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Sofrimento em tempos de pandemia: “identifique-se com seu sintoma sem nenhuma vergonha!”

Por Amanda Alexandroni, redação do Universidade à Esquerda
20 de maio, 2020 Atualizado: 20:27

Imagem: Rascunho de Pablo Picasso para a obra “Guernica”.

Texto em coautoria com Giulia Molossi.

O Brasil segue batendo trágicos recordes em termos de mortos pelo novo coronavírus. Ontem, dia 19 de maio, foram mais de mil mortes em 24 horas causadas pelo vírus e pela política do Governo. Em nosso território já são totalizados quase 20 mil óbitos registrados pela Covid-19. Isso se estabelecermos nosso parâmetro pelos números oficiais; porém, sabemos que em termos reais os dados são ainda mais assustadores. O que sabemos é que já são muitos milhares de familiares vivendo processos de luto sem poder elaborá-lo nas cerimônias antes comuns de despedida, nas quais coletivamente assimila-se o fim da vida.

Além dos casos levados a óbito, o conjunto da sociedade atravessa um outro processo difícil relacionado à temeridade de contágio e à transformação diária de nossas atividades mais elementares. Como se não bastasse o difícil momento atravessado enquanto humanidade, a crise do nosso país tem sido gestada pela política do “E daí?”, encabeçada pelo Governo de Jair Bolsonaro. 

Diante desse cenário de intenso sofrimento, no qual imaginamos como poderão ser relatadas as histórias desse catastrófico momento, somos cotidianamente confrontados com o tema de saúde mental. Depois da chegada do vírus COVID-19 ao Brasil e com o anúncio de que o confinamento é a melhor forma de lidar com a contenção da disseminação do vírus, diversos psicólogos foram convocados por jornais, revistas e programas online para responder à sociedade como fica a “saúde mental” das pessoas em meio ao isolamento. Não obstante vemos diversos Departamentos de Psicologia das Universidades pelo país publicando manuais de saúde mental e de atendimento online. Porém, como tratar das s dores cuja expressão não pode ser diagnosticada pelo registro de anticorpos no organismo?

É evidente que não podemos desconsiderar os impactos a nível psicológico de toda essa crise econômica e sanitária. Há uma transformação profunda em nossa rotina naquilo que estabelece a “normalidade” do dia-a-dia para nós. Variação gerada não apenas pelo risco de contágio no acesso a serviços usuais de saúde mental, mas também pelas atividades que apresentavam um contraponto de amparo cotidiano, como lazeres ao ar livre e convívio social. Entretanto, a depender da abordagem no trato dos impactos da pandemia na saúde mental, podemos cair em certos impasses que limitam nossa leitura da realidade. Pois, além de tudo, a crise econômica, que coincidiu com a chegada do vírus ao nosso país, é um elemento que não é secundário nas análises sobre o sofrimento.

Além disso, a normalização do conceito de saúde mental já nos soa incômodo, pois pressupõe-se, assim, a existência em si de uma organização psíquica saudável, ou de processos, como os da medicina, de cura. Portanto, a discussão nesses termos já coloca um limite ao debate e o imperativo de cuidado e reparação dessa aparente instabilidade nos sentimentos. 

Qual o parâmetro dessa saúde? Uma das características fundamentais do sofrimento é o certo nível de indeterminabilidade no qual ele se insere. Podemos estabelecer certas narrativas que constroem uma estrutura consistente acerca das nossas dores [2]. Não à toa filmes, livros e músicas nos ajudam a reconhecer nossas histórias na intimidade de outros e atravessar períodos de dor. Por meio de um processo de identificação com essas produções artísticas somos capazes de apresentar outra narrativa, o que nos coloca em outra posição frente a nosso sofrimento. Esse caminho é fundamental para atravessar processos que apresentar-se-iam como “os problemas psicológicos”. Contudo, precisamos ter ressalvas quanto às abordagens que geram uma identificação muito imediata entre causa-efeito da dor.

