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Opinião

Cancelar o semestre das universidades pela qualidade da formação e permanência estudantil

Cancelar o primeiro semestre do ano nos permite inclusive pensar como retomar as atividades futuras

Por Thiago Zandoná, redação do Universidade à Esquerda
07 de maio, 2020 Atualizado: 18:50

Com o avanço da pandemia no Brasil, os institutos e as universidades públicas foram paulatinamente suspendendo suas atividades acadêmicas. Passados dois meses desde o início da suspensão, há uma incerteza generalizada sobre como serão retomadas as atividades acadêmicas e em que momento.

Ensino remoto? Cancelamento? Retorno presencial gradualmente? Essas são questões em aberto, mas que infelizmente tem sido pouco debatidas.

Em uma discussão acerca do cancelamento do semestre, publicado nesta semana no UàE, Ana Júlia e Maria Alice de Carvalho apontam que a resposta de parte das reitorias tem sido a pior possível: adiar o semestre sucessivas vezes e buscar a todo custo realizar o 1º semestre letivo assim que possível, às custas da precarização da formação acadêmica. 

Em algumas instituições, sequer houve a suspensão completa do semestre. Pelo menos três universidades do Rio Grande do Sul (UFSM, UFRGS, PUCRS) estão mantendo o ensino por meios remotos desde o começo da suspensão das atividades presenciais.

Mas por que manter o semestre a todo custo? Para os institutos e universidades públicas é possível que uma política firme em prol do cancelamento do semestre seja respondida com aumento do estrangulamento orçamentário. Política de sucateamento dessas instituições que se encontra em marcha desde 2015. 

Aos reitores e demais representantes, a retaliação poderia se dar com ações judiciais — medida que tem se tornado comum nos últimos anos. Na UFSC, por exemplo, o reitor Ubaldo Cesar Balthazar já recebeu dois processos administrativo disciplinar desde as intervenções da Polícia Federal em 2017 e, agora, precisa responder a uma solicitação do Ministério Público Federal para que a instituição retome as atividades remotamente. 

Porém, em meio a esses fatores, é preciso analisar a coerência entre as possibilidades postas em meio à pandemia e a função que a universidade pública cumpre para a sociedade. E o cancelamento do semestre apresenta-se como a medida mais adequada.

Diferente da grande maioria das universidades, faculdades e centros de ensino superior privado, as universidades públicas não funcionam imersas numa lógica mercantil, na qual o principal fator é a venda de certificados ao menor custo possível — inclusive massificando o ensino à distância. 

Às universidades públicas é dada a missão de produzir conhecimento científico, artístico e filosófico de alto nível e desenvolver tecnologia de ponta, ao passo que forma estudantes e pesquisadores qualificados. Esse papel tem se perdido parcialmente com a penetração dos interesses privados nessas instituições, porém, sua já parcial precarização não é justificativa para que se insira apressadamente mecanismos que aceleram ainda mais o processo de destruição do caráter das universidades.

Para as autoras do texto citado acima, a universidade pública não é e nem pode vir a ser uma mera distribuidora de certificados. Frente à isso, concluem que “apoiar-se na suspensão indefinida do calendário acadêmico e iniciar o preparo de um semestre fictício para dizer que houve o primeiro semestre do ano é defender que as aulas cotidianas e presenciais não têm valor algum, que prevalece um certificado a uma formação de qualidade”. 

Leia também: Nem ensino remoto nem indefinição de calendário: cancelamento do semestre para as universidades

O texto, que repercutiu em diversas universidades, estimulou o debate e suscitou novas questões, tais como particularidades do que tange à permanência estudantil. No que diz respeito à tal, o cancelamento do semestre não deve resultar na suspensão das bolsas de auxílio nem das bolsas de estágio e pesquisa. Isso deve ser garantido pelas reitorias.

Além disso, cancelar o semestre agora significa acabar com a incerteza criada pela repetida suspensão do semestre. Significa garantir aos estudantes que as aulas não vão retornar a qualquer momento através da próxima portaria da reitoria. Para uma parte significativa desses estudantes, isso expressaria uma maior segurança para seus planejamentos pessoais — em meio a tantas incertezas no atual contexto.

