mas, ao contrário, para que entre e tenha todas as condições necessárias garantidas para se dedicar aos estudos, à pesquisa, à vida universitária, às relações culturais e artísticas que o formam enquanto intelectual, pesquisador e como ser humano.
Essa reivindicação por uma flexibilização, por uma formação “mais fácil” para garantir o acesso, tem servido tanto para justificar uma suposta defesa da permanência estudantil quanto tem servido como argumento para as grandes empresas educacionais que nesse período de crise geram uma maior divisão no ensino: fica mais escancarada a venda de uma educação para os pobres e uma educação para os ricos; aos primeiros são oferecidos cursos a distância, com toda a flexibilidade possível, enquanto aos segundos são resguardados cursos presenciais de maior rigor.
Com essas questões que emergem nesse período de pandemia, fica evidente que aqueles que se comprometem com a universidade pública deveriam compreender de que esta é um espaço que oferece algo a mais do que apenas uma possibilidade de emprego ajustada às condições do mercado. Ela tem o compromisso de oferecer uma formação ampla e rigorosa, ou seja, não condicionada a finalidade ou com uma serventia do saber.
Para além das respostas imediatas que buscamos, mas que aposta em saberes universais e que podem nos ser úteis em diferentes momentos da história dos quais não temos uma ideia precisa de como serão.
A formação universitária não deve curvar-se às vontades individualizadas e pressões mercantis, mas deve estar em compromisso com o tipo de experiência coletiva que conseguimos construir, de acordo com uma formação do mais alto nível e rigor aos sujeitos que decidem passar parte de sua vida nesse espaço, de acordo com um comprometimento com a sociedade que deposita nesta instituição suas questões para serem pensadas com o mais avançado conhecimento possível.
O pior que as lutas na universidade podem fazer agora é deixar de lado esse aspecto. Pois se se perde de vista essas questões, perde-se junto aquilo que conhecemos por Universidade.
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