Um exemplo latente que transpõe a temática da saúde mental como primeira para mascarar o debate político é se colocar contra o Ensino à Distância (EaD) porque os estudantes estão com a saúde mental fragilizada e, por isso, a implementação da EaD aprofundaria o sofrimento. Contudo, essa forma de justificativa é extremamente frágil, pois encobre toda a problemática que está na essência do problema, como a mercantilização da educação e o aprofundamento da fragilização da educação em transmitir aos jovens o acesso à cultura e ao ensino de qualidade.

Um desses manuais de psicologia que debatem a saúde mental em meio à pandemia, publicado pela Fiocruz [1], tentaria traçar os principais sentimentos que surgiriam na pandemia, como desamparo, tristeza, tédio, solidão e medo. As estratégias de cuidado psíquico para esses casos seriam, resumidamente, evitar as situações que causam desconforto, evitar o uso de drogas, investir em exercícios, limitar o acompanhamento das coberturas midiáticas e manter uma relação social e de solidariedade. 

Em primeiro lugar, o tema da saúde mental tornou-se um certo símbolo de identificação mecânica entre determinadas políticas e seus efeitos. É comum relacionar transformações conjunturais imediatamente com algum impacto psicológico, realizando, assim, uma simplificação de dois processos que exigem um esforço explicativo maior. Podemos nomear isso de banalização, pois dificilmente esse tipo de análise consegue apresentar as determinações de causa e efeito para além de: certa política irá ter impacto na saúde mental. 

Ora, o tema do sofrimento rende debates no campo da psicologia, filosofia e sociologia “desde que o samba é samba”. Até mesmo os gregos já exerciam práticas de autocuidado. Marx dedicou obra ao fenômeno do suicídio, caracterizando-o como um fenômeno característico da produção da vida na sociedade burguesa, pois a análise da vida privada e da vida em sociedade não são polos de antagonismos reais. Enfim, são muitos os teóricos que visam explicar, sob diferentes noções ontológicas e epistemológicas, o que nos faz sofrer e como respondemos às adversidades, debate que não temos a menor pretensão de esgotar com este texto [2]. Apontamos apenas que não é tão primário compreender de que forma o ser humano responde a nível psicológico quando tensionado por certas políticas. 

Por outro lado, na aparência desses conceitos, podemos até concordar que reações (nome apresentado pelo manual de psicologia da Fiocruz) generalizadas como medo, desamparo e tristeza sejam sentimentos predominantes neste período de isolamento e insegurança em relação ao futuro. Porém, essas generalizações das formas de sofrer não explicam tudo e nem poderiam, porque a narrativa de um sofrimento é muito mais complexa e envolve, além da experiência do que vivemos em comum, processos que são vividos diferentemente por cada um. Por isso, a estratégia que a psicologia propõe para lidar com elas é extremamente limitada, pois ao invés de dar espaço para as vozes, na tentativa de dar respostas rápidas a fenômenos complexos, busca preencher o sujeito de respostas ao invés de perguntas, seguindo, assim, a tradição dos grandes manuais de “transtornos mentais”.

A título de ilustração [3], analisemos o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM), cuja primeira versão foi publicada em 1952 e que hoje já está em sua quinta versão, sendo o mais recente de 2013. Esse manual é utilizado por psicólogos e psiquiatras para guiar a compreensão diagnóstica no campo da saúde mental. Se por um lado o manual surge como forma de estabelecer um campo de diálogo entre organicistas e psicodinâmicos, no qual sua primeira versão abordava três grupos clínicos (106 “distúrbios mentais”), na versão atual além do aumento dos tipos clínicos, o número de doenças é cerca de 300. Além dos próprios problemas de formulação – mais da metade dos criadores do manual declararam ter ligações formais com a indústria farmacêutica – há um impasse no tocante ao espaço para o próprio sofrimento. Em um processo no qual “a história da doença se confunde com a história do doente” (Karl Jaspers), a patologização psicológica se generaliza, ocupando um espaço significativo do conteúdo explicativo daquilo que poderia ter raízes em outros campos. 