Aos estudantes que moram longe de suas famílias, por exemplo, o cancelamento do semestre asseguraria a possibilidade de suspender seus contratos de aluguel — em muitas regiões, com valores altíssimos, diga-se de passagem — e de visitar seus parentes, afinal, muitos estudantes moram em estados ou cidades distantes de seus familiares.

Cabe às reitorias, portanto, garantir que não haja nenhum retorno de atividade em pelo menos três, quatro ou cinco meses; que ao menos até setembro os estudantes não precisem ficar em estado constante de alerta para uma possível mudança repentina. Quem sabe, tal medida possa permitir aos estudantes, inclusive, se resguardar minimamente para os meses seguintes, nos quais a crise econômico estará mais intensificada.

Além disso, com relação à disseminação do coronavírus no país, as perspectivas projetam um cenário desastroso da doença para os próximos meses. Ou seja, a necessidade de intensificar um isolamento social deve aumentar, inclusive sendo adotada medida de “lockdown” por todos os estados. 

As universidades públicas têm hoje mais de 2,3 milhões de estudantes, sem contar técnicos administrativos, professores e trabalhadores terceirizados. Voltar às atividades presenciais, mesmo que parcialmente, significa mover um contingente de pessoas enorme em diversas cidades.

Em Florianópolis, por exemplo, o campus da UFSC contém uma comunidade universitária que representa cerca de 10% da população da capital catarinense. O que significa essa afluência de pessoas se reunindo nas salas, laboratórios, restaurante e atravessando praticamente todos os bairros da cidade através de ônibus e afins?

Devido a essa capacidade de aglomeração e circulação de grande quantidade de pessoas, uma posição de cancelamento do semestre das universidades é também uma política de saúde pública. 

E, além de garantir a permanência dos estudantes e combater a difusão do vírus, defender o fim do semestre é defender a qualidade das aulas e das demais atividades que envolvem o ensino e a pesquisa (práticas laboratoriais, visitas de campo, etc.).

É certo, porém, que mesmo nas universidades públicas há ótimos exemplos de péssimas aulas (vazias de conteúdo, sem rigor teórico, com professores sem didática alguma…), mas esse não é um motivo para certificar que o conjunto do sistema de ensino passe por uma deterioração. Ao contrário, precisamos defender que aulas como essas não se tornem o padrão. Portanto, defender o fim do semestre, seu cancelamento, é defender um ensino consciente e rigoroso; é disputar uma visão de universidade totalmente oposta aos projetos de precarização que têm sido aplicados paulatinamente há décadas pelos governos.

Por fim, cancelar o primeiro semestre de 2020 não significa dispensar a necessidade de pensar formas de se adaptar ao contexto pós-confinamento. Pelo contrário, cancelar o semestre agora nos permite pensar e discutir com mais tempo e profundidade como será realizado o retorno para os próximos semestres, a fim de manter o máximo possível a qualidade destas instituições.

Tudo indica que o vírus SARS-CoV-2, que causa a doença Covid-19, permanecerá como um vírus constante em nossa sociedade pelos próximos anos, mesmo após o pico de infecção (tal como a influenza H1N1). Isso implica a necessidade de discutirmos formas de adaptação das universidades para os próximos semestre, inclusive, debatendo a utilização do ensino remoto em algum grau.

Será um desafio enorme repensar a organização acadêmica para os próximos semestres. Agora, imagine pensar essa nova configuração ao mesmo tempo em que se almeja concluir um semestre que mal começou em meio ao pico de contaminações do coronavírus. Impraticável e impossível de realizá-lo sem colocar em xeque a qualidade de formação, pesquisa e permanência nas universidades. 

Sendo assim, quais são nossas prioridades? Certificar uma cota de estudantes semestralmente ou garantir uma universidade com ensino e pesquisa com rigor e seriedade para responder às demandas sociais?

*O texto é de responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do jornal.

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