Em contrapartida com essa proposição, alguns filósofos e psicanalistas têm realizado debates mais complexos no que tange a conjuntura e a atualidade do sofrimento. Vladimir Safatle é um deles e, em entrevista para o canal Inconsciente Coletivo, afirma ter recusado todos os convites que têm por objetivo buscar respostas sobre o sofrimento psíquico em tempos de pandemia. Segundo o filósofo, isso acabaria naturalizando esse sofrimento, colocando-o em primazia em relação às condições materiais da vida, que tem sido cada vez mais precárias. 

Na entrevista, Safatle apresenta o desamparo como um afeto importante para o período de pandemia porque produz uma forma de coragem frente ao fragmentado, podendo conformar assim sentimentos coletivos e políticos. Conclui isso a partir dos debates que Freud apresenta, quando considera que só há emancipação onde há desamparo, ou seja, que só é possível constituir-se como sujeito emancipado quando somos capazes de afirmar o desamparo. Esse processo permitiria ao sujeito atravessar a resposta ao amparo, transformando-o em condição de elaboração coletiva a partir de sua afirmação, já que o desamparo não é passível de cura.

No tocante a essa reflexão, o principal a ser retido é de que talvez seja importante, por agora, deixar que as diversas formas de sofrimento possam emergir e transformar-se em sentimentos criativos e coletivos, conformando narrativas que podem dar sentido e caminho aos afetos que predominam quando estamos confinados, isolados e lidando principalmente com nós mesmos. 

Zizek [4], relatando conversa com Gabriel Tupinambá, psicanalista lacaniano no Rio de Janeiro, afirma que a ameaça do COVID-19 para Tupinambá lembrou daquilo que Freud relata em Além do princípio do prazer (1920): “O enigma inicial com o qual o fundador da psicanálise deparava era que os soldados que haviam sido feridos na guerra conseguiam elaborar suas experiências traumáticas melhor que aqueles que voltavam ilesos – estes últimos tendiam a experimentar sonhos repetidos, que reatualizavam as imagens e fantasias violentas da guerra”. 

Ou seja, a ameaça, nem sempre concluída com a contaminação, torna-se angustiante justamente pelo fato de não se tornar material, aprisionando os sujeitos num estado de ansiedade por não saber com o que de fato se está lidando. Isso significa, de uma forma geral, que há sofrimento e há angústia! Mas o que faremos com esses sentimentos tão emergentes?

Segundo o psicanalista Christian Dunker [5], se queremos tornar a experiência da COVID-19 e da pandemia em uma janela de oportunidade para repensar a sociedade em que vivemos, precisamos tomar o sofrimento, de si e dos próximos, como uma responsabilidade, ou seja, como um engajamento de cada um em se implicar com a realidade. E implicação, para Lacan, acontece quando nos sentimos envolvidos no processo transformativo que nos ultrapassa, enquanto formas narrativas de sofrimento que conseguimos reconhecer como próprias, dignas e válidas e outras que não seriam. Na implicação cuidamos da experiência do sofrimento como coletiva, impessoal e anônima, justamente por isso universal.

[1]  Manual Fiocruz : https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/04/Saúde-Mental-e-Atenção-Psicossocial-na-Pandemia-Covid-19-recomendações-gerais.pdf

[2] Recomendamos o livro “Mal-estar, sofrimento e sintoma” de Christian Dunker, professor do Departamento  Psicologia da Universidade de São Paulo e membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP).

[3] Christian Dunker, “A neurose em estrutura de ficção”.

[4] Žižek, Slavoj.  “Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo (Pandemia Capital).”

[5] https://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/05/01/o-que-gabriela-pugliesi-nos-revela-sobre-como-lidamos-com-o-sofrimento/ 

*Os textos de debate são de responsabilidade das autoras e podem não refletir a opinião do jornal


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